Um outro olhar sobre a presunção de inocência: Porque não devemos renunciar a um direito fundamental

Cena da série Olhos que Condenam, da Netflix (Divulgação/Netflix)

Por Rodolpho Barreto Sampaio Júnior*

Nos últimos meses, e mais especificamente a partir da semana passada, quando o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento das ações em que se discute o momento em que o condenado deve começar a cumprir a sua pena, acirrou-se esse debate. E não sem motivos…

A violência, hoje, atinge patamares insuportáveis. A insegurança ronda todas as classes sociais e parece que nenhuma medida tem sido eficaz para conter o avanço da criminalidade. Nesse cenário, medidas populistas e demagógicas acabam contando com o apoio da população, descrente de outras soluções. A violência policial, o bloqueio de entradas nas favelas, o apoio do exército às polícias militares e até mesmo a tortura; medidas que poucos teriam coragem de defender publicamente, acabam sendo admitidas pela sociedade, consideradas um mal menor diante do aumento da criminalidade.

Dentre essas medidas, a que soa mais atraente é, sem dúvidas, o encarceramento. O recolhimento às prisões parece a solução adequada para se restaurar a tranquilidade. Afinal, com os bandidos presos, não haveria mais quem praticasse crimes e, enfim, a paz iria prevalecer. Por conseguinte, a antecipação da prisão surge como uma resposta adequada e o cumprimento da pena apenas depois do trânsito em julgado favoreceria a impunidade.

Alguns casos emblemáticos servem para ilustrar essa situação, e o exemplo mais famoso talvez seja o do jornalista Pimenta Neves, que foi preso somente depois de transcorridos onze anos do assassinato de sua ex-namorada, mesmo sendo réu confesso.

O que poucos sabem, no entanto, é que existem duas modalidades de prisão: a prisão como pena, como castigo, e a prisão cautelar, também denominada provisória. Aquela é cumprida quando, não havendo mais dúvidas sobre a responsabilidade do réu, determina-se o seu recolhimento à prisão, para cumprir a sentença que lhe foi imposta. Esta, por outro lado, pode ser determinada a qualquer tempo, se o acusado representar um risco para a sociedade ou para o próprio desenvolvimento do processo penal.

Atualmente, o Brasil tem mais de 812 mil presos, dos quais 41% são provisórios. Somos o terceiro país com a maior população carcerária no mundo e, no ritmo atual, em 2025 teremos 1.5 milhão de presos. Mas a violência não cai…

A pergunta que se faz então é: porque a sociedade se mostra disposta a dar de bandeja o direito fundamental de somente ser preso depois do trânsito em julgado se não há uma correlação entre o aumento do encarceramento e a redução da impunidade? É possível que a resposta seja cultural.

Com efeito, uma das primeiras lições que aprendemos nos bancos da faculdade é que o direito penal se ocupa da escumalha, da ralé, da plebe que somente se torna visível aos olhos da sociedade quando pratica algum crime e, assim, deve ser retirada o mais rapidamente possível do convívio social.

Após a prisão, a invisibilidade retorna. Por isso, são largados em depósitos atulhados, infectos, insalubres, aprisionados por mais tempo do que foram condenados. Verdadeiras masmorras medievais, como já afirmou um Ministro da Justiça, onde ficam à mercê de organizações criminosas às quais se entregam para garantirem um mínimo de proteção.

O estado somente volta a se ocupar dos presos quando precisa contê-los e reprimi-los. E a sociedade também não se preocupa em saber como isso será feito. Afinal, ninguém está lá sem motivos, não é mesmo? Não foram presos porque estavam rezando ou indo para a igreja, e se quisessem uma boa vida não deveriam ter praticado crimes… Aliás, tinham mais é que reembolsar a sociedade pelos valores gastos durante sua estadia no sistema prisional…

A persistência dessa visão talvez seja o principal motivo pelo qual significativa parcela da sociedade voluntariamente está disposta a abrir mão de um direito fundamental. Parece paradoxal a renúncia voluntária ao direito de ser preso apenas depois do trânsito em julgado da decisão condenatória. Os direitos fundamentais são, provavelmente, uma das mais importantes conquistas do direito nos últimos séculos. Obstaram o avanço do estado sobre o indivíduo e colocaram freios à cobiça e ganância dos governantes. Em seu nome, revoluções foram feitas, e sua preservação existe exige constante vigilância.

Não se veem manifestações públicas para se limitar a liberdade de expressão, o direito de propriedade, o habeas corpus ou a inviolabilidade da residência. As entidades empresariais não propuseram o fim da capacidade contributiva como critério para se limitar o poder de tributar e tampouco se tem notícia de algum grupo que pregue a revogação do direito de herança. Mas da prisão após o trânsito em julgado a sociedade parece disposta a abrir mão.

Quem não gostaria de ter maior proteção jurídica ao ser penalmente processado? Quem não gostaria de ter a garantia de que seria preso somente depois que não houvesse mais recursos? Quem não está sujeito a, mesmo culposamente, cometer um crime? Quem não se revolta ao ler a história dos irmãos Naves ou ao assistir à série “Olhos que julgam”? Será que o cidadão comum também não poderia ser vítima de um erro judiciário? Então, porque não lutar pela máxima eficácia de um direito fundamental? Porque desistir de um direito que foi constitucionalizado apenas em 1988?

O fato, porém, é que as pessoas não se veem como possíveis criminosas. Esse papel é desempenhado pelo pobre, pelo preto ou pela prostituta, como jocosamente se diz. Por isso, as pessoas estão sim dispostas a desprezar um direito fundamental. Elas não são beneficiárias desse direito; pelo contrário, elas é quem arcariam com as consequências da impunidade (comumente associada à prisão após o trânsito em julgado).

Não importa que não existam evidências correlacionando a redução da violência urbana à antecipação da prisão. Tampouco importa que aproximadamente 340 mil pessoas já estejam presas provisoriamente sem que as estatísticas sobre a criminalidade tenham se modificado. Nesse campo, o debate não é pautado pela racionalidade…

Importa que outros países não tenham igual direito fundamental? Ora, a ideia nunca foi a de restringir tais direitos, senão a de ampliá-los. A Finlândia considera o acesso à internet por banda larga um direito fundamental, e nisso é acompanhada por mais alguns poucos países. Deveria, então, aquele país, restringir seu rol de direitos fundamentais, eliminando essa nova garantia, simplesmente porque os demais países não a asseguraram em seus textos constitucionais?

A resposta é, obviamente, negativa. Os direitos fundamentais espelham a sociedade que se pretende atingir. Quanto mais sofisticados e elaborados, mais protegidos serão os próprios indivíduos. A ideia que nos guia, desse modo, deve ser a de se expandir tais direitos. No caso brasileiro, o combate à impunidade pode se dar em outro front: pode-se alterar o processo penal, pode-se combater a morosidade do Judiciário, pode-se modificar a estrutura dos tribunais. O que não se deve, no entanto, é limitar a eficácia do direito fundamental.

Ao que tudo indica, o Supremo Tribunal Federal deverá rejeitar a prisão após o julgamento em segunda instância. Assim, superada essa questão, talvez seja o momento de enfrentarmos seriamente o superencarceramento, de debatermos a crise do sistema penitenciário e de reformularmos as políticas de segurança pública. Afinal, ninguém merece viver sob o império do medo.

* Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é professor universitário e doutor em direito.

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior[email protected]

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em direito civil, professor universitário, Diretor Científico da ABDC – Academia Brasileira de Direito Civil e associado ao IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Foi presidente da Comissão de Direito Civil da OAB/MG. Apresentador do podcast “O direito ao Avesso”.

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