O show de racismo religioso do BBB 19 e o medo das religiões afro-brasileiras

Reprodução/Globo

Por Nailah Neves Veleci [1]

Maycon – “Eu assinei meu atestado de óbito aceitando o cigarro da Gabi”

Desde o início do Big Brother Brasil 19, uma chuva de show de racismo velado pode ser vista entre alguns dos participantes, principalmente pela mineira Paula que já afirmou gostar de praticar “bullying”. Mas, nas duas últimas semanas, esse racismo velado passou para racismo escancarado no momento em que Paula, Hariany e Maycon começaram a afirmar que Gabriela e Rodrigo estão fazendo algo de mal para atingi-los porque estes são de religiões de matriz africana.

Paula, Maycon e Hariany já afirmaram que estavam com medo dos dois participantes que nunca lhes fizeram nenhum mal. Muito pelo contrário, são super pacientes e didáticos para explicar aos três sobre a questão negra e a cultura. Mas para Paula e Hariany o fato de Rodrigo falar sobre a cultura negra e as religiões negras já é algo assustador, assustador o suficiente para afirmarem que têm medo de mandá-lo para o paredão e ele fazer algo contra elas. Para Maycon, Rodrigo e Gabriela ouvindo e se emocionando com a música Identidade, de Jorge Aragão, é o que o assusta. Pra fechar, os três acreditam que a gripe de Isabela foi um trabalho feito contra Maycon que pegou em Isa e combinam de não aceitar o cigarro de Gabriela e nem mais de lavar a roupa deles com a dos outros dois integrantes que eles afirmam ser afro-religiosos por medo de estes lhes fazerem mal.

A grande pergunta é: O Maycon ouvir vozes do além, dizendo que é Jesus Cristo, é visto como super normal e aceitável tanto por ele quanto por Paula e Hariany. Não gera medo em ninguém. Mas Gabriela e Rodrigo falarem de orixás e se emocionarem ouvindo uma música da cultura negra é visto como algo super assustador por eles. Qual a diferença?

A diferença é que Maycon, Paula e Hariany são brancos e seguem religiões cristãs que são popularmente aceitas pela sociedade. Já Gabriela e Rodrigo são negros, que defendem a cultura negra e consequentemente as religiões de matriz africana.

Mas porque esse tipo de racismo religioso é tão naturalizado como um simples medo?

Assim como todo racismo praticado nesse país, que para negar direitos à população negra, propagou por séculos o mito da democracia racial, para explicar o racismo religioso será necessário falarmos da estrutura e história sócio-político-cultural do Brasil.

Paula (à esquerda) e Hariany são inseparáveis no BBB 19. A primeira tem sido acusada de fazer comentários racistas. Ela disse que pode ser considerada negra porque a avó é negra.
(Reprodução/Globo)

Para começar precisamos falar quem são as religiões de matriz africana e que elas não são apenas religiões, mas também são povos e comunidades tradicionais de matriz africana. A Umbanda e o Candomblé são as mais popularmente conhecidas, mas vocês sabiam que a Umbanda possui uma diversidade que varia entre estar mais ligada ao cristianismo através de segmentos mais sincretizados com o Kardecismo até outros mais ligados às religiões africanas e indígenas? Vocês sabiam que o Candomblé é dividido em nações? As mais praticadas são Ketu, Angola e Jeje. Outras religiões de matriz africana no Brasil são Pajelança, Encantaria, Tambor de Mina, Xangô, Batuque, Catimbó, Toré, Jurema Sagrada, Omolokô, Terecô, Xambá e Quimbanda entre outras.

Os casos de racismo religioso são direcionados principalmente a Umbanda de matriz africana e ao Candomblé da nação Ketu. Isso é percebido pelo nome das entidades que os participantes dizem ter medo (entidades que bebem e fumam, e orixás). Mas como eles não sabem diferenciar as religiões, podemos afirmar que estão pregando seu racismo a todas as religiões afro-brasileiras de forma geral.

Estas religiões constituem povos e comunidades tradicionais porque possuem uma cosmosensação de mundo distinto da cosmovisão do mundo ocidental que é hegemônico no Brasil. Possui uma língua própria, uma forma de alimentação, uma hierarquia distinta. São povos matriarcais, sintonizados com a natureza. O Decreto nº 6.040 que define os princípios, objetivos e os instrumentos de implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, em seu art. 3º, inciso I, define povos e comunidades tradicionais como:

[…] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (BRASIL, 2007) [2]

O racismo estrutural contra as religiões afro-brasileiras – A separação Igreja e Estado que os negros nunca viram

Segundo estudos de Oro e Bem (2008) [3], durante o Brasil colônia apenas a religião católica era permitida, sendo as demais reprimidas nos termos das Ordenações Filipinas, que vigoraram no Brasil de 1603 a 1830. Em seu Livro V, as Ordenações criminalizavam: a heresia, punindo-a com penas corporais (Título I); a negação ou blasfêmia de Deus ou dos Santos (Título II); e a feitiçaria, punindo o feiticeiro com pena capital (Título III). Em outras palavras, se você não fosse católico poderia ser torturado e assassinado. Essa criminalização dos cultos não católicos impôs o sincretismo religioso brasileiro e a famosa estratégia dos escravizados que fingiam rezar para santos católicos enquanto cultuam seus ancestrais, seus orixás, vodus e nkisis.

No Brasil Império, o catolicismo permaneceu como religião oficial, mas foi inserida uma previsão formal de liberdade religiosa privada, sem forma externa de templo, na Constituição Imperial de 1824. O Código Criminal do Império, promulgado em 1830, punia com multas e demolições a celebração de cultos religiosos em áreas externas ao domicílio que não fossem da religião oficial (art. 276); com prisão e multa a zombaria contra o culto estabelecido pelo Império por meio de papeis impressos ou discursos (art. 277) e com prisão e multas a manifestação de ideias contrárias à existência de Deus por meio de papeis impressos ou discursos (art. 278). Estas proibições estimularam que religiões minoritárias estabelecessem seus locais de cultos não como templos, mas como residências ligadas tipicamente ao sacerdote. Diversamente dos templos católicos que pertenciam a uma pessoa jurídica, os terreiros eram ligados a pessoas físicas, o que contribuiu para que até os dias de hoje as organizações das religiões afro-brasileiras tenha permanecido descentralizada e fragmentária, pois cada local de culto é autônomo e muitas vezes ocultado pelo medo da perseguição tanto estatal quanto social.

Durante o período dos processos políticos de abolição da escravatura e da proclamação da república, surgiu no Brasil, nos discursos científicos e nas práticas governamentais, a preocupação com a influência negra na formação da sociedade brasileira, principalmente porque no Haiti, que semelhante ao caso brasileiro – que possuía uma população negra maior que a branca- , os negros chegaram ao poder. Araújo (2007) [4] classificou esses discursos, que duraram até a primeira metade do século XX, como sendo “racialistas”, que segundo ele se configurava em “compreender as diversas doutrinas sobre a inferioridade racial dos povos e culturas que não pertenciam a matriz eurocêntrica e branca. Estas doutrinas justificaram um processo colonialista e o extermínio de civilizações na África, Ásia e América.” (ARAÚJO, 2007, p. 21).

Sob-respaldo dessa ideologia, as Faculdades de Direito e as Escolas de Medicina da época deram

início à construção da ideologia do branqueamento e suas políticas de eugenia da população, onde os discursos jurídicos e da medicina se entrelaçam como fundamento da necessidade de reprimir as manifestações religiosas e culturais do negro, entendidas como primitivas e fetichistas. (ARAÚJO, 2007, p. 22)

A política de branqueamento foi adotada pelo Estado brasileiro através do incentivo da imigração europeia, o encarceramento em massa da população negra e o genocídio. Os teóricos dessa política acreditavam na época que como a raça branca era superior às demais e o gene branco era o mais forte, a miscigenação entre as raças diminuiria demograficamente a população negra e o Brasil poderia então ser um país branco e civilizado como os países europeus.

É preciso pontuar que a miscigenação brasileira não pode ser romantizada, pois seu início ocorreu pelos estupros de homens e mulheres negras e indígenas. Tanto a miscigenação quanto o sincretismo religioso foram violência físicas e psicológicas impostas e praticadas contra as populações negras e indígenas.

O estudioso Nina Rodrigues foi um dos principais do início da República que representou o pensamento racial da época de acordo com Santos [5] (2006) e Araújo (2007). Ele realizou estudos etnográficos nas religiões de matrizes africanas com o objetivo de justificar a inferioridade da raça negra. Para Nina Rodrigues estas religiões eram “animismo fetichista” e eram inferiores ao monoteísmo cristão. Segundo ele, o sincretismo destas religiões com o catolicismo constituía-se na “ilusão da catequese”. Para ele, o fato de os negros disfarçarem ter adotado o sincretismo, enquanto continuavam adorando os Orixás, configurava-se na incapacidade destes de elevarem-se às abstrações do cristianismo por serem de uma raça inferior e, portanto “ficando presos aos seus cultos mágicos animistas.” (SANTOS, 2006, p. 34).

Na primeira Constituição da República (1891) foi instituída a separação do Estado e da Igreja, mas a realidade das religiões afro-brasileiras não mudou. Segundo Araújo (2007, p. 39), os grupos que defenderam o Estado Laico pertenciam à elite política que havia construído os discursos etnocêntricos e estes, programaram uma “[…] discursivo-normativa de exclusão legal da religiosidade negra, através dos pressupostos do racismo científico”. Esta discursivo-normativa está evidenciada no fato de que um ano antes da separação, foi aprovado o Código Penal de 1890 que criminalizava mendicância (art. 391-395), vadiagem (art. 399), capoeiragem (art. 402), curandeirismo (art. 156) e espiritismo (art. 157). Para Araújo, esta criminalização legal das manifestações culturais e religiosas da população negra caracterizava “[…] a tentativa de normalização ou negação da cosmovisão africana no país.” (ARAÚJO, 2007, p. 40) Temos nessas normas um princípio eurocêntrico não declarado explicitamente, mas que influenciou toda uma construção social-político-cultural que marginalizou os negros e sua cultura de forma institucionalizada, o que chamamos de racismo estrutural.

Antes do Código Penal de 1890, o culto as religiões afro-brasileiras era escondido devido à lei vigente que proibia ter outras religiões, agora “todas” as religiões eram permitidas, mas as religiões afro continuavam sendo proibidas porque não eram reconhecidas como religião. Devido à falta de reconhecimento como sujeito do direito, para Araújo (2007, p. 49-50), estas religiões tiveram que adotar mecanismos de resistência, como a aceitação do sincretismo religioso com a igreja católica e a criação de redes de solidariedade entre o povo de santo, entre outras.

Na década de 1930, os estudos sociais no Brasil, numa tentativa de apagar o passado racista da nação, substituíram as teorias evolucionistas de raça pela vertente culturalista. Gilberto Freyre é um dos teóricos que contribuem com essa nova ideologia, onde era pregada a democracia racial no país que agora enaltecia a sociedade miscigenada, produto da fusão entre as três raças fundadoras (branca, indígena e africana). Para Santos (2006), Gilberto Freyre, assim como outros sociólogos da época, substituiu a noção de raça por cultura. Agora era a cultura do negro que era primitiva e inferior, sendo a mestiçagem e o sincretismo a salvação. Araújo (2007) evidenciou que essa nova ideologia enquadrou as religiões afro-brasileiras como folclores, permanecendo assim, negando o seu caráter religioso, sendo este só admitido no suposto sincretismo com o catolicismo.

A Constituição de 1934 em seu art. 17, inciso III previu uma colaboração recíproca com qualquer culto em prol do interesse coletivo, o que permitia renovar os laços do Estado com a Igreja Católica, que continuava sendo a mais influente da época. Na vigência dessa Constituição, o Código Penal de 1940 excluiu o crime de espiritismo, mas até hoje são vigentes o crime de curandeirismo (art. 284). Em contrapartida, este mesmo código em seu art. 208 pune quem impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso ou desvalorizar publicamente ato ou objeto de culto religioso.

Na década de 1950, o racismo institucional contra as religiões afro-brasileiras, de acordo com Araújo (2007), passou da repressão policial para uma intervenção normalizadora onde as práticas religiosas, agora eram obrigadas a requerer licença junto às delegacias de jogos e costumes para realização dos cultos. Em alguns Estados eram exigidos atestados de sanidade dos adeptos afro-religiosos. Essas normas duraram até 1976, quando finalmente o povo de santo conquistou o Decreto nº 25.095, de 15 de janeiro de 1976, do governador da Bahia, que colocou um ponto final na obrigação das comunidades afro-religiosas de requerer permissão à delegacia de jogos e costumes para a realização dos cultos, sendo enfim reconhecidas como religião numa norma brasileira. A Constituição de 1988 ratificou a aceitação das religiões afro-brasileiras como religiões e ainda contemplou em parte as exigências do movimento negro sobre o respeito à alteridade das tradições negras em seus artigos 215 e 216.

Para falar de reconhecimento social é necessário entender que a opinião da sociedade é moldada por diversas instituições e pelo histórico de formação brasileira e que a Igreja é uma das instituições que tem mais força nessa área. No decorrer da história do Brasil, Berkenbrock [6] (1999) identificou cinco posições diferentes da Igreja Católica perante as religiões afro-brasileiras, posições estas que às vezes foram cronologicamente coincidentes: 1º – Ilusão da catequese; 2º – Combate aos costumes africanos; 3º – Demonização das religiões afro-brasileiras (Década de 1950); 4º – Cooperação e diálogo – reconhecimento dos erros cometidos pela Igreja com a evangelização forçada dos negros; 5º – Diversificação de posições (atualidade): há católicos que combatem e rejeitam totalmente as religiões afro-brasileiras; há os que aceitam a existência destas, mas se acham no direito de purificá-las de “erros doutrinários”; e há os católicos que reconhecem totalmente as religiões afro-brasileiras como tais e as convidam para o diálogo inter-religiosos.

Em relação aos pentecostais, segundo Silva [7] (2007) começou uma transformação na década de 1970 e que vem crescendo rapidamente até os dias de hoje: a ascensão do neopentecostalismo no país e a perseguição pregada por este dogma contra as religiões afro-brasileiras. O pentecostalismo se distingue dos demais segmentos religiosos cristãos pela ênfase do dom da cura divina, pelas estratégias de proselitismo e conversão em massa. Esse segmento religioso disputa o mesmo mercado religioso que as religiões de matriz africana, populações de baixo nível socioeconômico que buscam experiência vivida no próprio corpo. Ao contrário dos católicos, estes reconhecem a existência das divindades afro-brasileiras, mas os classificam como demônio e por tanto pregam que os povos de terreiro precisam ser salvos e convertidos ao neopentecostalismo. Possuem também um grande poder de mídia para essa pregação, além de poder institucional nos três poderes.

A percepção que a sociedade tem das religiões afro-brasileiras é semelhante as das Igrejas Cristãs, isso devido à visibilidade e influência destas em detrimento da invisibilidade das religiões afro-brasileiras.

As consequências do apagamento das religiões afro-brasileiras [8]

Uma das principais consequências dessa negação do reconhecimento das religiões afro-brasileiras como religiões é a formação de profissionais que desrespeitam constantemente os direitos fundamentais destinados às religiões previstos na Constituição. Pegando apenas a disciplina de Ensino Religioso, que é facultativa, e deveria ser um espaço onde o brasileiro deveria conhecer essa história que estamos contando das religiões afro, já podemos identificar um problema: o que há é um proselitismo das religiões cristãs e demonização das religiões afro-brasileiras.

Desde o início da educação no Brasil a Igreja Católica influenciou hegemonicamente os fatores internos e externos para a aplicação da disciplina de Ensino Religioso – consequentemente o ensino dos valores morais cristãos – e a intersecção disso com a ausência da história do negro – e do próprio negro em alguns momentos – nas escolas influenciou o racismo religioso para com as religiões afro-brasileiras. O ensino religioso esteve presente nas escolas em caráter confessional do cristianismo no Império e após a separação do Estado e da Igreja houve todo um lobby da Igreja Católica para manter essa hegemonia, através de grupos de pressão influenciando nos três poderes e articulando para que a fiscalização e a determinação dos conteúdos dessa disciplina ficassem nas mãos das instituições cristãs.

Nossas instituições educacionais possuem um viés eurocêntrico. Segato[9] (2013, p. 47- 48) explica que o eurocentrismo consiste numa distorção favorável aos ideais do europeu branco sobre o modo de produzir sentido, explicações e conhecimentos. Trata-se de um conhecimento que reproduz o sistema de exploração capitalista e que determina os critérios de valores as pessoas e aos produtos. É a determinação de hierarquia que perpassa diversas áreas: “pré-capital/capital; tradicional/moderno; Ocidente/Oriente; primitivo/civilizado; mítico/científico; irracional/racional”. Nossas instituições educacionais são impregnadas por esse ideal eurocêntrico que estipula como os melhores modelos de educação aqueles advindos da Europa. Determinam também que o conhecimento racional e científico é aquele que é escrito, em oposição ao conhecimento transmitido oralmente por outros povos como os africanos e indígenas. Essa perspectiva estipula que há uma evolução entre os povos sendo o europeu o mais desenvolvido e a meta desejável para os demais.

Citamos a disciplina de ensino religioso, mas essa perspectiva é facilmente percebida nas aulas de história, português, matemática, literatura e etc.

As religiões afro-brasileiras só encontraram espaço para apresentarem suas histórias e valores na educação escolar através da Lei 10.639 que torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira. Mesmo assim enfrentam enormes resistências de professores e pais, que devido a uma formação racista religiosa, defendem que tal matéria “é coisa do demônio”. O Movimento Escola Sem Partido surge nesse contexto exigindo que a escola respeite os valores morais e religiosos dos pais dos alunos, vulgo, apenas os cristãos antes exclusivamente ensinados, e se apresenta na forma de projetos de leis que retrocedem os direitos conquistados em relação à liberdade de crença no ensino.

No Relatório sobre Violência e Intolerância Religiosa no Brasil [10] (2011-2015), os professores representam 11% dos agressores e a escola 7% dos locais onde houve intolerância ou violência religiosa denunciados nas Ouvidorias. Analisando os processos que chegam ao Judiciário a escola passa a ser o segundo local onde ocorrem mais violações de direitos, representando 25% dos casos (RIVIR, 2016).  Segundo o RIVIR (2016) os casos mais apontados são os de professores ou diretores evangélicos que se negam a dar aulas sobre a história das religiões afro-brasileiras ou quando estes utilizam a temática para demonizar tais crenças.

Avançando na formação educacional, é possível diagnosticar o problema de formações universitárias de áreas cruciais como o Direito que possuem um silêncio sobre a questão das religiões afro-brasileira. (Qual é mesmo o curso da Paula do BBB19? Direito).

O art. 150, inciso VI, alínea b da Constituição Federal de 1988 veda a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios de instituírem impostos sobre templos de qualquer culto. Mas você sabia que os terreiros, templos das religiões afro-brasileiras não são beneficiados com imunidade tributária? Nascimento [11] (2015) fez um levantamento sobre os principais Manuais Tributários utilizados no Ensino Superior e pelos juristas dos Tribunais Superiores onde identificou um apagamento das religiões afro-brasileiras. As expressões e determinações de características típicas de uma religião que deve ser beneficiada pela imunidade são descrições apenas de elementos cristãos. Decisões dos órgãos superiores, que servem como jurisprudências, também apresentam um silêncio em relação ao direito tributário a ser aplicado às religiões afro-brasileiras. Os casos que chegam aos tribunais superiores são os que envolvem conflito com templos cristãos. Este silêncio dos juristas mais o silêncio anterior a eles, o educacional básico, é repassado durante décadas para juízes, advogados, procuradores e ministros que estão julgando sob esses mesmos pressupostos exclusivos das religiões cristãs e consequentemente limitando a garantia de liberdade religiosa dos terreiros.

Há um medo também das religiões de denunciarem essas violações de direitos para órgãos do Estado devido à cobrança de identificação de endereços dos terreiros. A grande estratégia das religiões afro-brasileiras para sobreviver a toda essa perseguição do Estado e da sociedade foi o ocultamento. Foi a transmissão oral dos costumes e conhecimentos e a manutenção de segredos apenas para iniciados. As religiões afro-brasileiras não são proselitistas, elas só começaram a mostrar as caras para denunciar a violência que sofrem, pois ficou insustentável, principalmente depois que foram reconhecidas como religião, mas não receberam os mesmo direito que as demais já aceitas.

O medo de ser encontrado e identificado pelo Estado é comum dentro dos terreiros de todo o país devido os ataques realizados principalmente por fundamentalistas religiosos que se autodeclaram neopentecostais. Estes têm uma pregação de ódio contra as religiões afro-brasileiras. De acordo com o Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011-2015) foram identificadas notícias de 26 assassinatos de lideranças do Candomblé entre os anos de 2011 e 2015, dessas apenas duas chegaram ao Ministério Público ou à Polícia classificadas como casos de intolerância religiosa (RIVIR, 2016, p. 38-39). Em relação aos terreiros, o relatório identificou 99 notícias sobre ataques a imóveis, sendo os terreiros incendiados e a quebra de estatuas os casos mais comuns (RIVIR, 2016, p. 43).  O RIVIR (2016) destaca que há uma dificuldade maior na identificação dos casos de ataques aos terreiros devido à localização destes ser em regiões periféricas. Salienta também que o Distrito Federal, a Paraíba e o Mato Grosso foram as regiões que mais apresentaram casos de ataques a terreiros. O que quer dizer que são os locais onde há mais liberdade para fazer denuncia, não necessariamente sejam os locais que ocorrem mais ataques.

Estes fundamentalistas não atacam somente fisicamente os terreiros, como também politicamente. É o caso, por exemplo, da criminalização do sacrifício de animais em rituais religiosos que atingem única e exclusivamente as religiões afro-brasileiras e que foi identificado por Veleci [12] (2015) que todos os projetos de leis e leis escritos a níveis municipal, estadual e federal foram encabeçados por membros das Bancadas Evangélicas que muitas vezes não possuíam interesse em questões de proteção ao direito dos animais, adotando argumentações até religiosos como “Jesus já fez o último sacrifício” ou eugenistas classificando as religiões afro-brasileiras como “primitivas”. O próprio termo utilizado nos projetos -“sacrifício de animais em rituais religiosos” – em contraposição ao usado pelas religiões afro-brasileiras – “sacralização de animais” – ou mais recentemente utilizado pelos povos e comunidades de matriz africana – “alimentação tradicional” – já deixa em evidência a discrepância das cosmovisões de mundo envolvidas.

Esses projetos pregam que as religiões afro são cruéis, propagando novamente um medo na sociedade que desconhece que tal ritual não é nada mais, nada menos como uma pré-etapa para o preparo da comida dos adeptos e da comunidade carente que eles sustentam. Quantos aí não sabiam que as religiões afro-brasileiras matam um bicho, o sacralizam e depois fazem uma feijoada, por exemplo?

O medo, a demonização e todos os achismos que existem sobre as religiões afro-brasileiras são advindas dessa formação sócio-cultural-política. A naturalização disso é devido à propagação da mídia de estereótipos e do silenciamento da justiça diante da denuncia de violação de direitos.

Os estereótipos de que tudo que é negro é perigoso (não preciso lembrar o genocídio da juventude negra que atira primeiro e depois pergunta quem é!) alcança também a religião que é negra em sua matriz, mesmo que hoje não seja mais tão negra em sua composição devido exatamente a consequência do duplo racismo que um corpo negro sofre ao ser afro-religioso e negro.

A diferença entre a oferenda que a sociedade manda “chutar que é macumba” e a vela que se acende na Igreja pra pedir ou agradecer por algo, é que o último a sociedade toda foi ensinada que existe esse significado e que no caso do primeiro a sociedade aprendeu por pregação racista que era algo a se temer, mas que na realidade tem o mesmo objetivo da vela para um paralelo da cosmosensação de mundo de matriz africana.

As entidades cultuadas nessas religiões são apenas ancestrais transmitindo suas experiências e conhecimentos. Agora, se você teme que a população negra sinta orgulho de sua ancestralidade, de seus costumes e valores de matrizes africanas que são diversos ao hegemonicamente pregado pela sociedade como machismo, racismo, homofobia entre outros, então você pode temer mesmo as religiões e os povos e comunidades tradicionais de matriz africana. Porque elas são exemplos que é possível outra forma de sociedade realmente igualitária. E isso assusta alguns!

O que Maycon, Paula e Hariany estão pregando no BBB e estão naturalizando para quem assiste é todo esse racismo religioso da sociedade que coloca o negro conectado com a sua fé como alguém perigoso, como alguém que pode fazer mal a alguém pelo simples fato dele cultuar uma religião de matriz africana. E esse racismo fica ainda mais escancarado quando Maycon e Hariany afirmam conhecer a religião e mesmo assim continuarem falando em segregar Gabriela e Rodrigo, separando suas roupas e negando seus cigarros com a desculpa que isso lhes faria mal ou por afirmarem que Isabela ficou doente por algo que os dois participantes fizeram por serem afro-religiosos. Também fica claro que é racismo religioso e não intolerância religiosa quando Maycon afirma frequentar o Espiritismo, que possui entidades semelhantes às quais ele julga temer das religiões afro, mas que pra ele é do bem, é aceitável. E só é aceitável para ele e para boa parte da sociedade, porque é uma religião de origem europeia, branca.

A pregação de inferioridade, a demonização e segregação de pessoas com base em sua religião não é simplesmente intolerância religiosa, é racismo religioso e não é coincidência que isso ocorra com uma religião que pertence ao povo e comunidades de matriz africana.

Agora esse medo fictício provocado pelo racismo desses participantes, não se compara ao da criança afro-religiosa que teme levar uma pedrada na rua porque dizem que ela cultua um demônio que nem pertence à religião dela.

Vidas Negras Importam! As religiões negras importam!

[1] Mestre de Direitos Humanos e Cidadania (UnB), bacharel de Ciência Política (UnB) e especializanda de Gestão de Política Públicas (UEG). Embaixadora da Juventude do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), pesquisadora do Grupo de Pesquisa Antropologia e Direitos Humanos e do Maré – Núcleo de Estudos Jurídicos e Atlântico Negro. Membro da Ubuntu – Frente Negra de Ciência Política da UnB e yawó ty Osún do Ilê Asé Órisá D’ewi.

[2] BRASIL. DECRETO Nº 6.040, DE 7 DE FEVEREIRO DE 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6040.htm

[3] ORO, Ari Pedro e BEM, Daniel F. de. A discriminação contra as religiões afro-brasileiras: ontem e hoje. Ciênc. let, Porto Alegre, n. 44, p. 301-318, jul./dez. 2008.

[4] ARAÚJO, Maurício Azevedo de. Afirmando a alteridade negra e reconhecendo direitos: as religiões de matriz africana e a luta por reconhecimento jurídico -repensando a tolerância e a liberdade religiosa em uma sociedade multicultural. 2007. 207 f.; Dissertação (mestrado) – Universidade de Brasília, Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição, 2007.

[5] SANTOS, Daniela Cordovil Corrêa dos. Etnografia, modernidade e construção da nação: estudo a partir de um culto afro-brasileiro. 2006. 171p. Dissertação (mestrado) – Universidade de Brasília.

[6] BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos orixás: um estudo sobre a experiência religiosa no Candomblé. 2º Ed. Editora Vozes. Petrópolis, Rio de Janeiro, 1999.

[7] SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana [online]. 2007, vol.13, n.1, pp. 207-236. ISSN 0104-9313.

[8] VELECI, Nailah Neves. Cadê Oxum no espelho constitucional? – Os obstáculos sócio-político-culturais para o combate às violações dos direitos dos povos e comunidades tradicionais de terreiro. 2017. 145 f., il. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania)—Universidade de Brasília, Brasília, 2017.

[9] SEGATO, Rita. La crítica de la colonialidade em ocho ensayos y una antropología por demanda. – La ed- Ciudad Autonoma de Bueno Aires. Prometeo Libros. 2013.

[10] RIVIR. Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015): resultados preliminares / Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos; organização, Alexandre Brasil Fonseca, Clara Jane Adad. – Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, SDH/PR, 2016. 146 p.

[11] NASCIMENTO, Guilherme Martins do. Imunidade tributária sobre templos: uma análise crítica do silêncio dos juristas acerca das religiões de matriz africana. 2015. 64 f. Monografia (Bacharelado em Direito)—Universidade de Brasília, Brasília, 2015.

[12] VELECI, Nailah Neves. Religiões Afro-Brasileiras – O conflito entre liberdade de culto e os direitos dos animais. 2015, 93f.; (Monografia) Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Brasília. 2015.

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