Mais perto e mais comum do que você pensa: Minas registra um estupro a cada duas horas

Divulgação/Ministério Público

Após passar o dia fora de casa trabalhando, a jovem Gabriela*, de 18 anos, seguia a rotina normalmente na quarta-feira (15): embarcar no coletivo 3302 por volta das 21h para voltar à residência, na região da Pampulha. No entanto, a tranquilidade começou a ser substituída pela preocupação quando ela pecebeu que estava sendo encarada por um homem forte, com jaqueta de couro preta e jeans. A preocupação se tornou pânico quando o homem puxou o cabelo dela.

Desesperada, Gabriela desce na movimentada avenida Carlos Luz, a Catalão, próximo ao Shopping Del Rey. O homem vem atrás. Ela acelera o passo. O criminoso também. Enfim, o pavor se concretiza: o estuprador agarra a jovem pelo braço, arranca o sutiã dela, a abusa sexualmente. Ela oferece todos os pertences. Em vão. “O autor não queria a bolsa e sim a vítima”, reproduz o relato da vítima o militar que registrou o crime.

Alguns dias antes, Izabela* também estava chegando em casa, no bairro Imbiruçu, em Betim, por volta das 18h40, como um dia normal. A poucos metros da residência, percebeu um forte farol de carro atrás dela e, em seguida, um homem se aproximando. O criminoso enfiou as mãos dentro das vestimentas da jovem de 24 anos, apalpou seus seios e suas partes íntimas.

Izabela chegou a cogitar que fosse seu marido fazendo uma brincadeira de mau gosto. Quando viu que era um desconhecido, entrou em pânico, gritou, se rebateu. Mas o criminoso só se desvencilhou quando um outro veículo passou pelo local. Então, o homem entrou em um carro prata, que estava com a luz alta acesa, e fugiu tranquilamente.

Os casos seriam incomuns atrocidades se não fosse por um detalhe: são extremamente corriqueiros. Levantamento inédito realizado pela Bhaz aponta que, apenas no último mês, 338 ocorrências de estupro em Minas Gerais foram registradas pela Polícia Militar. O número representa uma assustadora média de 11 crimes sexuais todos os dias em terras mineiras. A cada duas horas, alguém é vítima de estupro no pacato Estado coberto por montanhas.

Da noite para o dia, a filhinha de Aparecida* de 11 anos sumiu em Ubá, na Zona da Mata. A menina havia visitado um casal de amigos da família por volta das 20h. Lá, foi dopada durante o jantar, começou a se sentir atordoada e foi levada para a cama pela jovem de 20 anos. A garotinha chegou a ver a adulta abusar dela sexualmente, enquanto o namorado dela, de 23 anos, assistia à cena e se estimulava, antes de apagar. No dia seguinte, denunciou o crime, mas nada foi feito: segundo o médico que atendeu a menina, a unidade de saúde não tinha estrutura para fazer exame de corpo de delito e toxicológicos.

Algumas das centenas de ocorrências deste mês, como o homem que estuprou e arrancou o coração de uma menina de 10 anos em Buenópolis (Central) e a jovem vítima de estupro coletivo por servidores do Estado em Bom Despacho (Centro-Oeste), recebem holofotes. Mas a maioria nem mesmo é denunciada às autoridades.

“Desde o ano passado, já atendi seis vítimas de estupro e nenhuma delas quis noticiar. A mulher enfrenta uma série de obstáculos na falta de estrutura para atender a vítima, tanto de profissionais da saúde quanto de segurança. Muitas vezes ocorre a revitimização, quando, se não bastasse o estupro, a mulher ainda tem sua palavra colocada em xeque, o processo de apuração questiona muito mais a vítima do que o agressor”, afirma à Bhaz a advogada criminalista que atua no Coletivo Margarida Alves, Fernanda Vieira.

No fim da tarde em Juramento, no Norte de Minas, um homem casado se encontrava com Juliana*, de 13 anos. Como as famílias eram amigas, o criminoso passou a ligar frequentemente para a menina. Prometeu até que largaria a esposa para ficar com ela. Um dia, Juliana cedeu e aceitou encontrá-lo na praça da cidade. O homem buscou a criança em uma moto, a levou para um balneário local e a estuprou quatro vezes.

Dos 338 casos de crimes sexuais no último mês, 190 foram registrados como estupro de vulnerável. A definição dessa prática criminosa é ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos, alguém doente ou deficiente mental. Em suma: “vulnerável é a pessoa incapaz de consentir validamente o ato sexual, ou seja, é o passível de lesão, despido de proteção”.

“Sou assistente social e o número de crianças, adolescentes e adultas violentadas é impressionante. Não há uma diferenciação quanto à idade. E, infelizmente, essa quantidade, mais de 300 ocorrências em um mês, é corriqueira”, afirma Ana Maria Miranda, da Frente de Mulheres das Brigadas Populares, que realiza trabalho de atendimentos às vítimas e de combate à cultura de estupro.

Por volta das 20h, Silvia* resolveu fazer compras em um supermercado de Ibirité, na Grande BH. De repente, a mulher de 29 anos percebeu que estava sendo seguida. Pensou que pudesse ser imaginação dela, mas evitou ficar sozinha no estabelecimento. No entanto, quando achou que o rapaz havia ido embora, ele apareceu e atacou, a agarrou pelo braço com violência e passou a mão nas partes íntimas. Silvia só conseguiu interromper o abuso quando gritou e clientes e funcionários a ajudaram. O criminoso de 38 anos, pós-graduado, afirmou aos militares que tem família e estava envergonhado.

(Baseada no texto TRINTA HOMENS, da colunista da Bhaz, Luara Colpa, a campanha#MexeuComUmaMexeuComTodas é um incentivo à união feminina em prol da segurança da mulher)

“Para modificarmos esse cenário de violência, temos que contextualizar os sistemas patriarcal, machista e capitalista. Um completa o outro. O Machismo vem de ordem estrutural, que trata a mulher como mercadoria. Olham para o nosso corpo e enxergam um pedaço de corpo em promoção no açougue. O patriarcal nos oprime a ponto de impedir a evolução da vida da mulher, o homem deve comandar nossa vida, impedir que a gente saia de casa para procurar emprego, independência. Por fim, o capitalismo, que explora nossa mão de obra em locais precários, com remuneração precária”, afirma Ana Maria Miranda.

O sossego do bairro Franciscadriângela, em Ribeirão das Neves, foi interrompido por volta das 21h. Aline*, aposentada de 65 anos, berrou ao ser atacada por um jovem de 25 anos. Ela estava na sacada da própria casa quando o criminoso a atacou e a abusou sexualmente. Aos policiais militares, disse que estava apenas brincando com a mulher.

“Em Belo Horizonte, ainda não temos uma política pública voltada para esse tema. Muitas vezes são homens que atendem a mulher violentada, sem preparo algum, sem um atendimento técnico específico para o momento. Em muitos locais, nem existe uma delegacia das mulheres. Enquanto isso, a busca de uma sociedade justa em violência ocorre a partir da organização popular, do feminismo”, conclui a assistente social.

Conforme pesquisa do Ipea, 88% das vítimas de estupro são mulheres. Metade das vítimas é composta por criança de até 13 anos de idade. Violentadas entre 14 e 17 anos compõem 19% do total. Em todas as faixas etárias, o local mais frequente onde ocorrem os crimes é o lar: 79% entre crianças, 67% entre adolescentes e 65% entre adultos.

Estrutura do poder público

Por nota, a Prefeitura de Belo Horizonte afirmou que, nas unidades municipais de saúde, disponibiliza um profissional para acompanhar o atendimento à vítima de violência contra mulher. Além disso, a administração municipal disse que distribuiu, em 2015, um manual batizado de “Guia de Atendimento a Mulheres em Situação de Violência” para orientar os profissionais da saúde.

Já a Polícia Civil afirmou que, no Estado mineiro, “existem 71 unidades de atendimento à mulher responsáveis por atender a vítimas de violência doméstica e crimes contra a dignidade sexual”. Além disso, há uma unidade em Belo Horizonte que funciona 24h por dia e, quando a vítima possui menos de 14 anos, tem acompanhamento psicológico durante o depoimento.

“Em Belo Horizonte, todas as delegadas da Delegacia Especializada de Atendimento á Mulher são mulheres, dessa forma todos os casos são atendidos por pelo menos uma mulher, responsável por presidir as investigações”, diz o órgão.

Leia a nota da PBH na íntegra:

A Rede SUS-BH oferece atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, com o objetivo de acolher as vítimas, que além das consequências físicas, sofrem vários tipos de agravos mentais e emocionais.

A maior parte dos casos é de violência sofrida por mulheres de 10 a 19 anos. Em Belo Horizonte, os hospitais referenciados para atendimento à mulher vítima de violência sexual são o Hospital Metropolitano Odilon Behrens, o Hospital das Clínicas, o Hospital Júlia Kubitschek e a Maternidade Odete Valadares.

As vítimas que procuram unidades da Rede SUS, como centros de saúde, Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) ou hospitais, são acolhidas e passam por uma entrevista com um profissional do setor de Saúde, seguida de exame físico geral. Em um segundo momento, o tipo de violência física é identificado e então é preenchida uma ficha de notificação. A violência sexual é classificada como crônica ou recente. Se crônica, a paciente é acompanhada ao centro de saúde, onde faz avaliação de risco e são pedidos vários exames para verificar ou não a presença de doenças sexualmente transmissíveis. Se recente, a paciente é encaminhada para um dos hospitais de referência. Se a vítima, ao realizar a entrevista inicial, não disser que sofreu violência e no exame físico isso for constatado, o profissional é obrigado a fazer a notificação. Este documento não tem valor policial e circula apenas no sistema de saúde.

Guia de Atendimento

A SMSA criou e distribuiu aos profissionais da Rede SUS-BH em 2015 o “Guia de Atendimento a Mulheres em Situação de Violência”. O material aborda aspectos conceituais, tipos de violências, estratégias assistenciais na Atenção Primária em Saúde, fluxo de notificação e de encaminhamento para outros níveis assistenciais de maior complexidade e a Rede Intersetorial. O tema é introduzido, sem ser esgotado, diante da diversidade do assunto em questão, que merece estar sempre sendo discutido e aprofundado a cada dia. O guia pode ser consultado na internet, pelo link http://goo.gl/TZjghg.

Leia a nota da Polícia Civil na íntegra:

Em Minas Gerais, existem 71 unidades de atendimento à mulher responsáveis por atender a vítimas de violência doméstica e crimes contra a dignidade sexual. Em Belo Horizonte, são seis unidades. Dentro do Departamento de Investigação, Orientação e Proteção à Família (DIOPF), temos três Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (Deam); uma delegacia de plantão, que funciona 24h por dia; e a Divisão Especializada de Atendimento à Mulher, Idoso e Portador de Deficiência (Demid). Quando as vítimas de crimes contra a dignidade sexual são menores de 14 anos as vítimas são atendidas nas unidades policiais responsáveis por atender a crianças e adolescentes. Em Belo Horizonte o trabalho é realizado pela Divisão Especializada de Orientação e Proteção à Criança e ao Adolescente. O trabalho de atendimento à menores de 14 anos consiste na oitiva estruturada com acompanhamento de psicólogos e do delegado responsável por cada investigação. Além da delegacia de plantão da mulheres e da criança e do adolescente em Belo Horizonte em todo o estado as ocorrências são atendidas pelos plantões regionalizados. Quanto ao treinamento, todos os Policiais Civis passam por formação na Academia da Polícia Civil – ACADEPOL. Os treinamentos englobam a parte tática, investigativa e também a atendimento a vítimas para coleta de depoimento. Em Belo Horizonte, todas as delegadas da Delegacia Especializada de Atendimento á Mulher são mulheres, dessa forma todos os casos são atendidos por pelo menos uma mulher, responsável por presidir as investigações.

* Os nomes são fictícios. Apenas os nomes.

Thiago Ricci[email protected]

Editor-executivo do BHAZ desde agosto de 2018, cargo ocupado também entre 2016 e 2017. Jornalista pós-graduado em Jornalismo Investigativo, pela Abraji/ESPM. Editor-chefe do SouBH entre 2017 e 2018; correspondente do jornal O Globo em Minas Gerais, entre 2014 e 2015, durante as eleições presidenciais; com passagens pelos jornais Hoje em Dia e Metro, TVs Record e Band, além da rádio UFMG Educativa, portal Terra e ONG Oficina de Imagens. Teve reportagens agraciadas pelos prêmios CDL, Délio Rocha, Adep-MG e Sindibel.

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