Meu ferro-velho abandonado – uma busca no Prado mineiro

Saudade, palavra triste quando se perde um grande amor. Gosto demais dessa frase. Por mais que ela não tenha nada a ver com o texto vindouro. Ou talvez tenha tudo. De toda forma, acredito piamente que todo mundo tem uma história. Óbvio. Mas quero dizer, que se você fala (realmente fala) com cada pessoa nesse mundo imenso, você descobre um drama, uma mágica, um elã.

E um pequeno mistério assolou meu pequeno infinito particular, quando meu editor, propôs uma matéria que parecia de difícil apuração. A história é a seguinte: Existe um carro abandonado, na rua Turfa, no bairro Prado, região oeste dessa magnífica cidade, que insistimos chamar de lar. Talvez nem tanto oito, mas tampouco tão oitenta. De todo modo, um carro abandonado. Isso por si só, não significaria uma matéria, um texto. Quantos e quantos carros, geladeiras e sofás são jogados para a vala comum do esquecimento? Mas volto ao ponto: Cada carro, veiculo ou outrossim tem uma bagagem emocional atrelada. Por consequência, uma história esperando para ser contada.

Então, ponto a ponto, cronologicamente. Saio da redação, munido de um lápis (perdi minha caneta) e de um bloco de anotações. Peço um dos polêmicos motoristas de aplicativos, para me levar do Santo Antônio ao Prado. Chove muito. É uma quarta-feira de céu nublado, plúmbeo, toda a imensidão cinza do firmamento. Naturalmente, além da perda da caneta, também perdi meu divertido guarda-chuva, em um sábado passado, regado a choop e insônia. Meu destino hoje vai ser me molhar, pé encharcado e careca pingando.

Vamos indo pela avenida do Contorno, engarrafada graças à água que desce dos céus, como num clímax trágico de ópera. Ouço mentalmente o ribombar dos tambores, mas talvez sejam trovões. Não sou muito de separar fantasia de realidade. Adentramos o Prado, e passamos pela rua Esmeralda, Turquesa e outros minerais. E finalmente chegamos ao nosso destino, Rua Turfa, 87. Procuro pelo olhar o tal carro abandonado, sucateado, que já deve ter vivido dias de glórias, numa manhã de domingo do século passado, tão passado que o chamamos de século XX.

Encontro o veículo parado (lógico) dentro de um quintal (ou seria garagem?) a céu aberto. O pingar da chuva martela o aço corroído e enferrujado. Não sou capaz de dizer qual seria a cor original do ex-possante. Me molhando muito, envergo meu olhar para pequenos detalhes do veículo. Na frente dele, se lê ‘P L Y O U T H’. No vidro traseiro, um adesivo ‘BH FM’. Penso que o rádio do carro é de tempos anteriores ao FM. Se bem que nem sei quando surgiu a distinção entre AM / FM. A pesquisar, esqueço o comentário.

Amaldiçoando a perda do meu guarda-chuva, encontro uma senhora, lá com seus 57 anos, caminhando apressada, e reclamando da loja, que tenta entrar, mas que sempre (segundo ela) está sem ninguém para atender. Com o bloco de anotações já molhado (como eu vou ler isso depois?) a interpelo. Me apresento, digo da minha curiosidade para com o carro aparentemente abandonado, e pergunto se alguém mora por ali. “Olha moço, o que eu sei, é que mora aí um senhor. Ele dorme aí, mesmo com o estado da casa. Na parte da manhã ele geralmente saí, não sei se para trabalhar. Mas saber mesmo, eu não sei quem é. Pergunta na padaria”!

Subo o quarteirão, uns poucos metros e chego a padaria do bairro. Lembro-me agora enquanto redijo que poderia ter anotado o nome do estabelecimento. De toda maneira, sento na banqueta, e peço um cafezinho. Prefiro um pingado, mas vamos de café mesmo. Com minha manha de malandro santista, tento me enturmar, iniciando uma conversa de futebol, com um companheiro que come uma suada coxinha, embevecida no óleo. Uma artéria do meu coração dá um duplo twist carpado, só de olhar aquela fritura. Com um prazer orgástico ele come o salgado com uma dentada profunda e incisiva.

Pergunto a todos os presentes, duas atendentes e alguns comensais, se sabem me dizer a história por trás deste carro, e desse misterioso morador, que aparentemente mora sozinho de todo. Me diz isso, um senhor que está sentado ao balcão: “Nesse número 87 da Turfa, mora um senhor, que aparenta ser uma espécie de andarilho. Ele tem, sei lá, uns 60 e poucos anos. E ele mora isolado lá. Não se mistura com a vizinhança. A companhia dele, a única companhia, é um cachorro. Ou será que é um gato? Um bicho, com certeza”. Questiono sobre o carro, quanto tempo aquele carro está lá a mercê das intempéries do clima? “Ah! Já tem mais de vinte e cinco anos”.

Curioso, saio rapidamente da padaria, e vou me encharcar na porta da casa. Observo um cadeado no portão. Concluo, se há cadeado, há o que se proteger, então, muito provavelmente os moradores do entorno estão corretos, vive-se alguém nessa casa tão mal cuidada. Ouso dizer, abandonada. Muito da pintura branca está carcomida pelo tempo. A parede está toda descascada. O tempo chuvoso salienta o clima melancólico daquela casa, que já foi um lar, mas que hoje, é um retrato abandonado da passagem do tempo. Espremida entre um prédio de apartamentos, e uma casa bem cuidada e ocupada a sua esquerda. Olhando fixamente para a janela que dá para a rua, tenho a nítida sensação que alguém me olha de volta. Lembro daquele aforismo do Nietzsche: “Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.”

Volto a padaria, lá é um ponto de encontro bem movimentado por pessoas do bairro, creio que é o melhor local para encontrar alguém que por ventura conhecesse mais sobre esse homem, que até então ainda não sei nem o nome. Como a rotatividade de clientes é grande, encontro a lista de presentes completamente renovada, mesmo só tendo me ausentado por poucos minutos. Dessa feita, prefiro não fazer preâmbulos, começando conversa sobre política ou futebol (assuntos intermináveis e além disso, chatos). Um trio de homens, entrados nos cinquenta e poucos faz uma pausa no trabalho tomando um café com pão de queijo. Os pergunto se moram na região, e eles confirmam minha suspeita de trabalharem no bairro. Pergunto se conhecem o misterioso habitante do número 87, e começam a contar histórias.

“Olha, eu acredito que esse senhor não bate bem da bola. Ele vive sozinho numa casa que ninguém sabe se tem luz, água encanada. E ele tem umas atitudes estranhas. Todo dia, lá pelas três horas ele sai da casa, e vai arrastando um carrinho. Desses de feira. E dentro desse carrinho a coisa mais estranha. Umas tralhas, umas roupas. Parece que ele coloca tudo que tem dentro desse carrinho, talvez por medo de deixar em casa. Ele parece ter sido abandonado de alguma maneira. Vive numa solidão, que dá pra notar”.

E o carro? Sabe da história dele? “Esse carro… é bem estranho. Eu trabalho aqui na região, tem uns vinte anos. Você reparou que não tem vidros em quase nenhuma das janelas? Pois bem, alguma alma caridosa colocou plásticos pra cobrir os buracos. No painel da frente, e nas janelas laterais. Não é bem um plástico, parece até um saco de lixo. E não adianta nada, porque quando chove, como hoje, o carro fica com todo empoçado. Pura destruição, pura ferrugem, deve dar tétano só de passar perto dessa sucata”.

Um outro homem, sentado ao nosso lado, pegou a conversa pela metade, mas parece ansioso para dar sua opinião. “Olha, esse homem é muito diferente. Esquisito mesmo. E o carro? Esse carro devia valer um dinheirão. E o tempo foi passando, e hoje não da pra saber nem qual era a marca do carro, o modelo”. Digo que percebi o nome do carro, com as letras carcomidas pelo tempo. É um Plymouth. Após uma pesquisa descubro que o Plymouth foi uma marca de carros estadunidense, que começou a ser produzida pela marca Chrysler no final dos anos 20. Após se popularizarem bastante nos anos 60 e 70, ela entrou em decadência nos anos seguintes até deixar de ser produzida no ano de 2001.

Essse homem, que se chama Valdir, me conta que viveu trinta anos no bairro, na rua Turquesa. Todo esse tempo, o Plymouth abandonado esteve ali. Acho curioso, que todos falam uma data diferente do período que o carro esteve ali, jogado as traças. Vinte e cinco, trinta anos… Penso em mim, um bebê, e o carro lá, já jogado. Minha vida foi cheia de aventuras, picos e vales, e o Plymouth lá, se deteriorando.  Será que eu vou virar bolor? Valdir me conta uma história que nada tem a ver com nossa trama, mas que achei interessante e digna de contar: Um tio dele há uns vinte anos, estava pilotando um pequeno avião, e cansado da vida, apenas o desligou, e despencou dos céus, caindo na entrada da cidade de Abaeté. Morreu-se, espatifado.

Hoje Valdir não mora mais aqui pelos lados do Prado. Vem só visitar a filha, que mora com sua ex esposa. Ela cursa o sexto período de arquitetura, na melhor universidade do planeta (meu saudosismo que diz isso), a PUC Minas. E me dá uma dica, já que estou interessado por carros velhos. Na esquina debaixo, uns colecionadores de carros antigos, deixam na calçada alguns veículos de mil novecentos e saudades. Agradeço a informação, mas digo que os bem cuidados não me interessam. Eu gosto é de ferrugem.

Na porta da padaria para um policial militar, lotado no batalhão da rua Platina. Ele é o soldado Kainan Belato. Questiono se existe alguma espécie de proteção especial ao carro. Ou se talvez o proprietário do carro esteja cometendo algum crime, alguma infração ao deixar o carro ali jogado. “Olha, crime mesmo, ele não está cometendo. Está dentro da casa dele, lá ele pode fazer o que quiser. Mas o que me incomoda é que eu acho que esse veículo pode ser um foco de doenças. Por acumular água parada. Pode dar cria pra dengue, chikungunya. Se não me engano, existe uma portaria da prefeitura, que diz que se um agente de combate a dengue observar um foco da doença dentro de uma casa, ele tem o direito de entrar no interior da residência. Mas acho que isso nunca aconteceu por aqui”.

Sobre o morador, o soldado Kainan também tem sua opinião: “Eu trabalho aqui na região há uns quatro anos. Se eu vi esse senhor umas três vezes foi muito. Mas todas as vezes que o vi, ele carregava esse carrinho, com uma tralha desconexa. Mas ele me parece uma boa pessoa, na dele. Acho que se uma assistente social visse o caso, talvez pudesse ajudá-lo”. Conta-me mais uma outra história de difícil confirmação: “A pouco, uns meses atrás, um morador de rua entrou na casa. Parece que ele buscava abrigo, e não sabia que a casa tinha um morador. Ouviu-se um barulho lá dentro e o morador de rua, saiu corrido”.

Reúno as informações que tenho até agora sobre o morador do número 87: Parece ter uns 60 anos. Outra pessoa me contou que acha que ele é vigilante. Carrega todos os dias, seus pertences, e com eles vai a local indeterminado, para retornar com eles durante a noite. Mora sozinho. É um eremita urbano, um solitário. Não é nem um pouco amistoso com estranhos. Pronto, já descobri tudo que a padaria poderia me informar. Uma última informação. Uma senhora Dona Leni, que tem uma loja na rua talvez possa me ajudar na busca de informações. Vou então até a loja.

Olho pelo lado de fora, e observo os itens na vitrine. Muitos artigos natalinos. Coisas de papelaria. Um menino Jesus, num presépio, com até um burrinho a tira colo. Entro no estabelecimento e pergunto sobre Dona Leni, ao senhor que vagarosamente me atende. Chama Lucílio e é esposo da Dona Leni. Ela não está presente, mas Seu Lucílio me diz que ela não sabe nada sobre a história de William. Pronto. Laudas e milhares de caracteres depois descubro o nome do morador solitário. William.

Lucílio: “O William não se dá com a vizinhança. Tem uma mágoa, sei lá de que. Parece que a casa e o carro estão envolvidos em uma disputa de herdeiros. Mas fica nessa, e o imóvel vai deteriorando, o mato vai tomando conta e o lugar enche de bicho. Eu to aqui, desde 1982. E o carro tá aqui desde essa época. É muito tempo, tempo de esquecimento, tempo de abandono. Mas tenta ir lá, talvez ele esteja em casa”.

Finalmente, debaixo de torrente d’água, chego a grade. Amaldiçoo a perda do meu guarda-chuva. Quem seria, como seria William? Observo longamente o Plymouth. Vejo a placa amarela de cor, não de tempo: AD8223. Uma enorme poça, debaixo dele, observo quando olho me abaixando. Escorrego no momento de me levantar. Samba Jambô. O mato toma conta de um corredor, na faixa direita da residência. Do lado esquerdo, plantas conquistam espaço. Trepadeiras e aquelas quebra pedra, guerreiramente se embrenhando no meio do concreto. Na porta de entrada, percebo agora, um ornamento natalino. Um Papai Noel, subindo por uma chaminé. Acho singelo, esse pequeno ato de cuidado, contrastando com o restante do combalido cenário.

Com os dedos amarelados pelo cigarro, bato palmas, e emendo um “ô de casa”. Sem sucesso, ninguém me responde. Me sinto um tanto ridículo, ensopado e falando sozinho, uma figura trágica e encharcada. Faço um bom cenário, com aquela casa, aquele carro, aquela chuva. No canto, entre a grade e o passeio, um tanto de fezes de animal. Será indicio de que William tem um animal de estimação por companhia? Não saberei se não perguntar. Mas para perguntar, eu preciso ser atendido. Insisto, bato mais palmas, chamo por William, e ouço finalmente uma movimentação na casa.

A porta da casa se abre vagarosamente. Entre aberta, uma cabeça surge. Percebo um senhor, desconfiado. Me apresento. Digo, sou jornalista, e vim fazer uma matéria sobre o carro, tão abandonado. Ele fecha a porta e volta pra dentro. Solto um palavrão enquanto tomo a chuva, que caí mais forte. Demoram uns longos minutos, e eu fico na dúvida se esse senhor vai voltar a porta. Reflito se seria uma boa eu chamá-lo novamente. Enfio meu tênis numa poça d’água. Xingando até a última geração dos deuses do clima, ouço o arrastar da porta.

Sem se apresentar, William (concluo) me pergunta o que eu quero. Ele é um senhor, moreno de sol, com cabelos brancos, espalhados pela cabeça. Usa uma camisa verde, e uma calça caqui surrada. Repito que sou jornalista e tergiverso falando que meu interesse é o Plymouth. Ele concorda em falar, mas ressalva “bem, sobre o carro eu converso, mas sobre a casa não. Não posso falar nada, porque o imóvel está em xxx”. Não ouço bem, por causa da chuva, então pergunto novamente, ‘está em que’? E ele “está em inventário. Discussão de herança”.

Acho por bem amaciar William (que até então não falou seu nome) com perguntas sobre o carro, que nesse momento deixou de ser o foco de minha matéria. Quero mesmo é saber a história desse homem, que está me fazendo tomar um banho de chuva. Pergunto de quem era o carro? Ele diz que o Plymouth (faz questão de dizer a marca, símbolo de status) 6 cilindros, de 1950. Conto mentalmente, os sessenta e sete anos de existência do carango. “E qual era a cor dele? É verde”? Não. Era azul, o famoso azul calcinha.

Em seguida, após essa rápida conversa, ele me pergunta se eu não sou corretor de imóveis. Corretor de imóveis? Vestido desse jeito, com essa careca espectral e calça jeans desbotada? Ele reafirma que seu eu for corretor, e estiver tentando especular sobre a casa, ela não está a venda. Essa parte eu já entendi. Queria mesmo é que ele me convidasse pra entrar pra poder sair debaixo desse toró.

Após um hiato da conversa, William (mais uma vez, repito que ele não se apresentou a mim) me conta que o carro pertencia a um senhor, já falecido (faz quanto tempo?). Chamava Adegenor Araujo (acho que se grafa assim). Repito pra ver se entendi: “Adegenor Araujo”? Ele fala: “Como você sabe o sobrenome dele”? Falo que ele acabou de me dizer. Desconfiado, ele ri e diz: “não falei nada. Você já sabia do nome. Se você não é corretor, é da prefeitura”. Me pergunto o que teria acontecido com esse homem, para deixá-lo tão desconfiado?

Pergunto pela terceira vez seu nome, e ele me diz, meio contrariado William Araújo. “O carro vai ser vendido para uns colecionadores de São Paulo. Eles vão restaurar o carro. Vai ficar como novo”. Intimamente eu duvido que alguma restauração dará conta de revitalizar essa carro tão destruído. “Pois bem, se você for realmente jornalista, pode fazer essa matéria, mas deixa claro que o carro já está vendido”. E a quantos anos afinal, ele está ai? “Faz uns 30 e poucos anos”. E porque ele foi abandonado às erosões do tempo? “O antigo dono faleceu, e ninguém pensou em movê-lo”.

Tento explicar para William, que além do carro, eu queria saber quem seria o dono dele. Que isso enriqueceria minha matéria. Ele volta ao receio. Pergunta-me novamente se não sou da prefeitura. Mostro meu crachá pela décima vez. E ele diz: “olha, eu acredito que as pessoas devem ser o mais correta possível. Você talvez seja jornalista mesmo. Mas você não está aqui a toa. Talvez você esteja aqui pra fazer essa matéria. Mas essa matéria vai ser usada pra fazer especulação imobiliária. Acredito nisso”.

Concluo, já enfastiado pela chuva, que o máximo que poderia arrancar daquele homem, eu já tinha conseguido. Digo que vou retornar, com meu fotógrafo, para registrar o Plymouth. Me despeço. Ele bate a porta. Me deixando na chuva.