[Bhaz em série] Minhas tardes nos restaurantes populares da Prefeitura (parte 2)

Alimentação é servida por atendentes, em porções iguais para todos

Na segunda parte da reportagem, o repórter do Bhaz Luciano Chacur voltou ao restaurante localizado ao lado da Santa Casa e também ao que fica próximo da Rodoviária.  Descobriu que vários médicos almoçam diariamente no da Santa Casa; no da Rodoviária, o que mais atende à população pobre de Belo Horizonte, perguntou aos que ali estavam como faziam para almoçar no sábado e no domingo, quando o restaurante não funciona.

Terceiro dia – à procura de médicos no restaurante da Santa Casa

Vamos agora ao terceiro dia, terceiro almoço. Dessa vez,acordei com um mau humor terrível. Engraçado foi que sonhei que almoçava num enorme refeitório. Não reconhecia nenhuma das pessoas que comiam comigo. Elas não tinham um rosto definido, parecia que suas caras eram manchadas. Todos comiam eternamente. Fiquei com uma impressão forte daquele sonho. Lembrou-me de um conto, se não me engano de Moacyr Scliar, chamado “Os Comensais”. Falava sobre uma turma de pessoas que, em um restaurante mágico, comia para sempre, até perder sua identidade.

Ai repito minha recém nova rotina. Ônibus. Trânsito. Cheguei ao bairro (novamente, área hospitalar) e então caminho, dura caminhada. Toda caminhada é dura quando se tem pouco fôlego. Dessa vez, chego à porta do restaurante às onze e meia da manhã. É uma terça feira com céu nublado. Torço para que não chova, já que esqueci meu guarda-chuva em casa. De todo modo, o restaurante está sem fila. É chegar e ser atendido.

Passo os olhos para ver se reconheço algum rosto conhecido da véspera. Acho que o homem desconfiado, aquele que estranhou minhas perguntas no dia anterior está aqui. Meu olhar pára um pouco sobre ele, e, para meu espanto, ele me cumprimenta com doce educação. Pergunta: “Gostou da comida? Voltou, hein?” Eu: “Gostei. Principalmente do feijão e da carninha”.  Mania besta de chamar carne de carninha. Meio infantilóide.

A comida é servida em um bandeijão. Todo dia tem arroz, feijão, uma carne, um legume e uma salada, que varia de um para outro. Um dia é alface, outro dia é  cenoura; outro, beterraba. Quem serve são as atendentes e sempre a mesma quantidade para todas as pessoas. Atenciosas, elas até atendem quando a gente pede para colocar um pouquinho mais da comida preferida. Comida servida. Está na hora de comer. Engasgo com a primeira garfada do arroz com feijão. Empurro com um copo de água e, logo em seguida, um pedaço de carne. Tusso para tentar retirar o alimento da garganta. Continuo tossindo, que nem a criança da véspera, que derrubou a colherada de comida na mesa, agora é a minha vez de emporcalhar a mesa branca.

Dessa vez, mais consciente do ambiente em que estou, tento reparar se entre os presentes existem médicos também, já que o restaurante está localizado na área hospitalar. É de ideia comum que os médicos fazem parte da elite econômica no país. Alias, no mundo todo. E, se são elite, não deveriam ir a um restaurante mais caro? Talvez contrariando o óbvio, encontram-se ali muitos profissionais da saúde. Mas isso não é suficiente. Queria encontrar um médico. E, depois de muito olhar para os lados, reconheço um antigo médico meu, de nome Eduardo. Ele está terminando a refeição. Acelero para que saiamos ao mesmo tempo. Dispenso a sobremesa, pois já estou satisfeito.

Paro ao lado do doutor Eduardo e me apresento para ele. Não se lembrava de mim. A ele, me apresento como jornalista. Digo que estou fazendo uma matéria sobre os restaurantes populares, e pergunto porque ele escolheu essa opção para se alimentar. Me diz: “A crise pegou todo mundo. Não é por ser médico que a gente não come em restaurante popular. E a comida é boa, é honesta. Falta um salzinho, mas como aqui quase todos os dias que venho por esses lados”. E completa: “Ser médico é lidar com gente. Que tipo de médico eu seria se tivesse nojo de gente, nojo do povo?”

Concordo com o doutor. Que tipo de pessoas somos se temos nojo de gente, nojo de povo? Me revisto de um certo orgulho, por essa minha necessidade, essa sanha que tenho de conversar com as mais variadas pessoas. Gosto muito disso, dessa mania de comunicar. Com certeza, tenho lá meus preconceitos e minhas ideias banais. Mas talvez eu não seja um ser humano tão ruim.

Na saída, penso no sonho da noite. Que a comida deixava em suspenso nossa identidade. Concluo que deve ser o oposto. Que comer nos traz identidade, nos dá algo muito único. Que nos une a todos.

Termino mais um dia de apuração.

 

Ambiente nos restaurantes populares é muito ordeiro e respeitoso. Horário de almoço é sagrado. (Maick Hannder)

Quarto dia – uma história trágica

Último dia de restaurante popular. Ou não, muito pelo contrário. Faço minhas obrigações matinais, ando até o banheiro para me lavar, passeio com o cachorro, “same old” rotina. Antes de sair, coloco uma música do Roberto, que eu vou usar cantarolando para me proteger durante o dia. Cada um com sua fé.

Dessa vez, vou voltar ao restaurante do centro, aquele perto da rodoviária. Queria ir caminhando, mas sou realista e percebo que não daria conta, além de que só chegaria lá muito depois do horário do almoço. Mas é capaz de eu chegar para o jantar, que começa a ser servido as dezessete horas. Custa R$ 1,50. Informação aleatória, mas vou inclui-la aqui.

Passo antes na padaria e tomo um pingado, compro meu maço de Camel (sempre o amarelo – o de filtro vermelho) e caminho até o ponto de ônibus. Lá, chega uma taxista (lotação) jovem e bonita. Sempre acho interessante ouvir histórias de taxista, principalmente mulheres. Rosângela me diz seu nome e começa a contar sua história. Eu aprendi uma técnica que gosto de usar quando em vez, que se resume a perguntar: “Como você chegou aqui”?

Ela me conta que chegou de carro. Insisto, para que diga mais. Fala-me que veio do Taquaril, deixou suas duas filhas na creche e veio trabalhar às sete da manhã. Conta que desce e sobe a Afonso Pena quase trinta vezes por dia. Tem uma jornada de trabalho de mais de oito horas. Sente saudades das filhas e queria ter mais tempo para passar com elas. Mas é viúva e tem que sustentar a casa. O marido morreu ha dois anos de complicações decorrentes da diabetes. Cruel o mundo com alguns. As filhas sentem falta do pai. Mas diz que não namora mais. Não quer substituir o marido por outro homem. Não acho que se ela se casar de novo, estaria substituindo o marido. Mas acho bonita esse promessa de amor eterno, até acima da morte.

Desço na rodoviária e encontro novamente o mesmo morador de rua, a quem dei um cigarro na primeira visita. Ele está deitado em um cama de papelão, jogado e se escondendo numa sombra. Pergunto se já almoçou. Me diz que comeu um salgado, mais ainda está com fome. Dou dois reais e ele e recomendo que não vá gastar em cachaça. Ele me olha e dá uma risada. Na verdade, não me importa se ele gastar em bebida. São só dois reais, afinal. E todo mundo precisa de um pecadinho, de um veneno.

O reencontro com o personagem do dia anterior

Chego ao restaurante cerca de meio dia. A fila está maior do que nos últimos dias. É quarta-feira. Mais uma coincidência: reencontro o Neneco, de Nanuque, o guardador de carros. Ele está em um canto, fumando um baseado, desses bem mal cheirosos. Chego para perto dele, que oferece o cigarrinho de artista. Agradeço, mas dispenso. Ele diz:”O baseadinho é para abrir o apetite”. Eu concordo: “A famosa larica, né?” É. A famosa larica.

Entramos os dois no restaurante. Neneco carrega a sua pesada mochila. Pergunto se ele dormiu na rua. Fala que sim. “O problema é tomar banho. A gente fica encardido, com um cheiro azedo”. E diz: “Estou com uma fome de leão”. Sento-me ao seu lado. Uma moça se levanta quando nos sentamos. Faz uma cara de nojo, ou talvez eu esteja vendo mais do que seja real, querendo enfeitar o mundo, que já é encantado por deveras.

Como de novo arroz, feijão e carne. Dispenso a salada, da qual nunca fui fã. Terminamos a refeição, só soltando poucas palavras. Saio junto dele e acendo um cigarro digestivo. Neneco fica ao meu lado e eu me pergunto o que eu estou fazendo conversando com ele. Que na real, nem uma conversa é, já que falamos pouco. Ele rompe o silêncio constrangedor, convidando-me para tomar uma cerveja. Penso: talvez seja uma boa tentar ouvir mais um pouco aquela criatura. Caminhamos até a rua Guaicurus e lá, de pé, pedimos uma Antartica.

Conto minhas poucas moedas e concluo que dá para beber umas três ou quatro cervas. Ele fala que eu não preciso me preocupar, que sou convidado dele, e que tem dinheiro. Mando-o às favas e brindo com ele. Acho só engraçado economizar pagando R$ 3 no almoço e, logo depois gastar R$ 5,50 em cada garrafa de cerveja.

Na intimidade de quem bebe junto, tento a minha pergunta padrão: “Como você chegou aqui?”  Ele fala: “Me chamo Roberto. Neneco é apelido de infância. E na verdade eu menti quando disse que vim à cidade para procurar emprego. Ou não. Pensando bem, é verdade. Mas a história mesmo é que eu fui preso. Cumpri pena”. Estou curioso para saber qual crime ele teria cometido, mas também receio a resposta. Pedimos mais uma cerveja. Diz que está com boca seca. Também pudera. Adivinhando minha curiosidade ele diz: “Foi Maria da Penha”. Nunca adivinharia.

“Eu era casado com a Marilene. A gente vivia se estranhando. Era um arranca-rabo todo dia. E comecei a ficar pensando que ela estava me traindo. Tinha um outro. Sacou? Apostava que era o Dagmar, meu amigo lá do bairro”. Já nesse ponto, percebi que a história terminava mal. Torcia para que não tivesse terminado em óbito. E continua: “Cheguei em casa um dia, muito chapado. E em casa, encontrei uma cueca de homem debaixo da cama. Comecei a enxergar tudo vermelho, meti a mão na cara da Marilene. Bati muito, bati mesmo. Até que ela pegou uma faca e foi pra cima de mim. Tirei da mão dela, e arranquei a orelha dela fora”. Pergunto sem saber o motivo, ou qual diferença faria: “Orelha esquerda ou direita?” Dá uma risada e termina: “Um pedação da direita”.

Paro imediatamente de me simpatizar com aquele homem, bronco e violento. Fico pensando na tal Marilene, que vai ficar a vida toda sem uma parte da orelha, por causa de um ciúme doente. Despeço-me, meio nauseado do Roberto Neneco. Ele insiste em pagar a cerveja.

Vou caminhando até a Afonso Pena, pensando nas crises morais que atingem o mundo. Mas talvez também penso no perdão, que as pessoas mereçam quando arrependidas. Saí de casa para comer, mas acabei me alimentando de coisas a mais. Convivência, tolerância, coisas novas. Paro. Acendo um cigarro, e olhando a fumaça, penso. De repente, solto um arroto, com gosto de feijão.

Não funcionamento dos restaurantes populares no final de semana é um problema para muitos de seus frequentadores (Maick Hannder/Bhaz)

Quinto dia – e no final de semana, quando os restaurantes fecham?

Por mais que nos esforcemos na apuração, quando colocamos o texto final em perspectiva percebe-se que faltou uma informação aqui, ou outra acolá. Então, me encaminhei para outro dia de apuração. O leitor pode se perguntar: “Jura? Mais linhas? Esse texto já não está gigantesco o suficiente?” Não caro leitor. A situação sempre pode ficar mais longa. Felizmente, ou infelizmente, dependendo do ponto de vista.

Então, voltei ao restaurante da Rodoviária com essa missão: conversar com as pessoas para saber como elas lidam com a fome nos finais de semana, sem a possibilidade de comer nos restaurantes populares. Só que minha fome era tão grande, que antes de apurar, eu precisava me alimentar. Pago a refeição e me encaminho para servir a comida. Cardápio do dia: arroz, feijão, carne e salada. Não sou muito de comer os alimentos verdes da natureza, mas estou com a fome tão dilatada, que como, como e como. As folhas estão frescas, mas como de costume, acho que falta um tempero. Me jogo no feijão, que hoje está especialmente gostoso. Com caldo e com grossos grãos. O arroz é que está bem empapado. A carne está tenra e com um gosto pronunciado.

Terminada a refeição e começo a falar com as pessoas. Encontro uma senhorinha bem pequena, que chupa o feijão preso no garfo. Pergunto seu nome e ela diz “Marilene”. Tem 73 anos de idade. Questiono se ela vem sempre ao restaurante e ela me diz que quase todos os dias. Mora no Floresta. Então como faz pra se alimentar aos sábados e domingos? Diz que com o dinheiro que economiza comendo durante a semana no restaurante, tem um dinheirinho da aposentadoria pra comer em casa. “O pacote de feijão custa R$ 4 e dá pra cozinhar com um pedaço de paio. Fica bem bom.”

Converso na saída com um senhor bem adentrado na idade. Outro Roberto. “E aí? O senhor almoça sempre aqui?” Diz que sim, quase todos os dias também. Então como faz nos finais de semana? “Ah, final de semana é mais difícil. Com esses mesmos R$ 3 eu só consigo comer um salgado, ou dois pasteis numa lanchonete aqui do Centro”.

Mais um personagem: um rapaz de vinte e poucos anos, chamado Raul. Ele me conta que trabalha no Centro e que, por isso, come no restaurante popular quase diariamente. Repito a pergunta que fiz aos outros. Ele me conta que no final de semana vai para a casa da mãe, no Alípio de Melo.”Sábado, então, é bom demais. É dia de feijoada. Como até a orelha do porco, o rabo… Tempero de mãe é a melhor coisa do mundo”.

Pronto. Finalmente satisfeito com a apuração.  Deu pra pensar e muito esses dias nesses restaurantes, onde talvez eu não fosse senão pelo meu ofício do jornalismo. Para repetir o tema, acendo um cigarro, desta vez um Marlboro vermelho. Tusso, pigarreio e penso na fome, que daqui algumas horas vou sentir. Sempre presente.

 

Marcelo

Marcelo Freitas é redador-chefe do Bhaz

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