Meu latido, meu ganido, minha tarde com os animais

Já dizia a Cindy Lauper: “Desculpa neném, essa noite eu estou te deixando”. Eu gosto mais dela do que da Madonna.  Acho que ela representa melhor a década de 80. Década essa que eu nasci, mas não lembro quase de nada. Só de jogar meu Atari, voando em telas pixelizadas. Lembro também do meu primeiro cachorrinho. Acho que ele chamava Beto, e era um vira-lata, parecido com um Fox paulistinha. Quanto tempo será que o Beto ficou conosco, no seio familiar? Uma semana? Um mês? Um ano? Não me lembro, isso deve ter sido em 1989. A memória não dá conta de lembrar das coisas da primeira infância.

Mas eu tenho uma memória do Beto, que ficou fossilizada nas entranhas da minha psique. (As vezes, quase sempre eu uso uns clichês de linguagem absurdos: “Entranhas da minha psique?” Tenha dó, Luciano). Eu estava em nosso pequeno apartamento, no Sumarezinho, São Paulo. O cachorro estava com um dodói, ele gania acho que de dor, num frêmito ai ai ai. Eu estava no meu quarto, já havia saído do berço, e fui até a área de serviço, ver o Beto. Na televisão passava um episódio do Pernalonga. O canino me estranha, e começa a latir contra mim. Eu faço carinho nele, com a mão estabanada de criança. Passo a mão atrás de sua orelha, uma, duas, três vezes. Quando ele se acalma, eu lhe desfiro um tapa no cocoruto.

As recordações nesse ponto ficam meio confusas. Eu não me lembro direito nem de ontem, quanto mais de um acontecido há vinte e tantos anos atrás. Coisa engraçada a memória. A gente vai preenchendo os acontecimentos com flashes de sonhos. Isso sempre me faz pensar o que realmente aconteceu, e o que é produto da nossa mente. Quero dizer, que se algo que houve, o passado cristalizado é mezzo vida e mezzo construção, a realidade não é assim tanto de respeito. Compreende?

Foto: Yuran Khan
Foto: Yuran Khan

Mas voltando ao modo em que eu me lembro da pancada no Beto (apenas um tapa!). Imediatamente surge minha mãe e meu pai e me repreendem por ter batido num cachorrinho, criatura inofensiva. Eu amoral, como uma avenca, não compreendia que havia agido mal. De todo modo, mamãe me fala “São Francisco não gosta que maltratem os animais”. Nem bem existia em mim a noção de Deus, do eterno, quanto mais de um santo, que no alto de suas sandálias, brigava com garotinhos que batiam em animais.

Mas, dito isso, essa ideia ficou fixada na minha cabeça. De que não devia maltratar os animais, porque no céu, São Francisco a tudo olhava, e iria castigar quem fosse ruim com os bichos. Essa base da minha criação católica, que nós não temos que nos comportar bem, para sermos bons, mas sim pelo medo da punição é a base da minha moral. Para os bons um céu de Junipero, para os maus, castigos eternos num inferno de Bosch. Que moral é essa? Contaminação do capital, onde as boas ações são créditos e lucros, para comprar a passagem pro paraíso.

De volta ao tema do texto. Os animais, no Mercado Central. Mas cabe aqui uma historinha: Em 2010 (ou 2011), eu morava no centro da cidade. E semanalmente eu ia até o Barro Preto a pé, para me consultar com meu psicólogo. Aí, na volta eu sempre passava pelo Mercado Central, e namorava aqueles bichinhos presos na gaiola. Até que então me apaixonei por um filhotinho de rottweiler. Coisa idiota, afinal eu morava num apartamento. Como eu poderia ter um cachorro de mais de quarenta quilos, e feroz, num cubículo do centro? Minha mãe foi logicamente contra a compra do cachorro, mas teimoso e obtuso, no terceiro ou quarto encontro com o cão, levei-o pra casa. Péssima decisão.

Foto: Yuran Khan
Yuran Khan/Bhaz

Batizei ele de Mingau. Mordiscava minha mão, e seus dentinhos já tinham potência, doendo os nós dos dedos. Mingau, que doçura de animalzinho. Meu outro cachorro (que na verdade era mais cuidado pela minha mãe, do que por mim) o saudoso Joca, estranhou a companhia daquele filhote um tanto quanto bravo. Eu ficava pensando no futuro, que Mingau ia ser meu companheiro de caminhadas, de aventuras, de banhos em cachoeira, e que minha filha que na época estava para nascer, iria brincar com aquele gigante canino. Também pensava que era estranho comprar uma vida. O Mingau custou R$300,00.

Como as histórias tem fim, a lua de mel entre mim e Mingau não durou muito tempo. Ao fim de alguns dias, ele parou de se alimentar e parou de tomar água. Nem carne, nem ração, nem goles de liquido. Ficou prostrado e também pararam as mordidas. O que acontecia com aquele peludo e singelo pet? Bem, como não houve melhora em seu estado, minha mãe (sempre ela) o levou para o veterinário. Eu, irresponsável dentro de mim, fiquei sabendo ao chegar em casa e ver meu quarto todo pintado de marrom. Mingau havia cagado até nas paredes.

Foi hospitalizado, levou soro na veia, e os veterinários tentaram pelo bem, salvar a vida do rottweiler. Mas não adiantou, uns dois ou três dias depois Mingau virou estrelinha. Como os animais não tem alma cessou de existir. Ou será que não? Vamos nos encontrar no céu, e ele vibrante e potente vai correr comigo numa areia branca e quente, algum dia?

Foto: Yuran Khan
Yuran Khan/Bhaz

Quem perde um animal sabe a tristeza que dá. E ficou marcado na minha memória, que o Mercado Central não é lugar de se comprar animal, que tinham me vendido um bicho doente. Alias, ficou na minha cabeça que animal não se compra. Mas é meio complicado ir fazer uma pauta, já imbuído de preconceito. E minha matéria seria justamente essa: Conversar com os lojistas sobre a polemica proibição do comércio de animais nas dependências do Mercado.

Cheguei ao Mercado por volta das 14 horas. Encaminhei-me para o corredor dos animais. Um cheiro característico, de pelos e penas, permeava o ar. Gaiolas, algumas vazias, outras cheias, enfileiradas. Cães, gatos, coelhos e porquinhos da Índia. Me pergunto, quantos seriam? Percebo que está um pouco escuro, debaixo de algumas gaiolas. Escuro, talvez demais para fotografar. Mas elas estão limpas, e os animais parecem ansiosos com o contato aos humanos. Escrito numa parede “Não colocar a mão na boca dos animais”.

Na loja seguinte, uma série de gaiolas, dessa vez vazias. Será que elas eram o lar de passarinhos, que foram vendidos? Puxo conversa com um lojista, que diz não ter nada a dizer. Me explico, sou jornalista, quero saber sua opinião sobre a proibição das vendas de animais no Mercado Central. O primeiro diz que não quer conversar comigo. O segundo também não. Tampouco uma senhora que está numa mesa com um abaixo-assinado pedindo a permanência dos bichos.

E, sem fontes, como fazer a matéria? Na Loja dos Pássaros São Judas Tadeu, encontro um senhor que decide falar comigo. Vitor Aparecido, diz ter a loja a vinte e oito anos. Ele já vem me falando: “O Brasil está quebrado. Esse é o problema do país. Aqui não tem problema. São animais que se pode criar”. Ele também fala que em seu estabelecimento se comercializam bichos que irão para um sítio, uma fazenda. E que o movimento pela proibição dos animais no Mercado atrapalharam seu negócio. E emenda “Essas manifestações são para encher o saco”.

Vitor continua a apontar seu ponto de vista. “Esses bichos são bichos de criação. Se você pegar um deles e o soltar na natureza, eles vão morrer”. Segundo ele, não existem maus tratos. Pergunto a ele quantas lojas resistem no Mercado, vendendo bichos. Ele conta comigo, 8 comércios. E vaticina “se continuar assim, daqui a pouco vão proibir de se andar a cavalo. Enquanto tentam proibir nosso trabalho, a bandidagem tá solta”.

Foto: Yuran Khan
Yuran Khan/Bhaz

Sou informado que naquela ala do Mercado existe uma veterinária que frequenta as lojas praticamente todos os dias. Para minha sorte, ela chega no mesmo momento. Maria Cristina Araujo trabalha lá desde 2002. Sua função é a de orientar de como cuidar dos bichos, das condições de vida deles. Ela começa me dizendo que “a vitória pela proibição do comércio de bichos é uma vitória que querem que seja política”. E que uma situação degradante para os animais é a da área de zoonose na cidade. “Aqui praticamente não tem óbitos de animais”.

Maria Cristina reclama dos ativistas dos direitos dos animais. “Eles vem aqui quase todos os dias e rasgam as folhas de nosso abaixo-assinado”. Ela ainda acredita numa curiosa conspiração. “São eles. Os veganos. Eles tem o objetivo de extinguir as raças modificadas geneticamente”. Não entendo e ela me explica, que as raças de cachorro por exemplo, estão na mira dos veganos. E no nordeste do país, por exemplo, estão substituindo os jumentos por motos. Seria tudo isso um maquiavélico plano dos misteriosos veganos?

Foto: Yuran Khan
Yuran Khan/Bhaz

Olho para uma tabela de preços na parede de outra loja. Nele, está escrito, que um periquito custa R$39. O canário sai a R$48. Um hamster a R$12 e o Pincher a R$300. Me lembro do Mingau, e mais uma vez fico encucado com essa mania humana de colocar preço em tudo. Até mesmo numa vida.

Abordo um homem e pergunto sobre sua opinião sobre aquele comércio. Ele se chama Francisco Santos, e que por ele a venda deve continuar. “O que mais tem aqui são aves, animais acostumados a viver em gaiolas”. Continuo por ali, e vejo mais bichos nas gaiolas. Gatinhos siameses dormindo um em cima do outro, e preguiçosamente bebericando água. Eles saem por R$150. O poodle, de pelo cinza e bocejando entediado custa R$350. Falo com uma senhora, Sandra Helena, que fala que os animais devem continuar ali. Afinal “nossos filhos estão crescendo sem o amor dos animais”.

Apanho meu bloquinho de notas. Passo os olhos, viro as páginas, concluo que já tenho material o bastante pro meu texto. Ainda tenho mais o que fazer no Mercado, terra de torres e sabores. Fica na minha cuca, que outrora era de cabelos encaracolados, uns pensamentos torpes de sonho e de luz. Penso, porque cargas d’água o ser humano é um bicho que explora, que doma, que mata. Penso num porco numa gaiola de antibióticos. E como era bom chegar em casa, e ouvir um latido pra me recepcionar. Mas dane-se tudo, hoje vou comer um bife, veneno que já teve patas e mugia. Vou até a entrada. E, clichê da espera, acendo meu cigarro.

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