Minha chuva, minha distância, minha Vilarinho

William Turner

Belo Horizonte. Completou o quê? 119 anos esta semana. Escrevo grafando por extenso. Cento e dezenove anos. É muito mais nova que outras capitais do Brasil, como Recife, que tem lá seus quatrocentos e setenta e tantos anos. Ou São Paulo, que também tem mais de quatrocentos, ou do Rio de Janeiro. Há de se considerar então que BH é uma cidade criança, ouso dizer, imberbe.

Eu sou belo-horizontino. Na realidade, eu não nasci aqui, na Capital das Alterosas. Mas moro aqui a maior parte da minha vida. Saio pouco. Amo a Bahia, amo aquele ar, amo aquela água, amo passar a entrada de ano lá. Mas, sendo prático, eu sou obcecado por Belo Horizonte.

Revisitando meus sentimentos, não sei direito o que eu gosto tanto em BH. Talvez sejam as esquinas. Não tem prazer maior pra mim do que sentar num botequim e ficar fumando meu cigarro (um atrás do outro), e bebericar minha cerveja (uma atrás da outra) numa esquina. E claro que isso pode ser feito em qualquer cidade do globo, mas tem uma coisa especial em Belo Horizonte. As esquinas são mais esquinas nessa terra.

Vamos voltar ao prumo, que o texto é sobre Belo Horizonte, mas não é. Uma coisa que sempre me incomodou em Belo Horizonte é a seca que recaí sobre a cidade. Como falei no parágrafo acima, não sou nascido em BH. Nasci numa cidade feia e cinza. Mas bem criança me mudei com minha família para uma cidade de praia.

Lá fazia muito sol, mas, dito e feito, toda tarde caía uma garoa fina sobre a areia e os bairros. Me acostumei a sair do colégio, e chegar encharcado em casa. Longe de me incomodar, eu sentia que a chuva era um relógio, uma certeza que a tarde iria cair. O céu iria ficar escuro e eu poderia dormir em paz, ouvindo o tec tec da água tocando o telhado.

Leonid Afremov

Para quem já leu os Cem Anos de Solidão, cabe comparação: Santos, minha terra natal é a Macondo. Uma cidade mítica, donde passado e fantasia se misturam. Um lugar mágico, terra dos primeiros suspiros e dos primeiros amores.

Já Belo Horizonte é a cidade do prático e do real. Uma cidade que fica árida a maior parte do ano, e onde as pessoas morrem. Chegamos ao coração do texto. Aqui, apesar de tanta secura, ocorre um ciclo. Nos mesmos meses do ano, o que não choveu em boa parte do calendário caí sobre a terra e devasta, xinga e destrói.

Lembro que, no ano que me mudei para cá, um ônibus lotado caiu sobre o Rio Arrudas, deixando nove mortos. E, para mim, ficou incrustada essa coisa que a cidade grande tinha perigos, que a vida era deveras frágil nessa urbe de pirambeiras e descidas.

Perdi a conta de quantas vezes, após isso, olhei em matérias de jornal que uma família perdeu tudo para a força da chuva. Pior, quantas pessoas morreram por causa de trombas d’água. O lixo acumula em bueiros, e crianças são tragadas, como em ralos desentupidos.

Tal qual um relógio bem azeitado, chegaram as chuvas em Belo Horizonte. E diferente do meu eu criança, aqui as famílias, principalmente as de áreas periféricas, olham para o céu cinza e lhes abate o medo. “Será que essa água vai destruir minha casa, meu lar?”.

Chego à redação e meu editor me informa que, no bairro Novo São Lucas, moradores de duas ruas foram instruídos pela Defesa Civil a saírem de suas casas. Eram as aproximadas Veraldo Lambertucci e Sustenido. Pego meu bloco de anotações, meu maço (quase vazio) e meu velho e tão surrado guarda-chuva.

Chegando na Veraldo Lambertucci, vejo uma rua vazia. Desse jeito não dá pra fazer uma matéria. Peço pro motorista “sobe mais, pode ir subindo”. E chego a um terreno quase baldio (o que será que define um terreno ser baldio?) onde encontro alguns moradores, à beira de uma encosta. “É aqui mesmo que eu vou ficar”.

Aproximo dos convivas e me apresento. Um deles me fala: “eu não moro aqui, mas a rua lá de casa também está toda comprometida pela chuva”. O outro, que mora no Aglomerado da Serra, fala um discurso parecido. Fico pensando que perigosa essa vida, que uma chuva pode representar que vai cair terra, pedras e lixo em cima da sua residência.

Leonid Afremov

Bato palma em frente a uma casa. Ninguém vem para fora. Procuro no bolso meu cigarro. Tem um último todo amassado. É um Minister. Para quem não é versado em assuntos tabagistas, basta dizer que é um mata rato. Acendo ele, molhado pela chuva. Segurando o guarda-chuva na mão esquerda, e o cigarro na direita, bato palma em frente a outra casa.

Demoradamente sai da construção uma senhora, de uns 60 e poucos anos. Ela se apresenta como Joana. E me surpreende com a primeira fala: “ainda bem que está chovendo. A cidade precisa da chuva, a terra precisa de chuva”.

Pergunto se ela não tem medo da chuva (sua casa é perto de uma encosta). Me responde: “olha, eu não tenho medo não. Deus acompanha. Deus protege os humildes”. Insisto que seria mais prudente ela sair de casa. Ela me diz que tem três filhos lá, e que realmente não teria outro lugar para ir. Desejo boa sorte a ela e me despeço.

Outro carro de imprensa chega. A mesma rua. Enquanto eles vão parando converso com um homem que está olhando, meio de soslaio a encosta do barranco. Pergunto seu nome e ele fala que preferia não dá-lo. “Olha, se eu falar alguma coisa e o povo achar ruim, eu posso ficar marcado. Entende?”.

Faço que não, não entendo. “Pode me chamar de Lucas então. Teve um menino por aqui que deu uma entrevista pro jornal O Super, e a galera aqui do bairro queria pegar ele de pau”. Mais uma dificuldade desses moradores… Ter medo até da imprensa. Mas, na real, a imprensa não dá muitos motivos para se confiar.

Fico ali na Veraldo Lambertucci, e me aproximo de uma casa semi construída. ‘Lucas’ me fala que ela teve as suas obras embargadas. Explica-me que toda aquela rua e as próximas são uma ocupação. Ou, como preferem alguns, uma invasão. Não sei direito os tramites legais, mas me questiono como uma casa que é em uma região invadida pode ter sua construção embargada.

Mas vou chegando mais perto dela, e vejo que tem muita lama nos entorno. Meu pé afunda no chão, e meu tênis fica marrom. Como é ruim viver nesse perigo. A casa ao lado, também em construção, já foi vendida, segundo Lucas. Quanto será que custa uma casa, num morro, à beira de uma encosta, com cedimento de terra, e com a probabilidade de cair a qualquer momento?

Abaixo das casas que estava olhando, num pequeno recorte de terra, vejo um homem moreno, de bermuda e sem camisa, molhado de chuva e pintado de lama. Peço seu nome e, para meu alivio, ele fala. Chama-se Gilson Cruz e, para meu espanto, está construindo sua casa ainda mais abaixo na encosta.

“Eu estou construindo aqui para fugir do aluguel. Eu pago R$ 300 por mês de aluguel. Foi a necessidade que me fez vir para cá. Aí eu peguei um amigo e comecei a construir minha casinha”. O barraco onde ele mora – e paga o aluguel – é no Morro do Papagaio. E ele me conta que prefere vir para cá, nessa invasão no Novo São Lucas.

Avenida Afonso Pena. 1930

Estou decidido a ir embora quando chega outro carro da imprensa. Está concorrida a rua hoje, hein? Um fotógrafo bate cliques a esmo e, capturando em flashes alguns dos homens que estão lá, sofre protestos dos mesmos. “Apaga essa foto aí. Não quero aparecer no jornal amanhã não”.

Chega outro carro. Esse da Defesa Civil. Continuo em meu papel de jornalista, e converso com os responsáveis. O geólogo, Saulo Godinho, diz que essa área (conforme já foi percebido e muito falado nessas linhas) é de alto risco de queda. A Defesa Civil tem o trabalho de fazer o monitoramento, e não tem o poder de tirar ninguém das casas. O que eles podem fazer é orientar.

A Defesa Civil me informa também que, naquela rua em que eu estou e na rua Sustenido, tem mais de 200 famílias morando. “Os moradores daqui dizem que não tem risco de cair terra. É muita complicada a situação porque eles não querem sair”. Essa ocupação tem cerca de 6 anos. Onde moravam antes dessa situação de medo? Impotentes, ou com um interesse difuso, ficamos eu e os homens da Defesa Civil, por uns momentos, parados na beira da encosta. Olhando a chuva cair.

Começo a descer a ladeira em busca do meu próximo compromisso. Mas reparo num homem que vem subindo. Ele pede para os homens da Defesa Civil uma lona. Está entrando água dentro de sua casa.

Francisco, ele me diz seu nome. Que mania chata essa de ficar perguntando o nome de cada pessoa. Me despeço de Lucas, que aponta para a rua Sustenido e diz “se tem uma família lá dentro e a água entrar, já era”. Tomara que o vaticínio dele esteja errado.

Dou uma última olhada para o morro. Uma névoa fina recai sobre ele.

Agora vou para a Estação Vilarinho, onde um temporal castigou os passageiros na véspera (ou antevéspera). O carro demora uns trinta minutos para chegar. Enquanto espero, uma moça passa fumando e, desprovido de cigarro, peço um a ela.

Digo que quero comprar, mas torço pra ela não aceitar minhas contadas moedinhas. Ela fala “toma aqui”. E me dá um San Marino. E eu achando que o Minister era o ponto mais baixo de minha tarde. Mas é feio não aceitar a generosidade alheia, então fumo como se não houvesse amanhã. Tomando chuva.

Após muito trânsito, chego à estação. Confundo-me entre as plataformas, passarelas de idas e vindas. Vejo ao longe centenas de passageiros embarcando nos metrôs e ônibus. Procuro por um orelhão, meu passaporte de volta daquela região tão distante. Não vejo nenhum. Meu celular não está funcionando, como irei embora deste lugar?

Mas meu problema se apequena diante da imagem de como seria a estação, tomada pela água, presente de São Pedro. Vou subindo, me embrenhando naquele labirinto de concreto e aço, e sinto a estrutura tremer com a chegada de um trem do metrô.

Relutante, pago uma passagem de metrô para ter acesso às plataformas de embarque e desembarque. Esqueci-me de dizer que essa estação é ligada a um shopping. Enorme, nunca havia vindo aqui antes.

Em verdade, não conhecia essa estação. Assombra-me o gigantismo de toda aquela estrutura. E pensar que nos primeiros parágrafos eu falei em amar BH e ser obcecado por essa cidade. Mas é uma cidade que eu desconheço, com mundos dispares em cada bairro e região.

Rua da Bahia. 1910.

Vou perguntando para as pessoas se elas tinham testemunhado a chuva que se abatera sobre a estação nesta semana, mais especificamente a de segunda-feira, quando passageiros até mesmo precisaram subir em cima de um ônibus para se proteger do aguaceiro.

Uma senhora, também Joana, aceita falar comigo. Ela me diz que estava entediada (?!) e que topava conversar uns dois minutos enquanto aguardava seu ônibus.

“Eu estava aqui, na estação, esperando meu coletivo quando eu percebi que a situação estava preta. Era água, muita água. A gente ia vendo os carros sendo arrastados e as pessoas muito desesperadas. Aí eu fui até perto de uma mocinha que estava ilhada, e ajudei ela a subir aqui, num pontinho mais alto da estação.”

As outras pessoas que abordei estavam com pressa e incomodadas com a chuva que continuava, não sei a quantas horas, a maltratar as pessoas. Um rapaz chamado Roberson me acalma. “Fica tranquilo cara. Você mora na Zona Sul. Lá a chuva não cai tão pesada”.

Explicando, falei pra ele durante nosso papo que morava no Cruzeiro. Roberson prossegue “difícil é pra quem mora na periferia. Sempre é mais foda”.

Bem. Relendo tudo isso, percebi que graças a Javé não cobri nesse texto nenhuma tragédia. Nenhum afogamento, nenhuma desgraça. Que foram linhas demais pra construir um mosaico do que é o medo d’água. Do medo que vem do céu.

Tem uma citação, que não sei se é verdadeira, ou se é uma construção da minha memória, que dizia que a humanidade vai morrer ou pela nostalgia, ou pela água. Eu credito esse dizer ao Frank Zappa. Mas me parece verdadeira.

A água limpa, a água suja. A água nutre, a água mata. Somos feitos dela. E é melhor tomar cuidado, pois o céu está cinza, e está chovendo. E (mais uma citação!) já dizia o Dylan Zimmerman – A hard rain’s gonna fall.

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