[Bhaz em série] Quando a Justiça é quem decide – Saúde: o grande desafio (Parte 2)

Velocidade da Justiça não condiz com a urgência da saúde

Desânimo. Este é o sentimento da dona de casa Lilian Dias Coelho, 27 anos, mãe de Lívia Dias Coelho de Oliveira, de dois anos. A menina nasceu no Hospital Risoleta Tolentino Neves, em fevereiro de 2016. Após enfrentar problemas na hora do parto, o bebê foi diagnosticado com paralisia cerebral. Não anda, não fala, não se movimenta, sendo totalmente dependente dos pais.

A mãe, auxiliar administrativa, não trabalha desde que a filha nasceu. O pai, o vigilante Joldanio Junio de Oliveira, 37 anos, também está desempregado. Em agosto de 2017, após entrar com um pedido na Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte para conseguir latas de leite Fortini ou Pediasure, especiais para bebês como Lívia, a negativa do órgão deixou Lilian indignada, ao ler no documento que a menina não se encaixa no perfil para receber o suplemento.  Agora, ela pretende recorrer da decisão entrando com recurso para conseguir que a Justiça assegure o fornecimento do alimento à menina, que necessita de cuidados especiais.

Casos como o de Lilian e da filha Lívia são mais frequentes do que se imagina quando o assunto é a judicialização da saúde. O fenômeno surgiu no Brasil no final dos anos de 1980, após entrar em vigor, em 1988, a chamada “Constituição Federal Cidadã”, que, em seu artigo 196, garantiu a saúde com um direito universal a todos os brasileiros. A judicialização, ou seja, o acionamento da Justiça para que a Constituição seja cumprida, poderá envolver as três instâncias de poder: União, Estado e Município, dependendo do tipo de medicamento e tratamento que for objeto da ação. Apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) ter uma gestão tripartite, cada esfera é acionada segundo sua responsabilidade específica.

Para especialistas, fatores como o envelhecimento das pessoas e a crise econômica contribuem para o aumento do número de processos na Justiça, além dos recentes cortes feitos na saúde, que comprometem os serviços públicos oferecidos à população.

Quando Lilian, mãe de Lívia, entrar na Justiça, o processo dela se juntará a outras 1.737 ações movidas, entre janeiro e novembro deste ano, contra a Secretaria Municipal de Saúde para a obtenção, por meios judiciais, além de dietas especiais, de medicamentos, próteses, exames, cirurgias e transferências hospitalares, entre outros produtos e procedimentos. Em 2016, foram 1.285 ações, um aumento de 26% de um ano para o outro. Naquele ano, o cumprimento de decisões judiciais custou à Prefeitura de Belo Horizonte cerca de R$ 3,6 milhões, valor que contemplou insumos e procedimentos. Somente até novembro deste ano, foram cerca de R$ 4,1 milhões.

A advogada Kátia Susan relata que planos de saúde particular costumam intimidar pacientes quando estes pensam em acionar a justiça.

Quando o poder público paga pelos planos de saúde

Entre os processos movidos, há também os que resultam de negativas de atendimento por parte dos planos de saúde, como é o caso da paciente L.H.A.X.  Desde os 55 anos, ela enfrenta uma luta contra o câncer de mama. O tratamento ela faz pela Unimed, com o mesmo médico com quem estabeleceu uma relação de confiança. Mas, o caso dela se agravou no último ano, quando exames mostraram a metástase do tumor atingindo o fígado e os ossos. Para tentar dar a ela mais qualidade de vida, o médico receitou o medicamento Everolimus de 10 miligramas. No entanto, para surpresa da paciente, o plano de saúde negou-se a fornecer o medicamento. Sem condições de desembolsar R$ 13 mil por mês, ela entrou com uma ação não contra plano de saúde, mas contra o poder público, para assegurar o acesso à medicação.

“O problema, neste caso, é que o plano de saúde deveria fornecer o medicamento, mas ele simplesmente não o faz e não dá a negativa, o que nos obrigou a entrar com uma ação contra o SUS, já que o caso é urgente”, explica a advogada Susan Kátia Espindula de Aguiar Oliveira, autora da ação movida por L.H.A.X. Questionada se a ação não deveria ter sido contra o plano de saúde, a advogada relata que a paciente chegou a pensar em entrar contra a Unimed, mas ela teria sido intimidada por representantes do plano.

“Desde que começou o tratamento, L.H.A.X é acompanhada pelo mesmo médico. Ela relatou que, certa vez, teria ouvido deles que não seria interessante ela perder o acompanhamento do médico, o que poderia acontecer caso entrasse na Justiça contra a instituição”, comenta a advogada. Segundo Susan, a paciente não tem como provar a intimidação, mas classifica o que o plano pode ter feito como inadmissível, pois ela paga pelo serviço, que inclui inclusive o tratamento, que agora se recusam a fornecer, com ameaças veladas.

Ações de judicialização do município estão correm no Fórum Lafayete (Google Street View)

2ª Vara centraliza ações de judicialização da saúde

Para o advogado especialista na área de saúde Antônio Carlos Teodoro, que atua no assunto há quase 30 anos, atualmente quem está garantindo a saúde das pessoas, seja na saúde suplementar ou no SUS, é a justiça. “Hoje, quem dá saúde são os juízes e os tribunais de justiça”, afirma. Teodoro denuncia que diante de tantas ações, o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) determinou que somente a 2° Vara Cível de Belo Horizonte pode receber os processos relacionados à saúde, o que, para ele, é um retrocesso, pois também permite que as partes envolvidas pressionem os juízes. “É uma pressão muito grande”, afirma Teodoro.

Para ele, o ideal seria que os casos fossem distribuídos entre as 35 varas existentes na Capital, o que reduziria a possibilidade de o juiz ser pressionado pelo Estado e pelo Município. “Esse direcionamento é um retrocesso. Afinal, o telefone do juiz vai tocar e, do outro lado, alguém, sem dúvida, vai dizer: ‘Suas decisões estão nos fazendo gastar muito’’’, afirma ele dizendo que depois dessa mudança, nenhum processo ou pedido de liminar é deferida lá, obrigando os advogados a recorrer a Justiça Federal.

O coordenador da Defensoria Especializada de Saúde de Belo Horizonte, Bruno Barcala Reis, também considera preocupante a concentração de ações em uma única vara. “Acredito que isso não pode ser muito bom, pois o executivo, os políticos, as associações podem pressioná [o juiz] em suas decisões, tanto para negar quanto para ceder”, comenta.

Defensoria prioriza solução administrativa

Em Belo Horizonte, a Defensoria Pública de Minas Gerais (DPMG) busca, por vias administrativa e judiciais, garantir o direito à saúde. O trabalho é integrado ao SUS, o que possibilita que a maioria das demandas sejam atendidas sem que seja necessário ajuizar ações, proporcionando maior agilidade para os cidadãos. O atendimento é todo feito dentro da DPMG, onde farmacêuticos cedidos pela Secretaria Municipal de Saúde e pela Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais (SES/MG) atendem para agilizar os processos.

Nas demandas, estão pedidos de medicamentos, dietas especiais, fraldas, próteses, internações e equipamentos médicos. Não há um prazo para o pedido ser atendido, mas, em média, isso ocorre entre 45 a 60 dias após a entrega da documentação. Em 2016, foram 4.248 atendimentos e, em 2017, 3.792. Em média, 40% dos pedidos são atendidos pela via administrativa, sem que seja necessário recorrer à Justiça. Nas situações em que isso vem a ser necessário, são duas as alternativas: para as ações que ultrapassam 60 salários mínimos, o destino é a 2ª Vara Cível. As inferiores a esse valor são ajuizadas no Juizado da Fazenda Pública.

A assessoria de Imprensa do Fórum Lafayette confirmou que a 2ª Vara Cível de Belo Horizonte, atendendo a resolução 826/2016, é, desde julho de 2016, responsável por  julgar as ações que dizem respeito ao direito à saúde. Mas, em resposta enviada por e-mail, não comentou a suposta pressão que o juiz responsável por aquela vara poderia estar sofrendo por decisões desfavoráveis ao Estado e ao Município.

A assessoria informou que a 2ª Vara tem 7.317 processos (dados registrados até 31 de outubro de 2017) em seu acervo. Porém não assegurou que todos esses processos referem-se à área de saúde, uma vez que antes da alteração de sua competência, a 2ª Vara já tinha outros processos em tramitação. A assessoria de Imprensa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também foi procurada pelo Bhaz, mas limitou-se a dizer que não comenta a decisão do Tribunal de Justiça de restringir os julgamentos de processos envolvendo questões de saúde a 2ª Vara.

Para tentar agilizar as ações de quem tem pressa por uma decisão, a Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) e o TJMG firmaram uma parceria para apoiar tecnicamente a Justiça Estadual nos processos relativos à área de saúde. Para isso, um  termo de cooperação técnica assinado prevê a atuação de médicos de Belo Horizonte na elaboração de pareceres técnicos nos casos de processos que envolvam a área da saúde.

Além disso, dois médicos da Secretaria Municipal de Saúde (SMSA) irão trabalhar na elaboração das notas técnicas, dedicando 20 horas semanais à atividade, conforme forem demandados pela Justiça. O objetivo é que esses médicos auxiliem os juízes na emissão de sentenças, escrevendo notas técnicas sobre assuntos presentes nos processos e fornecendo aos magistrados subsídios para suas decisões nos casos de saúde pública.

Janaína busca a garantia do fornecimento

Janaína de Oliveira Miranda, filha da artesã Tereza Michel de Oliveira Miranda, teve um tumor no nervo ótico há mais de 20 anos.  Os exames mostraram que o edema estava também pressionando a hipófise, glândula responsável pela produção de hormônios, localizada na base do cérebro. Com a retirada do tumor, a glândula ficou lesionada, deixando de produzir hormônios. Desde aquela época, Janaína apresentou, também, o distúrbio denominado Diabetes Insípidus Central, que faz com que os rins não consigam reter a água que é filtrada no corpo, comprometendo o controle do líquido no organismo. Para manter-se hidratada, Janaína usa um hormônio sintético chamado DDAPT Acetato de Desmopressina, que tem atuação antidiurética, substituindo o que deixou de ser produzido pela glândula.

Até 2001, Tereza comprava o medicamento. Mas, diante de dificuldades financeiras e do alto valor do medicamento, cujo frasco chega a custar R$ 300, ela passou a retirá-lo na farmácia popular do Estado. “Se minha filha não usar o medicamento, ela se desidrata e morre, já que o corpo dela não produz o hormônio que controla a retenção da água no corpo.

Por mês, Janaina gasta dois frascos, o que corresponde a uma despesa mensal de R$ 600 como o medicamento. No entanto, desde 2014, o medicamento tem apresentado falta constante na farmácia popular estadual, o que a levou a entrar com um mandado de segurança contra o Estado para assegurar o acesso ao produto. No momento, ela aguarda uma decisão da justiça. “A decisão da justiça deveria ter sido dada na semana passada, mas o juiz não foi ao trabalho. Com isso, a resposta demora e ela [a filha] acaba prejudicada. É um jogo de empurra onde quem sofre é a pessoa que precisa do medicamento.” comenta em tom de desabafo e preocupação.

Estado é réu em 14 mil processos

Assim como no município, a situação das ações em que o Estado é réu segue o mesmo caminho. De acordo com informações da Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais (SES/MG) em 2017, o gasto total com a judicialização foi de R$ 218.796.724,87 e o número de processos foi de 15.676. Em 2016, foram 16.978; em 2015, 15.383 e em 2014, 12.970 ações. A SES informa que, anualmente, as decisões judiciais consomem 8% do orçamento do Fundo Estadual de Saúde (FES), que em 2016 foi de R$ 3, 4 bilhões, valor praticamente igual ao do ano passado. Esse valor compreende apenas os recursos que fazem parte do orçamento da SES/MG, não incluindo os das unidades vinculadas e de outros órgãos que executam recursos com a função “saúde”.

Segundo a SES/MG, há hoje aproximadamente 23 mil pacientes aguardando ou recebendo medicamentos por decisões judiciais. Os medicamentos representam 80% do orçamento destinado ao atendimento de decisões judiciais. O restante corresponde a despesas com próteses, órteses, leitos, exames e cadeiras de roda especiais.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o termo “medicamento de alto custo” é definido por diversos fatores. Pode estar relacionado a doenças de grande impacto social e/ou grave risco de morte, como HIV/Aids e doenças oncológicas, entre outras. O termo também pode se referir aos medicamentos utilizados por uma população muito pequena portadora de doenças raras como a Atrofia Muscular Espiral (AME) e outras síndromes.

Desta forma, para a ONU o termo “medicamento de alto custo” depende de quem usa o remédio. Assim, um medicamento que custa na faixa dos R$ 300 a caixa, como o que é utilizado por Janaína Miranda, pode ser barato para uma pessoa que tenha recursos financeiros, ou custar muito caro para que alguém que vive com salário mínimo. No caso de Janaína, é um medicamento caro. Por isso, sua decisão de recorrer à Justiça para fazer valor seus direitos.

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Jefferson Lorentz

Jeff Lorentz é jornalista e trabalhou como repórter de pautas especiais para o portal Bhaz.

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