Adolescente trancafiado e trabalho forçado são realidades em centros terapêuticos de Minas

Pessoas contidas pela força ou por meio de medicamentos, alocadas em condições precárias e em lugares distantes, sem comunicação externa e tratadas como doentes.

Essas foram algumas das violações de direitos constatadas em uma série de inspeções realizadas pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e Conselho Federal de Psicologia (CFP) em espaços que deveriam promover tratamentos terapêuticos. Os casos foram reunidos no Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticos – 2017, lançado em Brasília.

Em Minas, o trabalho demonstrou que se tem de tudo um pouco, até mesmo um adolescente 11 anos foi encontrado entre internos de uma comunidade terapêutica. Ele foi internado por determinação judicial, mas a medida não está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No Rio de Janeiro, a situação se repetiu com um adolescente apenas dois anos mais velho.

“Além da privação da liberdade, pois ele não podia sair porque internado compulsoriamente, ele também não tinha nenhum tipo de garantia em relação ao acesso à educação, que é um direito fundamental da criança”, aponta o procurador Sérgio Suiama. Para os órgãos que elaboraram o estudo, é preciso que o Judiciário avalie a pertinência desse tipo de medida.

Ao todo, foram inspecionadas 28 comunidades em 11 estados de todas as regiões e no Distrito Federal. Para a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, todas as instituições foram reprovadas porque não garantem inserção dos pacientes na comunidade, não estimulam o fortalecimento de laços com a vizinhança nem oferecem atividades produtivas.

“Elas são instituições que trabalham com uma ideia de que a pessoa tem que ficar distante por um determinado período de tempo, alguns mais longos e outros mais curtos, mas todos por, pelo menos, 90 dias”. Duprat explica que o confinamento de pessoas com transtornos mentais contraria a Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei de Reforma Psiquiátrica e reforça uma estrutura que o Brasil tem trabalhado para extinguir: os manicômios.

Longe de todos

Esta realidade de entre muros, fica evidenciada no relato de um interno da comunidade Renascer, localizada em São João del-Rei, Campos das Vertentes, em Minas Gerais: “Não recebo a visita de ninguém porque minha mãe não tem dinheiro para me visitar. Tem a alternativa de mandar uma carta, que é entregue aberta ao pastor para que seja lida antes de postada. Eu não mando cartas e nem recebo visitas da minha mãe porque não tenho condições de pagar um táxi para ela vir me ver”.

O isolamento é reforçado pela localização das comunidades. Das 28 inspecionadas, 17 estão situadas em áreas de difícil acesso ou longe do centro dos municípios, “em geral com pouca ou nenhuma sinalização e sem acesso via transporte público”, conforme o relatório. A situação dificulta não apenas o convívio social, mas também a fiscalização dessas comunidades por parte do Poder Público e da sociedade civil.

Se a regra nas comunidades terapêuticas visitadas é cassar o direito de ir e vir dos internos, a liberdade religiosa e de orientação sexual é sonho distante também. O levantamento constatou que, em ao menos 14 das 28 instituições visitadas, não há respeito à diversidade de orientação sexual e identidade de gênero. Em uma comunidade em Minas Gerais, uma pessoa trans relatou ter sido internada sem ter laudo médico indicando qualquer tratamento.

Os limites à vivência da diversidade está associado ao fato de essas instituições seguirem doutrinas religiosas, o que acaba também provocando violações à liberdade de crença. “Em apenas quatro das 28 comunidades terapêuticas visitadas, é possível afirmar que não foram presenciadas ou registradas restrições à liberdade religiosa”, diz o texto.

Castigo a interno

Sem a fiscalização, medidas restritivas de direitos ilegais tornam-se comuns. Uma delas é a retenção de documentos, “o que endossa esse impedimento das pessoas circularem independentemente de sua vontade”, detalha Costa. Ele relata que os inspetores chegaram a verificar situações em que cartões de bancos eram controlados pelos gestores das comunidades, que acabavam se apropriando de benefícios sociais.

Como nos manicômios do passado, em 16 locais investigados foram identificadas práticas de castigo a internos, como obrigatoriedade de execução de tarefas repetidas, supressão de alimentos, uso de violência física, privação de sono e uso irregular da chamada contenção mecânica (que ocorre quando as pessoas são amarradas) ou química (que se dá por meio do uso de medicamentos).

Lúcio Costa aponta que tais práticas “podem ser tidas como tortura ou tratamento desumano ou degradante”. Não obstante, muitas vezes elas são apresentadas como tratamentos. Caso assim foi relatado aos integrantes da equipe de inspeção na comunidade Reviver, na cidade de Paudalho (PE): “Somos trancadas todos os dias depois do almoço, entre 13h e 14h30, para o que eles chamam de sonoterapia; e, depois, das 20h às 6h. Nos finais de semana é até pior, porque a sonoterapia dura quatro horas depois do almoço. Não importa se você está com sono ou não. Se não estiver, vai ficar trancada do mesmo jeito”.

Outra situação comum é o uso do trabalho como punição, que se confunde com o que o relatório aponta se tratar de uma prática distorcida de laborterapia. Em vez de efetivar o tratamento de doenças psicoemocionais através do trabalho, como ocorre com a terapia ocupacional, são impostas tarefas extras ou aviltantes, como atividades repetitivas. A exploração desse trabalho também viabiliza economia para as comunidades, pois em geral os internos realizam as atividades de manutenção do espaço, como limpeza e até segurança.

Se, por um lado, a rotina comportamental é rígida, “a desordem administrativa é absurda”, nos termos de Duprat. A procuradora detalha que as comunidades não têm equipe médica necessária à assistência integral e comprova que apenas 10 instituições apresentaram alvará sanitário. A ausência de equipes profissionais e, em seu lugar, a presença de voluntários que trocam trabalho por comida e moradia são outros exemplos disso.

“O que nós vimos é escandaloso”, sintetiza o presidente do CFP, Rogério Giannini, que exemplificou os problemas apontando como recorrente, em todas as comunidades visitadas, o uso de medicamento controlado. Ao contrário da abordagem do isolamento e pautada em forte medicação, ele diz que “nós acreditamos na rede substitutiva e na política de redução de danos como estratégia geral”,

Os relatos sobre as unidades inspecionadas em cada estado serão remetidos aos órgãos competentes, como Ministério Público Estadual e Defensoria Pública. Ao todo, há, pelo menos, 2 mil comunidades terapêuticas no país, segundo nota técnica do Ipea de 2017. O número deve crescer, pois em março deste ano o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) aprovou resolução que facilita a expansão dessas instituições.

Com Agência Brasil

Maria Clara Prates

Formada em Comunicação Social com ênfase em Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Trabalhou no Estado de Minas por mais de 25 anos, se destacando como repórter especial. Acumula prêmios no currículo, tais como: Prêmio Esso de 1998; Prêmio Onip de Jornalismo (2001); Prêmio Fiat Allis (2002) e Prêmio Esso regional de 2009.

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