Um discurso caseiro

Barack Obama, Bolsonaro e Yasser Arafat discursaram na ONU (Divulgação/ONU)

Por Rodolpho Barreto Sampaio Júnior*

Jair, mais do que nunca, foi Jair. O tio de meia idade, que até tem um colega negro na pelada semanal, que constrange a família com tiradas homofóbicas nos almoços dominicais e que envia incessantemente fake news pelo WhatsApp, desta vez falou na ONU.

Mas repare bem: muito embora estivesse na Assembleia Geral da ONU, na presença de presidentes, ministros e autoridades de praticamente todos os países do mundo, Jair falou para os brasileiros. A bem da verdade, ele falou para alguns brasileiros. Falou para aqueles que compõem o núcleo duro que ainda o apoia. Falou para o homem branco neopentecostal, de idade madura, morador do Sul ou Sudeste, autônomo ou empresário, com renda e escolaridade acima da média.

Para esse público, Jair mitou. Fez “um excelente discurso”; “falou como estadista”; “deu um recado direto para a Venezuela”; “marcou posição”; “quebrou o pau” e “falou tudo”. E, para finalizar, não podiam deixar de registrar que, ”se a Folha de São Paulo não gostou, então é porque estamos no caminho certo”… Se você acrescentar a cada uma dessas frases emojis da bandeira do Brasil, dos EUA e de Israel, o símbolo do jóia e a arminha com os dedos, então terá uma visão completa da apótese bolsonarista nas redes sociais.

No entanto, deixando de lado a paixão política, o que disse Jair? O de sempre. Infelizmente.

Ao longo de trinta minutos, repetiu os temas que desfia desde antes de iniciar a sua campanha à presidência. Ele salvou o Brasil do socialismo, insinuou serem os profissionais do Mais Médicos agentes cubanos enviados para implementar uma ditadura comunista, enalteceu o golpe militar de 1964, asseverou que se empenha duramente para imiscuir-se em assuntos internos de outros países, criticou a Venezuela e o Foro de São Paulo. Atacou a França, a Alemanha e, como não poderia deixar de ser, a mídia e seu “sensacionalismo”. Demonstrou sua subserviência ao presidente norte-americano, afirmou que não vai mais demarcar terras indígenas e criticou o cacique Raoni, as ONG’s, o ambientalismo radical e o indigenismo ultrapassado. Apresentou os policiais militares como vítimas da violência urbana e, como já esperado, espalhou as fake news habituais acerca do desmatamento das florestas, atribuindo aos povos indígenas a responsabilidade pelos incêndios. Ao concluir seu discurso, lembrou o atentado que sofreu, atribuindo-o falsamente à esquerda. Combateu a “ideologia”, o politicamente correto e o “globalismo”, e defendeu a família tradicional, o gênero binário e, obviamente, citou a Bíblia.

O prometido discurso não ideológico mostrou-se exatamente o oposto. O que se viu foi justamente a defesa ideológica de uma sociedade reacionária, excludente, segregacionista, alheia à diversidade e incapaz de soltar as amarras do passado.

Não se esperava de Jair um discurso com a sofisticação e a fluidez do de Barack Obama. Também não era compatível com seu espírito turrão a blague de Chávez, que ainda sentia o enxofre que na véspera o diabo deixara na tribuna da Assembleia Geral. E ele não teria jamais a capacidade de Yasser Arafat de advertir o mundo para não deixar o ramo de oliveira cair de sua mão. Mas também não se esperava de Jair que fosse tão sinceramente Jair.

* Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é professor universitário e doutor em direito.

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior[email protected]

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em direito civil, professor universitário, Diretor Científico da ABDC – Academia Brasileira de Direito Civil e associado ao IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Foi presidente da Comissão de Direito Civil da OAB/MG. Apresentador do podcast “O direito ao Avesso”.

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