Impunidade e omissão: Os desafios da luta contra o racismo no futebol

@ECBahia/Twitter/Divulgação + Washington Alves/Light Press + Ricardo Saibun/SantosFC

O futebol, esporte que une culturas e povos diferentes, é marcado também por casos de racismo dentro e fora de campo. Nesse domingo (3), na partida entre Brescia e Hellas Verona, pelo Campeonato Italiano, mais um episódio de preconceito racial foi registrado nos gramados.

O atacante Mario Balotelli, do Brescia, foi alvo de gritos racistas da torcida do Verona e se irritou durante a partida. Aos 10 minutos do segundo tempo, o jogador ouviu os insultos, chutou a bola em direção à arquibancada e ameaçou deixar o campo. Os companheiros de time convenceram Balotelli a continuar no jogo e ele chegou a marcar um gol nos minutos finais.

O episódio é um entre vários, que recebem visibilidade ou não, em que o racismo deu as caras no futebol e refletiu o comportamento de uma sociedade preconceituosa, que ainda tem muito progresso a fazer. Marcelo Carvalho, fundador do Observatório Racial do Futebol, acredita que a incidência desses casos vem aumentando por causa da impunidade de quem é denunciado. Ele conversou com o BHAZ a respeito de racismo e futebol.

O Observatório Racial do Futebol é um projeto que procura monitorar e divulgar os casos de racismo no esporte e promover a discussão sobre o preconceito. “Ele surgiu a partir dos casos com Márcio Chagas, Tinga e Arouca em 2014. Fui pesquisar nas redes o que acontecia com os casos e qual a frequência deles, mas não encontrei nada. Decidi criar o Observatório com o intuito de denunciar, monitorar, tornar públicos os casos”, explicou Marcelo.

Desde 2015, a associação produz relatórios anuais que expõem e analisam todos os casos de preconceito no futebol brasileiro.

Os casos de 2014: Márcio Chagas, Tinga e Arouca

Os episódios que chamaram a atenção de Marcelo se destacaram na imprensa em 2014. Depois de um jogo, o árbitro gaúcho Márcio Chagas encontrou bananas no carro dele, que também teve a lataria danificada por torcedores do Esportivo, de Bento Gonçalves. Após o episódio, que foi só um dos relatados pelo árbitro, Márcio deixou a arbitragem e se tornou comentarista.

O caso de Tinga, que jogava pelo Cruzeiro, se deu no Peru, pela Copa Libertadores. Em uma partida contra o Real Garcilaso, ele foi hostilizado por torcedores do time peruano que faziam sons de macaco quando ele tocava na bola. Na época, o ex-atleta chegou a declarar que trocaria todos os títulos pelo fim do preconceito.

Arouca, volante que atuava pelo Santos em 2014, foi outro jogador cujo relato recebeu visibilidade e despertou a discussão sobre racismo no futebol brasileiro. Depois de uma vitória por 5 a 2 contra o Mogi Mirim pelo Campeonato Paulista, o jogador foi chamado de “macaco” pela torcida do time adversário.

Ao se deparar com a falta de informação sobre o preconceito racial no esporte mais popular do país, Marcelo se inspirou na Fare Network, associação que combate o racismo no futebol europeu, para dar visibilidade à causa no Brasil. Apesar de acreditar que todos os casos têm a mesma importância, ele enxerga esses três como a quebra da falsa imagem de democracia racial que o Brasil passava, no ano em que sediava a Copa do Mundo.

Chega de preconceito: a aula de Roger Machado

A partida entre Bahia e Fluminense do dia 11 de outubro foi marcada pela união dos seus respectivos treinadores, Roger Machado e Marcão, por uma campanha contra o racismo promovida pelo Observatório Racial do Futebol. Os dois únicos técnicos negros da série A vestiram uma camisa com a frase “Chega de preconceito” e deram as mãos antes do início do jogo.

Em entrevista coletiva após a derrota do Fluminense, Roger deu uma aula sobre o racismo estrutural no Brasil e suas implicações no futebol. Para ele, a falta de treinadores negros nos clubes é reflexo de uma sociedade institucionalmente racista.

“Se não há preconceito no Brasil, por que os negros têm um nível de escolaridade menor que o dos brancos; por que a população carcerária, 70% dela é negra; por que quem mais morre são os jovens negros no Brasil, por que os menores salários entre brancos e negros são pros negros, entre as mulheres brancas e negras, são pras negras; por que entre as mulheres, quem mais morre são as mulheres negras?”, questionou.

Silvio Ricardo da Silva, professor de Educação Física da UFMG e coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT), considera a fala do treinador importantíssima, apesar de ser uma exceção. “Ele é um treinador de ponta, isso traz repercussão para a causa. A mídia está cobrindo, ele acaba sendo um formador de opinião. Isso não muda de uma hora pra outra, mas um depoimento como esse ajuda a refletir, dar visibilidade para o problema”, explicou ao BHAZ.

Reflexo da sociedade

O racismo que se expressa nos estádios não acaba quando se sai deles. A naturalidade com que opiniões racistas são manifestadas no ambiente esportivo só expressa a realidade preconceituosa do Brasil.

Para Marcelo, o futebol é mais do que um espelho da sociedade: ele amplifica o problema. “Sempre se acreditou que o futebol permitia esses gritos racistas, homofóbicos, machistas. Mas será que realmente permite? Eles têm que aceitar, se silenciar, só porque são atletas? O futebol representa o problema da sociedade, mas de forma maior. Os casos ganham muito mais visibilidade do que os cotidianos”, explicou.

As milhares de pessoas em um estádio de futebol acabam camuflando torcedores preconceituosos, assim como o anonimato nas redes sociais. A impunidade em casos de racismo no futebol também causa, cada vez mais, uma falta de pudor para a manifestação de comentários preconceituosos.

No dia 14 de outubro, Ronaldo Nazário compartilhou no Instagram um manifesto sobre o preconceito. O pai do jogador foi à escola das netas para dar uma aula sobre racismo estrutural e o Fenômeno se pronunciou: “Quem nega o racismo é racista. Precisamos descortiná-lo e desconstruí-lo para que possamos educar nossos filhos”.

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Temos um papel essencial na criação de uma sociedade livre de preconceitos. E esse registro me enche de orgulho, alegria e esperança: meu pai, ao lado das minhas filhas, na escola delas, depois de dar uma aula sobre racismo estrutural às crianças. A classe, de maioria branca, ouviu o Seu Nélio com a atenção, o interesse e o respeito que o assunto merece. É difícil a percepção do racismo estrutural por aqueles que não sofrem. As pessoas não se reconhecem racistas, mas promovem a segregação, direta ou indiretamente, em nossos costumes. Quem nega o racismo é racista. Precisamos descortiná-lo e desconstruí-lo para que possamos educar nossos filhos, em casa e na escola, impedindo que se perpetue pelas próximas gerações. Não podemos mudar o mundo da noite pro dia, mas, todos os dias, podemos ser a mudança que queremos ver.

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O papel da justiça

Os relatórios produzidos pelo Observatório têm uma coisa em comum: todo ano, uma minoria dos casos analisados é levada às autoridades para julgamento. Em teoria, os árbitros deveriam registrar as ocorrências em súmula, para que elas fossem encaminhadas ao STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva). Dessa forma, o clube seria punido e, caso identificado, o autor da ofensa também.

“O número de casos noticiados é muito maior que os julgados. Na maioria das vezes, os árbitros não registram em súmula, mesmo quando os jogadores reclamam. Falta entendimento da gravidade do assunto, para que eles percebam que tudo deve ser registrado. Os tribunais acabam julgando alguns casos a partir de denúncias nas redes sociais ou na imprensa e, quando vão ver a súmula, não tem nenhum registro”, explicou Marcelo.

Mesmo depois da dificuldade de fazer a denúncia chegar ao STJD, a punição muitas vezes não acontece. Quando o ato criminoso é cometido por uma pessoa ou por um grupo pequeno que não pode ser identificado, o clube dificilmente é punido.

Marcelo contou ainda que o Observatório Racial do Futebol está planejando uma ação conjunta com o STJD em 2020, para que mais denúncias cheguem às autoridades. “Acredito que tem omissão, mas também falta entendimento da necessidade de se punir para ter um progresso. Muitas vezes, quando a imprensa está monitorando, o caso vai pra frente, mas quando ela para de acompanhar, é absolvido. Assim, a gente vai ficar sempre com a falsa impressão de que o racismo não é punido no futebol, e cada vez mais racistas vão se expressar. Eles acabam usando o esporte como palco, porque sabem que nada vai acontecer”.

Sofia Leão[email protected]

Repórter do BHAZ desde 2019 e graduada em jornalismo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Participou de reportagens premiadas pelo Prêmio Cláudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados, pela CDL/BH e pelo Prêmio Sebrae de Jornalismo em 2021.

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