A luta pelos direitos das famílias quilombolas em Alcântara (MA) não acabou

O Congresso chancelou a violação dos direitos quilombolas em Alcântara (MA). Mas a luta não acaba aqui. Crédito: Paulo Hebmuller / Amazônia Real

por Áurea Carolina, deputada federal pelas Muitas/Psol


O Senado aprovou na noite de terça-feira (12) o acordo entre Brasil e EUA para o uso comercial da base de Alcântara, no Maranhão. Diferentemente do que aconteceu na Câmara dos Deputados, o texto foi aprovado em votação simbólica, ou seja, sem o registro individual de votos, o que geralmente acontece quando há consenso sobre a matéria. Lamentavelmente, um sintoma evidente do descaso de grande parte dos parlamentares em relação ao fato de que o acordo representa uma ameaça concreta para centenas de famílias quilombolas que vivem próximas à área do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA). Embora pouco visibilizado no Congresso, na imprensa e na sociedade em geral, esse é um ponto que é – ou pelo menos deveria ser! – crucial em qualquer discussão envolvendo o acordo.

Isso porque, para que o texto passe a valer da forma como está previsto, será necessário desocupar pelo menos 12 mil hectares e expandir a área do CLA, passando literalmente por cima dessas comunidades quilombolas. Embora integrantes do governo Bolsonaro tenham divulgado informações contraditórias a respeito, reportagem exclusiva da Folha de S.Paulo mostra que já está em fase avançada um plano de remoção dessas comunidades por parte do governo federal.

Mais triste ainda é saber que essas comunidades já vivenciaram situação semelhante em um passado não muito distante: na década de 1980, para que o CLA fosse instalado, mais de 300 famílias quilombolas foram removidas de seus territórios ancestrais e realocadas em sete agrovilas afastadas do mar. Perderam, com isso, acesso direto à sua principal fonte de segurança alimentar e sustento econômico e tiveram seus modos de vida profundamente alterados. Essas comunidades aguardam até hoje a devida indenização e a titulação de suas terras.

Sem dúvida, o CLA poderia ser aprimorado por um projeto soberano de desenvolvimento aeroespecial do nosso país – mas isso JAMAIS pode acontecer às custas do sofrimento dessas famílias. Honestamente, não entendo como os donos do poder conseguem desconsiderar isso sem qualquer pudor. No mês de junho, estive em missão oficial no município de Alcântara e pude ver de perto os efeitos perversos daquelas remoções que aconteceram na década de 1980 e que podem estar prestes a se repetir. Sem informações confiáveis sobre o que está por vir, os quilombolas estão temerosos sobre seu futuro.

Não bastasse esse conflito político, a aprovação do acordo é ilegal e inconstitucional. Isso porque a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, estabelece que povos e comunidades tradicionais como os quilombolas devem ser consultados de forma PRÉVIA em relação a qualquer medida que afete seus modos de vida. Esse documento foi ratificado pelo Brasil em 2002 e tem força de lei em nosso ordenamento jurídico. Mas o desgoverno Bolsonaro, com a anuência conivente do Parlamento, preferiu atropelar deliberadamente essa norma e aprovar o acordo a toque de caixa, sem qualquer diálogo com as famílias atingidas. Pelo contrário, a mesma reportagem da Folha que mencionei acima revela que está prevista uma campanha publicitária para convencer esses mesmos grupos dos alegados ‘benefícios’ do projeto.

Insisto: qualquer alegado benefício desse acordo e da utilização do CLA – proteção das tecnologias americanas para o lançamento aeroespacial, geração de divisas, desenvolvimento do programa espacial brasileiro – não será válido se acontecer às custas da violação dos direitos dessas famílias. Mesmo porque, até o momento, não foram apresentados estudos confiáveis sobre a rentabilidade do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas e suas reais vantagens para o país. O que temos são apenas projeções vagas e sem qualquer fundamentação técnica. No limite, temos aqui uma questão ética, moral, civilizacional. O que está em jogo são os modos de vida dessas centenas de famílias quilombolas e sua relação com territórios ancestrais. Não podemos nos contentar com falácias hipócritas sob a lógica perversa do desenvolvimentismo a todo custo.

Da minha parte, trabalhei muito para que essa peleja não caísse na invisibilidade à qual nossos povos e comunidades tradicionais têm sido tradicionalmente relegados no Brasil, cujo passado colonial, escravocrata e genocida ainda insiste em deixar suas marcas no presente. Desde o início da tramitação, tenho me posicionado de forma veementemente contrária a esse acordo. Junto com a querida deputada Talíria Petrone, lancei em agosto a campanha #ConsultaQuilombolaJá. Nosso objetivo era pressionar o Parlamento a garantir o cumprimento da Convenção 169, em respeito à lei brasileira.

Também apoiamos a manifestação do Ministério Público Federal, que, por meio de nota técnica, recomendou ao Parlamento suspender a tramitação do acordo enquanto os quilombolas de Alcântara não fossem consultados. Nossa luta chegou ainda à Justiça: com a bancada do PSOL na Câmara, pedimos ao STF que paralisasse a tramitação desse acordo, que é inconstitucional uma vez que fere a Convenção 169 da OIT. Infelizmente, o ministro Alexandre de Morais indeferiu nosso pedido, alegando não interferir no Poder Legislativo. E, em 22 de outubro, o acordo foi aprovado por 329 a 86 na Câmara – não sem a oposição aguerrida e corajosa da nossa bancada do PSOL na Câmara e de parlamentares sensíveis a essa causa.

Mas nossos esforços jamais terão sido em vão. Em uma frase célebre, o antropólogo e indigenista mineiro Darcy Ribeiro disse: os fracassos são minhas vitórias e eu detestaria estar no lugar de quem me venceu. Para mim, portanto, é uma honra não constar no rol de parlamentares que chancelaram essa nefasta intervenção do governo Bolsonaro em Alcântara. Minha luta foi ao lado das comunidades quilombolas, de organizações de direitos humanos e de integrantes da Coalizão Negra por Direitos, grandes parceiros nas lutas antirracistas. Obviamente, contamos também com o apoio precioso de colegas deputados comprometidos com essa causa – não muitos, infelizmente.

Esse processo não se encerra aqui. Seguirei acompanhando de perto o caso de Alcântara, sempre ao lado da população quilombola. Estamos em busca de reparação às famílias que tiveram seus direitos violados na década de 1980 e de proteção àquelas que estão ameaçadas pela expansão do CLA. E seguiremos pressionando o governo Bolsonaro a promover a escuta dessas comunidades, em acordo com a lei. Consulta Quilombola Já!

Gabinetona[email protected]

A Gabinetona é um mandato coletivo construído por quatro parlamentares em três esferas do Legislativo. É representada pelas vereadoras Cida Falabella e Bella Gonçalves na Câmara Municipal de Belo Horizonte, pela deputada estadual Andréia de Jesus na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e pela deputada federal Áurea Carolina na Câmara dos Deputados, em Brasília.

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