Ocupação Carolina de Jesus: As histórias e sonhos que invadiram um prédio no Centro

Longe dos holofotes, as faixas de protesto penduradas na janela e no parapeito do prédio tremulam com o vento seco, na tarde quente de Belo Horizonte. Lá dentro, com a pouca luz do edifício localizado na Afonso Pena, 2.300, Flávia Oliveira se desloca das outras mulheres: “Aqui é meu lugar e vou lutar pelos meus filhos e por um lar. É um direito meu”, diz a mãe que cria os quatro filhos sozinha e integra a Ocupação Carolina Maria de Jesus. “Faço tudo pela minha família. Sou mulher, guerreira e feliz”, completa.

O antigo edifício no Centro da capital, que estava vazio há cinco anos, agora abriga 200 famílias. São várias histórias sob o mesmo teto, em busca do direito básico de moradia. “Eu estava morando no bairro Jardim Guanabara, era refém do aluguel. Fiquei esperando uma casa do governo por oito anos, mas, não saiu do papel. Com a crise, eu fiquei sem emprego e tive que vir para a ocupação, que agora é meu lar”, conta Flávia.

“Tudo que fiz foi pela minha família, por mim e por meus filhos”, diz Flávia – Maick Hannder/Bhaz

“Se eu morrer hoje, eu não sei o que vai ser a vida dos meus filhos amanhã. A política atual está muito difícil, não dá para conseguir nada. O rico enriquece cada vez mais. E o pobre fica cada vez mais pobre. Já trabalhei de doméstica, telemarketing, auxiliar de produção e outras coisas. Tudo que eu quero agora é voltar a trabalhar e ter um lugar para morar”, afirma.

A ocupação

Dois lances de escada acima do térreo do prédio, Edinho Vieira, representante do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) nos conta sobre a ocupação. “Estamos aqui desde o dia 7 de setembro. Nosso objetivo é lutar por moradia. Aqui temos desde trabalhadores que estão sem teto até moradores de rua da região central”, diz. O prédio sofreu pequenas reformas desde o início da ocupação como colocação de luz, lâmpadas e manutenção de vazamentos, entre outras coisas.

Ocupação está há mais de dez dias no prédio – Maick Hannder/Bhaz

O jovem explica que o nome da ocupação – Carolina Maria de Jesus – é em homenagem a uma escritora negra que viveu em situação de rua. Ela é autora da obra “Quarto de Despejo”. O objetivo da ocupação é conseguir o diálogo com o Governo de Minas para conseguir moradia para os ocupantes. “Ninguém se importava com a gente até entrarmos aqui”, diz.

O representante da ocupação alega que o movimento requer a democratização do acesso à moradia. “Enquanto temos 80 mil famílias sem moradia, existem cerca de 170 mil imóveis abandonados, dentre eles, mais de 60 mil prédios. Se houvesse investimento em moradia popular, esses imóveis seriam voltados à população. Mas, não é uma preocupação eminente. As ocupações urbanas construíram sozinhas mais de 20 mil casas, enquanto o governo consegue construir apenas mil em quatro anos. Não existe uma política habitacional que atendas essas demandas”, ressalta.

Além da luta

Após argumentar, Edinho nos convida para conhecer parte da ocupação. No local, há cozinha, espaço cultural, centro de atividades como alongamentos e oficinas, além de uma pequena biblioteca. “Um desses livros aqui foi doado de forma brusca. Um homem passou aqui na porta, começou a nos xingar, gritar palavras de ordem e jogou esse livro na nossa direção. Se ele tivesse lido o livro antes de jogar, saberia que a luta pela moradia é um direito do povo”, diz Edinho, ao apontar para um Vade Mecum, livro para estudantes de Direito.

A ideia é criar uma biblioteca dentro da ocupação para incentivar a leitura – Maick Hannder/Bhaz

No terceiro andar funciona a cozinha da ocupação. Lá, estocam-se os alimentos vindo de doações. Edinho conta que toda a alimentação e limpeza da ocupação depende da solidariedade de outras pessoas. As refeições são organizadas em café da manhã, almoço, café da tarde e janta. O local havia acabado de ganhar um novo fogão, vindo também de uma doação, pois, o antigo não estava mais funcionando.

Em meio aos ocupantes que mantém a cozinha em pleno funcionamento está Mara Moreira, de 37 anos. Ela saiu de Sete Lagoas, na região metropolitana, para arriscar a vida em Belo Horizonte, onde o marido tinha uma boa proposta de emprego. O sonho não durou muito tempo. “Ele ficou desempregado e eu também não consegui me firmar aqui. Começamos a viver de favor em uma casa. Meu marido não conseguia encontrar emprego, apenas bicos, o que não era suficiente para nos manter, agora estamos aqui”, diz.

Segundo Mara, há cerca de uma semana, o marido arrumou um emprego fixo, mas, a família ainda precisa de um lar. “É um direito meu, não estou pedindo nada demais. Tenho dois filhos para criar e é uma situação complicada. Eu não gostaria de estar aqui, mas, não tenho para onde ir. Mas, acredito que vou conseguir dar a eles um lar. Não vou desistir”, afirma.

Creche foi montada para ajudar pais que trabalham – Maick Hannder/Bhaz

Depois disso, entramos na creche da ocupação, lugar montado para as crianças ficarem enquanto os pais trabalham durante o dia. Existem de faxineiras até trabalhadores da limpeza urbana da capital morando na ocupação. Para cuidar das crianças, no local, há um revezamento entre as ocupantes. Na creche existem brinquedos, berços e televisão. Tudo fruto de doações. Enquanto alguns bebês dormem, outras crianças se divertem sob a inocência de não entender muito bem a situação. Muitos ali, enfim, podem chamar o local de casa, mesmo que por pouco tempo.

Além disso, para as crianças mais velhas que já estudam, há outro local coletivo com atividades de escrita e desenho. “Aqui é para os que estão estudando. Eles chegam da escola e vêm pra cá, estudar ou fazer oficinas”, diz Edinho. A ideia é manter as crianças ocupadas enquanto os pais trabalham.

Quando saímos da creche fomos surpreendidos por uma criança pedindo que fotografássemos o seu desenho. Questionada se gostava do lugar, ela diz que sim com um gesto e volta para onde estava com as outras crianças.

Criança pegou nossa equipe de surpresa – Maick Hannder/Bhaz

O prédio

O imóvel pertence ao plano de benefícios de aposentados de empresas de telefonia e é administrado pela Fundação Sistel de Seguridade Social, entidade de previdência sem fins lucrativos.

O prédio era alugado para a Secretaria de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) até 2012, quando o órgão mudou-se para a Cidade Administrativa. A partir de então, o prédio passou por uma reforma completa e foi colocado novamente para locação. Porém, sem um novo locador, ficou abandonado.

Entramos em contato com a Sistel que, por meio de nota, disse que “já foi concedida pela Justiça a reintegração de posse, que aguarda cumprimento. A Polícia Militar já foi acionada para apoiar as medidas de retomada do prédio”.

Proprietária do prédio já acionou a Justiça – Maick Hannder/Bhaz

Governo

O Governo de Minas criou uma Mesa de Diálogo das Ocupações Urbanas e Rurais para discutir ocupação do prédio da Sistel. A comissão já se reuniu com representantes do Governo, da própria ocupação, e a Cia. Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel), vinculada à prefeitura da capital. Entretanto, uma nova reunião está agendada para o próximo dia 28.

O objetivo da nova reunião é pactuar uma solução consensual para o problema, sem que haja a necessidade de uma intervenção direta da PM junto aos ocupantes para cumprir o mandado de reintegração de posse emitido pela Tribunal de Justiça.

De acordo com a coordenadora da Mesa de Diálogo e chefe de gabinete da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão, Lígia Alves Pereira, a reunião pretende dar encaminhamentos mais concretos para a questão. “Não caberia aqui discutirmos um novo despejo, pois os ocupantes acabariam indo para outro prédio abandonado”, pondera.

Rafael D'Oliveira[email protected]

Repórter do BHAZ desde janeiro de 2017. Formado em Jornalismo e com mais de cinco anos de experiência em coberturas políticas, econômicas e da editoria de Cidades. Pós-graduando em Poder Legislativo e Políticas Públicas na Escola Legislativa.

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