[Panorama Mundial] Israel está estabelecendo um regime de apartheid?

A segregação continua aumentando (Reprodução: Getty Image)

Os regimes de apartheid nos Estados Unidos (EUA) e na África do Sul, nos quais a supremacia de uma etnia sobre a outra se impunha informalmente (por meio de normas sociais de consenso) e formalmente (normas e leis jurídicas), foram grandes exemplos de sistemas de governo odiosos da história da humanidade.

As legislações desses países dividiam os habitantes em grupos raciais (negros e brancos, essencialmente), por intermédio da segregação no transporte público, na saúde, na educação e nas áreas residenciais, por exemplo. A partir disso, os negros recebiam serviços de qualidade infinitamente inferiores àqueles prestados aos brancos, uma vez que aqueles eram considerados cidadãos de segunda classe.

Placa estabelece a praia como “área exclusiva para brancos” (Reprodução: https://history105.libraries.wsu.edu/fall2016-unangst/2016/12/16/the-lasting-effects-of-the-south-african-apartheid/)

Após o fim desses sistemas de segregação racial (EUA em 1964 e África do Sul em 1994), os países e as instituições multilaterais (especialmente a Organização das Nações Unidas, ONU) demonstravam retoricamente e efetivamente (Rodésia do Sul[1]) que esses tipos de sistemas não seriam permitidos novamente.  Contudo, nas Relações Internacionais, os tipos de regime pouco importam efetivamente, na medida em que os interesses estatais egoístas vêm normalmente em primeiro lugar. Sempre bom lembrar, por exemplo, que os EUA e a Europa Ocidental, na maior parte da segunda metade do século XX, apoiaram os governos sul-africanos do regime de apartheid.

Desse modo, embora haja a possibilidade da existência de um regime de apartheid em Israel atualmente, é pouco provável que medidas drásticas sejam tomadas pelas grandes potências com relação isso, pois os israelenses são aliados essenciais no Oriente Médio. Porém, o Estado israelense não está imune a críticas formais por suas condutas avessas aos direitos humanos.

Protestos de palestinos contra o “regime de apartheid” israelense (Reprodução: http://www.uruknet.info/?p=84869)

O Relatório “Práticas Israelenses com relação às pessoas palestinas e a questão do apartheid”, comissionado e publicado pela Comissão Econômica e Social da ONU para a Ásia Ocidental, em 2017, condenou explicitamente o Estado de Israel por “políticas e práticas que constituem crime de apartheid”, um “crime contra a humanidade nos termos do direito internacional consuetudinário e do Estatuto de Roma da Corte Internacional de Justiça”. Ainda que o relatório tenha sido retirado posteriormente, em decorrência das pressões internacionais (especialmente de Israel e EUA), ele é sintomático das condutas no mínimo discutíveis da burocracia israelense.

Quais seriam as práticas odiosas que Israel tem praticado para ser considerado efetivamente um país que aplica o apartheid? Ao me referir às políticas adotadas pelo aparato estatal israelense com relação aos judeus, farei referência à legislação do apartheid sul-africano para efeito de comparação. Assim, cada leitor poderá tirar suas próprias conclusões sobre o tema.

Nacionalidade e cidadania – judeus-israelenses x árabes israelenses

O Estado israelense criou efetivamente distintos tipos de cidadãos: os judeus israelenses (nacionalidade e cidadania plena, tanto dos residentes em Israel como dos colonos das áreas ocupadas); os árabes israelenses (nacionalidade plena, mas cidadãos de segunda classe); e palestinos das áreas ocupadas (sem nacionalidade e cidadania).

Os nacionais de Israel possuem a Tedat Zehut (carteira de identidade israelense), na qual consta explicitamente se o indivíduo é judeu ou não judeu. Essa diferenciação acarreta consequências discriminatórias com relação ao local de moradia, ao acesso a programas de assistência social do governo e ao modo de ser tratado por policiais e funcionários públicos.

Lei de Registro sul-africana (1950): Classifica os sul-africanos no nascimento como brancos, negros, asiáticos ou mestiços

Por exemplo, a mortalidade infantil da população árabe-israelense é de 8 mortes para cada 1000 nascimentos, enquanto esse número atinge apenas 3,2 mortes para cada 1000 nascimentos de judeus israelenses; o Ministério da Habitação de Israel constrói 13 vezes mais moradias para judeus do que para árabes; os árabes são 3 vezes mais pobres do que os judeus. E essas diferenças continuam aumentando.

Lei de Reserva dos Benefícios Sociais (1953) – O governo se isentava da responsabilidade de oferecer serviços públicos da mesma qualidade para todos os cidadãos

Para os palestinos das áreas ocupadas, porém, a situação é muito mais problemática.

Palestinos das áreas ocupadas x israelenses

Em 2003, a fim de restringir a aquisição da nacionalidade israelense por palestinos das áreas ocupadas, foi instituída a Lei da Cidadania e Ingresso em Israel, que estabelece a impossibilidade dos palestinos da Cisjordânia e da Faixa de Gaza de se tornarem nacionais israelenses por meio do casamento com cidadãos de Israel. Em 2007, essa proibição foi expandida para o casamento de israelenses com cidadãos de países considerados inimigos pelo Estado (Irã, Iraque, Síria e Líbano).

Lei do Casamento sul-africana (1949): Proíbe o casamento inter-racial (Ainda que não proíba efetivamente o casamento, a negação da nacionalidade guarda relação com tal tema sul-africano)

Torna-se fundamental apontar também que os palestinos das áreas ocupadas por Israel estão sujeitos a um verdadeiro regime militar, pois eles são julgados por tribunais militares, que inclusive admitem confissões sob tortura. Além disso, existe a possibilidade de detenção desses indivíduos sem qualquer prova, por um período de 6 meses a um ano, prorrogáveis de maneira indefinida. Em contrapartida, os colonos israelenses que vivem na Faixa de Gaza e na Cisjordânia são regidos pelo Código Civil israelense, ainda que vivam nos mesmos territórios que os palestinos.

Além disso, o chamado sistema de controle – Sistema de Permissão e Obstrução, de 1990 – impôs o controle do movimento da população palestina nas áreas ocupadas por definições unilaterais do governo de Israel. Enquanto Israel argumenta que isso é necessário para a prevenção de ataques terroristas, os palestinos e outros organismos internacionais dizem que isso provoca a quase inacessibilidade a diversas comunidades palestinas, provocando inclusive falta de alimentos e de água.

Palestinos passando por um ponto de checagem perto da Faixa de Gaza (Reprodução: Getty Image)

Lei do Passe (1945) sul-africana: negros eram obrigados a portarem caderneta na qual estava escrito onde eles podiam ir (similar, porém a lei israelense é ainda mais sever do que a lei sul-africana do período do apartheid)

O não acesso à terra

Não é de hoje que Israel utiliza práticas discriminatórias com relação aos árabes que vivem no seu território e aqueles que habitam as áreas ocupadas da Faixa de Gaza e da Cisjordânia. Desde 1949, a chamada Lei de Emergência de Requisição de Terras possibilita o confisco de terras em caso de “emergência”, o que significa verdadeiramente a expulsão de palestinos de seus lares, a fim de que imigrantes judeus tomem seus lugares.

Lei de Terras sul-africana (1913): Determina que apenas algumas terras poderiam pertencer aos negros

Demolições e despejos de árabes são recorrentes em Israel. A burocracia estatal israelense sempre argumenta que essas ações são tomadas porque as estruturas de propriedades necessitam de permissão para serem construídas. Nada mais hipócrita, entretanto, visto que é quase impossível aos palestinos a obtenção dessas permissões, ou seja, existe uma política ostensiva do Estado israelense para impedir o desenvolvimento e o crescimento das populações palestinas no seu território.

Perda de território palestino (1946-2000) (Reprodução: The Economist)

De maneira oposta, Israel oferece tratamento diferenciado a assentamentos judeus, ainda que eles sejam frontalmente ilegais com relação às leis internacionais. A participação do Estado nos assentamentos ilegais, no que concerne aos planos de infraestrutura, ao planejamento, à realocação de terras e à gestão dos recursos hídricos são fundamentais para perceber a diferença explícita de tratamento.

No caso da gestão hídrica, Israel é acusado de violar o Direito Internacional, na medida em que deveria fornecer água potável para os palestinos dos territórios ocupados e do seu próprio território. De acordo com Yehezkel Lein, especialista em gestão hídrica do grupo de direitos humanos B’tselem, Israel consegue água do Rio Jordão, no mar da Galileia, e de duas outras fontes subterrâneas. Enquanto os israelenses ficam com 100% das águas do Rio Jordão e 80% das outras duas fontes subterrâneas, os palestinos ficam com apenas com 20% dessas duas últimas fontes, embora estejam em maior número.

Ainda com relação ao contexto do acesso a terras, o chamado Prawer Plan, de 2011, estabeleceu o despejo forçado de cerca de 30 mil árabes-beduínos de suas terras históricas, por meio da destruição de aproximadamente 40 vilas, a fim de realocar essa população em 1% da região do Negev.

Lei dos Bantustões sul-africana (1951): Permite que negros sejam deportados para territórios arbitrariamente criados (Bantustões), onde eles estabeleceriam um governo local

Israel argumenta que isso proporcionaria a expansão da comunidade beduína e seu reconhecimento formal, além de possibilitar a construção de serviços públicos mais eficientes e de novas residências, desenvolvendo assim a região. Contudo, não somente o Parlamento Europeu e o Comitê contra a Discriminação Racial da ONU criticam a medida, mas também várias organizações intergovernamentais, já que isso significaria a dizimação da cultura e da vida tradicional desses povos.

 Como se fosse pouco

Não bastassem as intensas segregações já existentes, o governo de Benjamin Netanyahu tem aprofundado ainda mais a segregação entre judeus e palestinos, apoiado pelo gabinete mais conservador da história de Israel. A lei que estabelece Israel como “lar do povo judeu”, aprovada preliminarmente no Parlamento em maio de 2017, entre outras medidas polêmicas, dá prioridade aos valores religiosos sobre os valores democráticos, proporciona à língua árabe um “status particular” (que significa, basicamente, seu não uso como língua oficial) e autoriza grupos de uma mesma religião a viver em comunidades separadas (ou seja, autoriza a intensificação da segregação da população árabe).

Lei de Áreas de Agrupamento sul-africana (1950): determinou onde cada um deveria viver de acordo com sua raça

Primeiro-Ministro de Israel, Benjamin Netanyahu (Reprodução: CBS News)

Conclusão

Israel não somente desrespeita a Resolução da ONU de 1974, a qual estabelece o direito do povo palestino a autodeterminação, mas parece impor um regime de apartheid (Crime contra a humanidade, com previsão no Estatuto de Roma) no seu território e nos territórios ocupados. Aqueles que são contra essa conclusão afirmam primordialmente que os árabes israelenses têm direito ao voto, portanto não seriam segregados; esse argumento tem deficiências, contudo, uma vez que os árabes são minoria em Israel, portanto, efetivamente, os judeus são aqueles que escolhem seus representantes. As ditaduras da maioria (Israel) e da minoria (África do Sul) são diferentes, na essência, embora os efeitos sobre a população oprimida em ambas sejam semelhantes. Mas é muito mais difícil combater socialmente uma ditadura da maioria do que o contrário. A não permissão da volta dos refugiados palestinos para seus lares ocorre exatamente para não permitir o fim da ditadura da maioria em Israel (com a volta dos refugiados, os judeus seriam minoria em Israel).

Os problemas com relação às fronteiras entre Palestina e Israel, aos refugiados palestinos, aos assentamentos ilegais e ao status de Jerusalém continuam indefinidos. A solução de dois Estados parece cada dia mais improvável, ainda que seja a mais viável. E Israel parece continuar, a cada dia, “sua marcha” em direção ao aprofundamento de um regime similar ao apartheid em seu território.

Felipe Costa Lima é formado em Direito pela UFMG; Especialista em Política Internacional pela Faculdade Damásio de Jesus; Mestre em Relações Internacionais pela PUC-Minas; e Mestrando em Direito International pela Universidade de Estrasburgo (França). Latino-americano de alma, talvez consiga quebrar visões eurocêntricas sobre os acontecimentos mundiais. Talvez…

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