Meu choro, meu sábado, minha Casinha

Foto: Yuran Khan

Uma tremenda confusão. E olha que desta vez eu nem bebi. Mas me explico, me explico devagarinho. Aliás. Que tremenda confusão.

Dia de sábado, eu estava com meu bloquinho de anotações no bolso. Preciso realmente arrumar um gravador. Ele ia deixar minha vida de jornalista bem mais prática. Acontece que eu mesmo não entendo os garranchos que escrevo no bloco. Aí fica mais complexa a tarefa de transcrever minhas impressões. Mas não tenho nem WhatsApp, imagine então um gravador. Muita tecnologia pra este trintão, tão quarentão. E olha que eu tenho trinta e um.

Mas então, conforme eu ia falando, estava com meu bloquinho de anotações no bolso. Mas um bloqueio completo me impedia de colocar em letras e palavras o que sentia naquela tarde de sábado. O que acontecia, amor, meu grande amor?

Foto: Yuran Khan
Foto: Yuran Khan

Minha pauta era tão ou mais simples que a simplicidade. De alguma forma, eu estava numa zona de conforto. Era para eu ir para a Casinha. A Casinha é uma espécie de quintal da minha casa. É, como o nome auto explica, uma casa, no Barro Preto, com um quintal e uma trepadeira. Se eu não me engano, a coisa de alguns anos a trepadeira era uma argyreia nervosa. Hoje é um sapatinho de judia. Não tenho certeza, mas também não sou um botânico.

Voltando, a Casinha é um dos espaços culturais mais importantes de Belo Horizonte. Eles têm cerca de dez anos de atividade, concentram em seu espaço uma roda de capoeira e prezam pelo resgate de culturas tradicionais, desta Minas Gerais, e das brasilândias. Marcou época, por exemplo, o Arraial da Casinha, que era realizado na rua e na tora, nas cercanias da sede, naquelas ruas, meio perto do Fórum, meio perto da Augusto de Lima. Isso em 2010, 2011, 2012. Bairro engraçado, que nos dias de semana é repleto de advogados e concurseiros, e nos finais de semana fica vazio, uma pessoa aqui, outra ali.

A Casinha também é mãe de um dos blocos de carnaval mais legais do dito renascimento do movimento de rua, que vem tomando a cidade nos últimos anos. É o Unidos do Barro Preto, que, na segunda-feira do reinado do Momo, convida os foliões a se banharem de barro e seguirem uma simpática kombinha, de condutor bigodudo, para um banho nas fontes da Praça Raul Soares. Tá bom que a Guarda Municipal não fica lá muito feliz, mas, até hoje, a folia não foi interrompida. Guarde na agenda aí, Unidos do Barro Preto, Carnaval 2017.

Foto: Yuran Khan
Foto: Yuran Khan

Só me alongando um pouco mais sobre a Casinha, que é personagem importante dessas mal traçadas linhas. Eles também foram berço de outros dois blocos de carnaval que são must go. O ‘Chama o Síndico’, que é uma folia só e você já deve ter ouvido falar. E o ‘I Wanna Love You’, que toca canções do ídolo Bob Marley em ritmo de carnavalia.

Lembro de ensaios tímidos do ‘I Wanna Love You’, que rolavam nos corredores do Casinha, e hoje o bloco encerra o Carnaval, numa praça Lado B, lá no Sagrada Família. Junto do Manjericão, eles formam a Quarta-feira de Cinzas jamaicana, que é o ponto alto do carnaval belo horizontino.

Tem muito bloco que ainda não é pop que vale a visita. A visita e a estadia. Aí, que saudades do Carnaval.

Já deixei claro minha relação de afeto com a Casinha. É também lá que passei as noites mais divertidas de minha carreira de DJ. Explico: Além de jornalista, eu sou (ou era) disque jóquei. Não profissional, na verdade, bem picareta. Está bom, talvez não tão picareta. Comecei selecionando músicas e utilizando um programa crackeado encontrado nas interwebs.

E aí, mais ou menos uma vez por mês, nós íamos para os fundos da Casinha e fazíamos a festa (somos do mundo) até o alvorecer da aurora. E era uma caipirinha, uma música. Era ‘i miss her’, e ‘apocalipse do amor’, e ‘baby doll de nylon’.

Falando assim, não sei se parece que era bom. Mas era bom, muito bom.

E tem uma frase que é do Garrincha. “Eu não acredito que eles me pagam pra jogar bola”. E é mais ou menos como eu me sentia tocando. Não acreditava que eles me pagavam pra ficar me divertindo. Pra ser a pessoa mais legal da festa. Podia ser que eu não fosse a pessoa mais legal da festa, mais deus sabe que era assim que eu me sentia.

Como é bom ter vinte e poucos anos.

Mas de volta à sábado e ao meu bloqueio criativo. Desde meados de 2013, acontece na Casinha os sábados de samba e choro. Não é todo sábado porque o lugar não é um barzinho de fins lucrativos, é uma associação cultural. Mas acontece cerca de uma vez por mês. Começou timidamente, e hoje reúne uma galera que está acostumada a curtir o popular ritmo brasileiro. Tão tipicamente brasileiro.

Cabe aqui um parênteses.

Se você não sabe, existe uma cena de choro em Belo Horizonte. Arrisco dizer que existe uma cena de chorinho no Brasil. E uma das melhores rodas que existe é a que acontece no Bar do Salomão (R. do Ouro, 895 – Serra). O Bar do Salomão é ponto tradicional para se ver futebol. Lá é o bar dos atleticanos. O que eu acho engraçado é que existe um bar do Atlético, existe o bar do América (o delicioso Paulinho, na Pium-í 1174) mas, sem implicância, eu não conheço um bar tradicional do Cruzeiro.

Se existe, por favor, me deixe sabendo. Mas, voltando ao choro, que é mais importante que meras tentativas de polêmicas etílicas/clubisticas, segundas e quintas-feiras é noite de chorinho no Salomão. E, entre uma turma jovem nas mesas, coroas nos balcões, e chorões em todos os cantos, toca-se a música de Pixinguinha. Bom demais, ficar ouvindo canções de sessenta, setenta anos, entre copos de cerveja e risadas com amigos.

Estou cheio de dicas hoje. Fica essa então. Chorinho do Salomão, segundas e quintas, a partir das dezenove horas.

Foto: Yuran Khan
Foto: Yuran Khan

Para não ficar muito centro-sul, vale a dica de outros bares de choro que representam a cena local. No Padre Eustáquio, às quintas também, tem o chorinho do Bar do Bolão. Fica na rua Vila Rica, 637. O cardápio musical é semelhante ao do Salomão. Pepitas de ouro do gênero, mesas na rua, mesas no salão. Tira-gostos, a toada.

Ah, tem também o Pedacinhos do Céu, tradicionalíssimo, que fica na rua Belmiro Braga, 744, no Caiçara. Programação de choro e samba durante a semana. Vale a visita.

Estou me desviando do assunto.

Sábado de samba e choro na Casinha. Cheguei lá, por volta das 16 horas. Quem iria se apresentar lá era o Artur Padúa e o grupo Regional Mineiro. Habitués do bar do Salomão, falado algumas linhas acima. É engraçado notar que são jovens. Todos na faixa dos vinte e tantos, trinta e poucos. Tocando violão de sete cordas, seis cordas, cavaquinho, pandeiro. Bem brasileiro, brasileirinho.

Ah, inclusive o Artur está fazendo uma campanha de financiamento coletivo para seu disco Campo Aberto. Clique no LINK para mais detalhes.

E não sei o que me deu, mas eu estava com uma sede tremenda. Bebi litros de água. Água? Sim, água. Nervoso (não sei porquê), eu dava fartas goladas do líquido sagrado, e tentava fazer umas anotações. Até então, tinha escrito ‘Meu nome é Luciano. A caneta não funciona. Minha relação com o choro é complicada’.

Só. Só isso.

Bloqueio de Autor.

O que será que me dava, naquele sábado à tarde, onde deveria ficar tão à vontade?

Foto: Yuran Khan
Foto: Yuran Khan

E as horas iam passando, eu enfiando a cara na água, e de repente entendi um fio de prosa, que deveria explicar minha tensão e nervosismo. Um amigo chega pra mim e fala ‘eu não reconheço ninguém aqui’. E me saltou aos olhos que eu estou velho. Não velho.

Conforme já falei alguns parágrafos acima, tenho trinta e um anos. Quase trinta e dois. Mas estava velho naquele sábado a tarde. Velho, meio carcomido, meio reconhecendo quantas horas eu já tinha vivido naquelas paredes, e sentindo que os melhores anos haviam ficado para trás.

Que melancolia que me deu. Ouso dizer que fiquei tristonho. Acho bonita essa palavra, ‘tristonho’. E fiquei vendo o lugar encher, encher e ficar entupido de gente. E eu careca, barrigudo e com bloqueio de autor.

Mas são mágicas que a música dá. O tempo ia passando, a banda tocando, e eu lá tão sozinho. Mexia no bolso, pegava meu bloco e um branco completo a me perpassar a alma. Mas aí, eles começaram a tocar uma cantada que gosto, me completa. ‘Vou abrir a porta. Mais uma vez pode entrar. É Dia das Mães. Eu resolvi lhe perdoar’.

Foto: Yuran Khan
Foto: Yuran Khan

Poxa vida. Que tarde longa, como é perigoso vir à janela. Vou ao banheiro. Um rapaz, mais jovem que eu, esbarra comigo na fila. Ele tropeça nas minhas pernas, e me pede perdão. Aí, ele fala ‘desculpa, estou comovido como o diabo’. Volto pro samba, volto pro choro. O som me vem, meio abafado. Acendo um cigarro.

E concluo que, na vida, algumas coisas são literais.

Estou tão acostumado a ouvir o choro em momentos de risada, de descontração, que esqueci que é uma música de tons tristes. Que é um choro, que é uma chorada. E vai o samba, tão tocado também naquela tarde, e vem naquela melancolia, roda moinho, roda gigante.

Tem dias que são empate. E eu, procurando uma face reconhecida, que já havia ido embora há muito, tomando minha água, e ouvindo o dedilhar de um violão.

Engraçado mencionar, mas isso tudo não durou muito tempo. Já disse, acho que o Mark Twain falou, que as crianças tem um jeito de não ficarem tristes por longos períodos. E acho que um pouco desse potencial fica também para quando a gente é adulto. Rápido, conforme tinha vindo, a tristeza foi indo.

E me veio uma risada, tímida, mas que foi ficando teimosa. A música foi me alegrando. E de repente, eu estava balançando, sacodindo. Já não estava tão sozinho. Talvez eu nunca tivesse estado.

Depois, muitas horas depois. Às vezes a gente começa uma ideia de um jeito, e vem um tudo que rebenta nossa lógica. Depois. Muitas horas depois.

Foto: Yuran Khan
Foto: Yuran Khan

SIGA O BHAZ NO INSTAGRAM!

O BHAZ está com uma conta nova no Instagram.

Vem seguir a gente e saber tudo o que rola em BH!