Minha Sessão do Descarrego: Uma noite na Universal

Painel “Giudizio Universale”, feito pelo artista italiano Coppo di Marcovaldo

Sexta-feira. Dia reservado, desde o lançamento desta seção, para colocar o cérebro e aquelas técnicas aprendidas na longínqua faculdade de jornalismo em ação. Neurastênico que sou, já acordei tendo recortes de nervosismo. Motivo: À noite faria uma coisa nova. Homem de rotina, qualquer mudança no meu calculado mundo já me apoquenta.

E caro leitor, qual seria esse catártico evento? Não hei de fazer mistério, any longer. A noite teria de ir a uma Sessão do Descarrego, na Igreja Universal do Reino de Deus. Lendo assim, não parece que merece essa quizumba toda. Sou só um adulto indo de encontro a uma celebração do sagrado. Porém, questionando toda uma série de convenções religiosas, sabia que o culto poderia mexer comigo.

Mas nenhum bom dia começa sem um cigarro. E estava sem! Fui na padaria comprar um maço, mas não me fizeram fiado! Seria o encosto expulso na sessão de mais tarde, que já se manifestava, atrasando minha vida? Não importa, vamos avançar a fita até a hora da visita ao templo, pois a pauta é sobre isso, e não sobre pigarros e tosses.

Cheguei à Avenida Olegário Maciel, lá pelas dezessete e trinta. Iria ao opulento prédio (mais que um prédio, na realidade), a Catedral da Fé. Erguida em um terreno de 8,7 mil metros quadrados a um custo estimado de R$ 30 milhões. Um salão de culto de cinco mil lugares. Grande. Caro.

Parei numa birosca em frente e comprei uma coxinha, um café e o danado do cigarro. Tive que colocar a mão no bolso no fim das contas. Mas fiz o café (fraco toda vida) durar meia hora. Na televisão passava um daqueles programas policiais. A manchete da hora falava sobre um assassino qualquer. Ou talvez sobre uma gangue de salteadores. Na verdade, pensava mais sobre o gosto insosso da coxinha, que estava fria, do que nas desgraças televisivas.

“O Juízo Final”, do artista Fra Angelico

Às seis horas, pontualmente, subo as escadarias da catedral. Nunca havia entrado no prédio, e percebo gravado na fronte do edifício: “Estarão abertos os meus olhos, e atentos os meus ouvidos, à oração que fizer nesse lugar”. Tá bom. Na porta do salão do culto, sou recebido por uma senhora que, ao responder meu boa noite, diz: “cadê seu sorriso menino? Boa noite tem que ter sorriso!”. Respondo – dessa vez sorrindo – “Boa Noite”. Ela então me conta que o culto irá começar às dezenove e trinta. Minha azia já aponta, pensando no segundo café que tomarei enquanto espero.

Adentro no salão. Pelo olho, conto quantas pessoas devem estar lá. Talvez umas duas centenas, já esperando. Atrás do altar, um vitral com uma paisagem que adivinho ser o Jardim do Éden. Uma cachoeira, um arco íris, muita mata. Nenhum bichinho ou pé de macieira. Não sei porque cargas d’água a imagem me lembra uma férias na Bahia.

Pego meu bloco de notas, e começo a preenchê-lo com ideias. Impressões. Um obreiro passa ao meu lado, e pergunto como fazer para subir no palco, na hora do descarrego. Ele de modo muito educado me explica que as pessoas já foram escolhidas, por um critério de necessidade. E que eu posso ir de frente ao altar na hora do descarrego para, coletivamente, expulsar qualquer energia ruim que paire sobre mim. Menos eficaz, creio eu – preferia um atendimento mais exclusivo.

Mesmo com centenas de lugares vagos, uma família com crianças pequenas se senta ao meu lado. O menor chora a plenos pulmões. Fico com dó do menininho. Porém, com três minutos de gritos e sussurros, fico incomodado e vou lá fora fazer uma hora, fumar mais um cigarro e tomar mais um chafé. Chá de Café.

Volto e percebo que muitas das pessoas que entram na Catedral carregam duas rosas. Penso se seria uma gafe de minha parte participar da celebração sem portar as flores. Vou conversar com uma menina que vende as rosas, na porta do templo. “Me chamo Juliana. Tenho 13 anos. Toda sexta-feira eu venho vender flores que serão usadas no culto. Cobro R$2,00 por rosa, e num dia bom chego a vender 50 rosas. Você quer uma, moço?” Respondo que não e agradeço, desejando-a boa sorte.

De volta ao meu lugar, percebo muitos idosos entre os presentes. A maior parte das pessoas carrega as rosas. Sinto-me meio nu, sem ela. Ouço um pai explicando para a filha, a umas duas fileiras de distância: “Segundos, horas, meses, anos. Isso é o tempo, minha filha.” Estranhei. A menina já me pareceu bem crescidinha para saber o que é o tempo. No som mecânico, toca baixinho um hit gospel. Só que no repeat. Olhando ao meu redor, vejo escrito na cadeira da frente: “Me liga 9834-0778.” Mando uma mensagem, com um Olá. Até agora não recebi a resposta.

Ao meu lado, uma senhora de uns 70 e poucos anos, reza baixinho ajoelhada. Ela se levanta quando o Pastor Everton sobe ao palco. Posso ouvir entre os fiéis alguns aleluias. A atenção de todos é dirigida ao pastor. Mãos ao alto! Aliás, mãos atrás da cabeça. Ao comando do pastor, todos gritam ‘sai!’. Para os demônios, os encostos, os exus. SAI! Pra não me diferenciar dos outros e também para viver a experiência religiosa integralmente, grito junto. Mãos na cabeça, que nem todos os outros.

O telão está ligado, transmitindo justamente a apresentação do pastor. O som é ótimo. Se bem que ‘ótimo’ não é a palavra certa para definir o som. Ele é alto. E o Pastor Everton grita, ô se grita. Sua presença irá afastar o diabo. Fala-se muito no Diabo nessa Sessão do Descarrego.

Começam os depoimentos. A primeira a contar sua experiência é a dona Zuma. Ela disse que estava com dificuldades para falar. Literalmente. E que a ida à Sessão do Descarrego fez sua voz voltar a funcionar. Graças a Deus. Vem então Dona Nilza, cujo filho frequentava o espiritismo. E, por causa dessa religião meio da esquisita, ele vinha sendo agressivo e estúpido em casa. Dona Nilza consagrou a rosa a ele, e o filho pródigo voltou a ser harmonia no lar.

Vêm então uns dois relatos de que a ida à igreja e a consagração da rosa ajudaram os fiéis a encontrar empregos. Volto a prestar mais atenção quando a Dona Kenia vem contar que estava com uma obra paralisada em casa. Literalmente, obra com pedreiros e tudo o mais. Para meu espanto, essa obra estava parada (como depois o pastor explicou) porque dentro de um tijolo havia um sapo com a boca costurada. Feitiçaria. Mas tudo certo, tudo ok, pois graças à presença de Kenia no culto a obra havia recomeçado. Eta Jesus Maravilhoso. Mais uma fiel alega ter tido a filha curada de uma bronquite pelo chá da rosa consagrada. Essa rosa é poderosa mesmo.

O Pastor Everton lembra que quem trouxe o dízimo está abençoado. Primeira vez em todo o processo que se fala em dinheiro. E continua em outra direção. “Uma das maiores injustiças que se pode fazer com alguém é o trabalho de macumba”. Mas não vamos temer. Pois a rosa que todos deveriam carregar (mais uma vez me arrependo de estar sem nenhuma) vai lavar nosso coração. Encosta a rosa no peito, e cante a canção da rosa. Pronto! Coração limpo.

Deu a sensação que as coisas iriam ficar mais interessantes. Pois estava na hora de o diabo ser afastado. De lá, o Pastor Everton fala “ao espírito do diabo, eu faço uma ordem, em nome do senhor Jesus Cristo!”. Agora o negócio ficou sério. Outro pastor assume o púlpito e chama todos àqueles que acreditam estar com a vida atrasada a ir defronte ao palco. Penso em me levantar, mas prefiro o conforto da minha cadeira. O pastor berra: “Você, espírito das trevas, se manifeste! Acabou pra você, encosto!”. Me lembrou duma operação policial.

Catedral da Fé (Reprodução/Gospel Mais)

E o negócio fica nessa toada de achincalhe ao Satã, até que um senhor sobe ao palco. Ele deve ter uns 40 anos, e o pastor pousa com energia a mão sobre sua cabeça. Era um possuído. Mais pastores sobem ao palco. O Pastor Everton explica que este homem foi pai de santo durante vinte anos. “Mexe com candomblé, magia, tudo que não presta.” As luzes são semi apagadas. Com uma voz rouquenha o homem fala. “Sou o Belzebu. A vida desse homem está marcada por mim. Atraso a vida dele mesmo.”

Os pastores se reúnem em volta dele. E comandam “Sai Belzebu!”. Diante de toda essa gritaria, não há demônio que resista. Ele sai do corpo do homem, que, depois de levantado, conversa agora com a voz normal. E jura dedicar sua vida a Deus. O som mecânico começa a tocar “Fogo no Diabo, da cabeça aos pés.” Confesso que, para meu primeiro exorcismo, achei um pouco rápido, o demônio não resistiu muito.

Começa um outro momento da celebração. De novo com a rosa. Dessa vez, é pra levantar a flor, e colocar junto a ela a maior nota que a pessoa puder ofertar. Se for de um valor que a pessoa não puder doar, maior será o reconhecimento de Jesus. “Está vendo aquele apartamento em Lourdes? É aonde você vai morar”. E a minha preferida: “Quando sua alma está no altar, ela enriquece”.

Deveria ser umas 9 horas, e o culto se aproximava do fim. Mais um pouco de consagração à rosa, mais um pouco de cantoria. Mais um pouquinho de falação sobre dinheiro. Dessa vez é dito, para junto do dízimo, a pessoa trazer R$ 31 para abençoar todos os dias de agosto. Não vai ser o mês do cachorro louco. Vai ser um mês maravilhoso.

“Das Jüngste Gericht”, do artista Hans Memling

Fim. Vão com Deus. Já eu, desço até o banheiro. Pela fila, dá pra perceber o tanto de gente que estava no culto. Passo no bebedouro e penso se a água do templo também é consagrada, como a rosa, ou se é só Copasa mesmo. Vou lá pra fora. Está frio. Acendo um cigarro. Penso na experiência que acabei de ter. Penso que é bom amar a Deus acima de todas as coisas. Mas me pergunto se ele deu uma passada nessa Catedral hoje.

Dou um último trago. Jogo a guimba no chão. Apago-a com meu tênis. Vou-me embora.

*Em uma das escadas do templo, estava escrito que era proibido filmar ou gravar o culto. Mas não limitava o uso do bloco de notas.

“Dante e Virgilio no Inferno”, do artista William-Adolphe Bouguereau

SIGA O BHAZ NO INSTAGRAM!

O BHAZ está com uma conta nova no Instagram.

Vem seguir a gente e saber tudo o que rola em BH!