Minha longa viagem: uma tarde em ônibus sem trocador

No ônibus sem trocador, motorista dirige e dá troco ao mesmo tempo

Transporte, uma das queixas inequívocas de praticamente todos que moram em grandes cidades (e nas pequenas também). Difícil de encontrar quem está feliz de se meter horas por dia, em caixas de aço e ficar respirando fumaça de óleo diesel. Há aqueles bravos, que colocam seu corpo como para-choques e cavalgam bicicletas. Mais doidos que heróis, ou mais heróis que doidos. É a fala comum que um ciclista a mais é um carro a menos nas ruas. O problema é quando mesmo com menos carros, ainda há carros demais. Todo mundo disputando espaço, se acotovelando.

Após o extenso preâmbulo, voltemos ao tema da vez, que o leitor mais atento já deve ter percebido, é a relação entre transporte e população. Existe um dispositivo legal, uma lei municipal daqui de Belo Horizonte, de setembro de 2012, que versa sobre a obrigatoriedade da presença de agentes de bordo (os famosos trocadores) em ônibus da capital. É dito que a presença deles é obrigatória durante todo o tempo, tirando as exceções, que são várias: de madrugada, não; feriados e domingos, também não; ônibus suplementares, não; ônibus do Move saídos das estações, não. Ou seja, é sempre, só que não.

Passageiros embarcando com vagareza no centro de BH. Fotos: Maick Hannder/BHAZ

“Converse com o motorista apenas o essencial”…

Meu amigo leitor motorizado talvez se pergunte: para quem eu pago a passagem, já que nesses coletivos não tem cobrador? Respondo a obviedade: paga para o motorista. Isso implica que além de dirigir, tomando cuidado com curvas, imperfeições na via e trânsito complicadíssimo, o motorista ainda tem que pensar o tempo todo em dinheiro. Dar troco, contar moedas, dar informações ao passageiro, etc. E ainda vem escrito no veículo o pedido para que os passageiros conversem com o motorista “apenas o essencial”, que, agora, ficou muito mais amplo.

Não sei bem onde no país surgiu essa moda de ônibus sem trocador. Minha primeira viajem assim foi no Rio de Janeiro, com o motorista sentando a pua naqueles amplos corredores. E eu, meio roceiro, estranhei aquela atribuição do motorista. Para mim, motorista tem é que dirigir. E não é fácil dirigir numa grande cidade. Penso no stress do motorista que tem que decorar o caminho da linha, se enfurnar no pega pra capar que é o trânsito e ser responsável por um bólido de não sei quantas toneladas. Tudo isso e (me repetindo) cuidar do dinheiro. Que se faltar, sai do bolso dele.

Esse é o lado do motorista, que com uma canetada, do dia pra noite, teve um aumento significativo em suas funções. Mas a situação é ainda pior para os trocadores, que agora vivem sob ameaça de demissões, já que suas demandas foram suprimidas.

Claro que minhas impressões não têm caráter de ciência, mas a ideia aqui é contar uma história. Então, cabe citar um mini exemplo. Lembro-me de ter pego o 1170 semana passada, na Avenida do Contorno. Eram oito da noite e o ônibus não tinha cobrador. Será que estou correto? Não sei, as viagens de ônibus se parecem todas.

Para viver, tem que sair do quarto. Então, após pesquisar, decidi fazer algumas viagens. Comecei da forma mais simples. Fui até a esquina debaixo da minha casa e peguei o suplementar. O S20. São aqueles de cor laranja (ou amarela, dependendo do daltonismo). Esses trafegam, quase em sua totalidade, sem o agente de bordo. O motorista me conhece, pelo menos de vista. Embarco, após esperar cerca de meia hora no ponto, e dou a ele, meio que por troça, uma nota de R$ 20. Me pergunta: “Tem cinco centavos?” Eu digo que não. Fazendo cara feia, e ainda dirigindo, ele me passa o troco de R$ 15,95. Acho esses cinco centavos do preço da passagem uma galhofa das autoridades. Mas deixo pra lá.

Assento vazio onde estaria um agente de bordo. Uma paisagem que tende a ser cada vez mais comum nos ônibus de BH

Cadeira vazia do trocador: transição entre o passado e o presente. Ou o futuro

Chego até a roleta. De frente a ela, um melancólico lugar vazio, onde deveria se sentar o trocador. A danada da roleta não gira, e eu grito ao motorista para liberá-la. Mais uma vez,conversando com o motorista, mais uma vez, deixando a atenção dele difusa.

Saio do Cruzeiro, a caminho do meu ponto final, que fica no bairro Palmeiras, aquele depois do Buritis. A viagem é longa. São mais de 12 quilômetros e, segundo o Google Maps, o caminho demoraria uma hora e meia para ser percorrido. Do lado esquerdo do veículo, bate sol através da janela. Do lado direito, os assentos estão ocupados. Vamos tomando um bronzeado então. Sol, fonte de vitamina D. Imagino que não seja lá muito saudável o bronze a bordo de um coletivo municipal.

Conforme os pontos vão passando, a rotina se repete: sobem e descem os passageiros e, a cada parada, o motorista dá um pause na direção e se posta a contar moedas, que ficam em um pequeno caixa, à direita de seu assento de condutor. Justiça seja feita: muitos passageiros nem olham para o motorista e vão logo passar seu cartão no aparelhinho. A sociedade digital e telemática democratizou-se. Quase todos já se adequaram aos tempos modernos.

Matéria boa tem que ter personagem. Porém, com meu radar ligado, não noto ninguém que me desperte atenção nessa primeira meia hora de viagem. Aumento meu escopo. E puxo papo com uma menina, em roupas de colégio. “Teve aula hoje? E o feriado?” Ela estranha minha iniciativa, talvez receando que eu seja um dos milhares de tarados que surgem como germes nos ônibus do país. Mas, como estou longe dela, e tenho lá uma careca amistosa, ela me responde. “Tive aula sim. O colégio não enforcou”. E pergunto: “O que você acha desses ônibus sem trocador? Desculpa a curiosidade, é para o meu tcc”. Rio. E ela: “Ah, é ruim, né? Sei lá. Mas fico no celular e nem vejo o que acontece dentro do ônibus”. E, dito e feito, coloca o fone de ouvido e começa a ouvir suas conversas, suas músicas, suas adolescências.

Os pontos vão passando, e vou vendo a cidade por trás das janelas do ônibus. Já estou na avenida Mário Werneck quando me bate uma vontade monstruosa de fumar meu Marlboro vermelho. Percebo que, no ponto final, será uma boa hora para interpelar o motorista. Desço do veículo e chego perto do condutor/trocador. “Vamos ficar muito tempo aqui no ponto?’ Ele: “Nem tanto. Uns quinze ou vinte minutos e começamos outra jornada”. Me conta que faz cerca de oito jornadas diárias. “E sempre sem o trocador?”, pergunto eu a ele, que me responde logo em seguida: “Nessa linha, sim. Viajo sozinho”. Continuo: “E o que você acha dessa medida, que tira a obrigatoriedade de agentes de bordo?’ Ele: “Ah, é muito ruim. Mas, pelo menos a gente recebe uma bonificação por acumulo de função. Tava ruim, mas parece que melhorou”, afirma.

Motorista com atenção difusa dando troco enquanto dirige o coletivo. É como assobiar e chupar cana ao mesmo tempo.

Número de postos eliminados chega a 400, afirma Sindicato

A situação de transporte na cidade está longe do ideal. Já cumprimos a necessidade de passar essa informação. E, do lado do sindicato dos trabalhadores rodoviários da cidade, conversei com Luciano Gonçalves, assessor de imprensa do mesmo sindicato. Ele me informou que, nos últimos dois anos, cerca de quatrocentos agentes de bordo foram realocados. Não necessariamente demitidos, mas alguns desses foram, sim.

“Qualquer tipo de extinção de cargo precisa de uma realocação. Não se pode demitir simplesmente. O sindicato fica de olho nisso”, explica Luciano. Mas, conforme já disse no início do texto, há uma lei municipal que dispõe sobre a obrigatoriedade da presença dos agentes de bordo. É dito nessa lei que o motorista pode também controlar passagens. Mas, da maneira como está descrito na lei, o motorista está enquadrado como aquele que desempenha dupla função. E deve receber um abono no salário para contemplar essa diferença.

Luciano diz que o sindicato é contra essa medida, que limita a presença dos trocadores nos ônibus. Citou-me como exemplo uma situação em que um cadeirante precisa entrar no ônibus. Sem o agente de bordo, o próprio motorista tem que descer do veículo para colocar o deficiente físico dentro do carro. Gera transtornos e atrasa a viagem. Mais um acumulo de função.

Se a situação em BH já é complexa, o caldo azeda mesmo no restante da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). É uma portaria da Secretária de Estado de Transporte e Obras Públicas (Setop) que regulamenta a presença de trocadores em ônibus que trafegam na RMBH. Nela, é dito que a cobrança de passagens somente é realizada com o veículo parado. Por isso, não há risco de acidentes. Mas é só fazer uma viagem em qualquer ônibus para se comprovar que, na prática, os motoristas manuseiam o dinheiro com o veículo em movimento. Culpa do condutor?

Máquina leitora de cartão de passagem de ônibus: algoz de trocador

Na segunda viagem, os mesmos problemas de sempre

Para atestar a qualidade do transporte em ônibus intermunicipais, eu me encaminhei para o centro de Belo Horizonte, para a segunda corrida do dia. Na rua da Bahia, esquina com Augusto de Lima, espero por vinte minutos o 2290, que me levará ao bairro Nacional, em Contagem. Antigamente, os ônibus dessa linha eram aqueles vermelhões, ônibus grandes que ligam Belo Horizonte aos demais municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte.

O ônibus chega e, logo de cara, muitos embarcam. Percebo que farei essa viagem de pé. Sinto uma alegria escondida, por não usar todos os dias esse transporte. O valor da passagem também assusta. É R$4,60, quase um real a mais que os ônibus locais. Conto as moedinhas, o troco do pingado, e pago certinho o valor para o motorista, que, no tempo de dar o troco e receber as passagens, fica quase cinco minutos embarcando os passageiros.

De frente ao Mercado Central, embarca mais uma leva de passageiros. Sobe uma senhora, já idosa, carregada de compras. Levanto do meu trono de indiferença e pergunto se ela quer ajuda. Como ainda não passei para a parte de trás do ônibus, vou até ela e carrego um pesado pacote de ração. E mais outro, e mais outro. Penso naquela senhorinha carregando carga tão pesada e pergunto: “É pra quem essa ração toda?” Ela vai contando moedas e percebe que lhe faltam dez centavos. Dou a moedinha para ela. “Essa ração aqui é pro meu pequeno zoológico. Tenho gato, tenho cachorro e periquito”.

Consigo um lugar e ela senta-se ao meu lado, já na parte de trás do ônibus. Enquanto isso, lá na frente, o motorista ainda conta moedas e dá troco. Mais uma parada, mais tempo vagaroso e quente, dentro da caixa de aço ambulante. A senhora, de nome Tânia, conta-me que é viúva, e que teve a sanidade salva pelos animais. “Eu sempre tive medo de bicho. Passei um susto quando era pequena. Um pato correu atrás de mim, dando dentadas. Já tomou dentada de pato? Pois bem. Dói. E a vida toda eu fiquei por conta de cuidar do meu marido, que era acamado. Quando o Almir morreu, fiquei numa solidão…daquelas de morrer”. Ela deixa escorrer uma lágrima furtiva enquanto se lembra do saudoso Almir. Entra em mais detalhes. “Foi um problema do pâncreas”. Emocionada, ela para, e eu abro um parágrafo.

Enquanto o 2290 saí da região central e pega a Rua Padre Eustáquio, dona Tânia afofa o saco de ração e o coloca entre as pernas.  “Foi então que encontrei, ainda enlutada, um cachorrinho, pequeno, fraquinho, na porta da minha casa, que fica lá em Contagem. Comecei a cuidar dele e fiquei com mania. Ai fui arrumando mais. Gato eu tenho um monte. Até de passarinho eu comecei a gostar. Só não tenho pato, porque de pato eu não gosto”. E concluí: “Sabe? Cuidar faz bem”.

Ônibus 2290, cheio, mas fora da hora do rush. Realidade muito comum no transporte coletivo de Belo Horizonte

Discussão sobre troco, entre passageiro e….. motorista

O ônibus vai passando e, para a minha sorte, um passageiro começa a reclamar do troco com o motorista. Refiro-me sorte, ao potencial de isso render texto. Fico com dó do motorista e do passageiro. Fico ouvindo o entrevero: “Te dei R$ 20. O troco é R$ 15,40”. Motorista: “Deu R$ 5. O troco é R$0,40”. E ficam nessa. “Cinco, vinte, cinco, vinte”. Quantas vezes isso deve acontecer por dia?

Já estamos na Avenida Abílio Machado e o ônibus está o mais cheio possível. Fico meio espremido, carregando no meu colo uma bolsa de um menino de colégio. Como são barulhentos esses meninos! Eles passam todos com o cartão de ônibus. Mais uma vez penso que realmente a automação dos processos tende à extinção dos empregos. Nesse exemplo, significa que cada pessoa que usa um cartão de ônibus, contribuiu para se ter um cobradora menos. Essa é a malandragem do mundo capitalista. Espremer até não poder mais. Novamente, afirmo que não há aqui julgamento de certo ou errado.

Já passando do limite de Belo Horizonte, chego a Contagem. Acho que no bairro São Joaquim. A rotina continua a mesma. Sobe gente, desce gente, batem boca com o motorista. Troco certo, troco errado, ônibus arranca e para logo na frente. A viagem é assim todos os dias, imagino eu. BH é o Texas.

Ponto final na rua da União, no bairro Nacional. Descem os últimos passageiros. Percebo que dona Tânia já desceu e que os garotos do colégio saem pulando e fazendo algazarra, adentrando no bairro. Estou longe de casa, e sem aplicativos de celular, nem saberia como voltar. Mas, espero fumando, no ponto final, enquanto o motorista também fuma um mata rato fedorento. Chego a ele: “Cansado, motorista?”. Ele: “Muito”. “Fazendo a função de duas pessoas, também né?” E o motorista, de nome Cleber: “Cara. Isso é trabalho. Trabalho a gente não escolhe o que fazer, nem hora. A necessidade é mãe da ação”.

Retorno ao ônibus, e no caminho de volta, perto da rodoviária o coletivo está lotado novamente. Preso no trânsito, reflito um pouco sobre essa tarde em que tive um vislumbre de como a vida na cidade é difícil para alguns. Alias, é dura para todo mundo. Mas as rochas são mais ásperas para os outros. Conto as moedas, pago o motorista. E desço.

A gaveta do trocador vazia, sem seu ocupante defronte a ela. Sinal dos tempos