O secretário de Cultura sem cultura

@roberto.alvim.9/Facebook/Reprodução

Eu havia prometido a mim mesmo não ficar dando ouvidos às sandices do governo atual e de seus asseclas, que construíram para si uma bolha em que pregam para convertidos. Mas o que disse esta semana o atual secretário de cultura, Roberto Alvim (aquele que chamou Fernanda Montenegro de “sórdida”), me faz quebrar a promessa, não só pelo nível de bobagens por ele proferidas, mas pelas mostras de completa falta de cultura.

Os jornais noticiam que, na última terça-feira (19), na conferência anual da Unesco, em Paris, ele afirmou que o projeto de sua secretaria é “promover uma cultura alinhada às grandes realizações de nossa civilização judaico-cristã”. Alguém pode me explicar do que ele está falando? Com bom grau de impropriedade, costuma-se usar a expressão “cultura ocidental e cristã” e seria compreensível mesmo que se dissesse “cultura cristã”, assim simplesmente, mesmo que com imprecisão. Mas “judaico-cristã”, isso existiu alguma vez? Basta lembrar que o cristianismo só se tornou o cristianismo, nos seus três primeiros séculos de existência, quando abandonou as práticas do judaísmo, a posição de Paulo prevalecendo sobre a de Pedro. Isso está nos Atos dos Apóstolos e nos escritores cristãos posteriores (leia, secretário!)

Mas vamos ouvi-lo, para que não me acusem de malevolente. Essa tal cultura a que ele faz referência, é ele mesmo que a define como “o amor dos clássicos” – que não eram nem judeus nem cristãos, pelo contrário, eram todos “gentios” e “pagãos” –, esse tal amor sendo o que se recuperou “com a eleição do presidente Jair Bolsonaro”, quando “os valores ancestrais de elegância, beleza, transcendência e complexidade encontraram uma nova atmosfera”. Concentrando num só dos substantivos abstratos (porque duvido que o secretário saiba os significados de beleza, transcendência e complexidade), pode-se dizer tudo do presidente da República e seu entorno, menos que cultivem algum tipo de “elegância”. Cada vez que algum deles abre a boca, todos já sabemos que vem simples baixaria…

Explicou mais o secretário: “A arte brasileira transformou-se em um meio para escravizar a mentalidade do povo em nome de um violento projeto de poder esquerdista, um projeto mesquinho que perseguiu e marginalizou a autêntica pluralidade de nossa nação”. Curto-circuito completo. Continuo todavia imaginando o que poderia ser a tal “civilização judaico-cristã” e só posso pensar que diria respeito à produção de judeus em ambiente cristão. Então, seus representantes seriam do tipo, para falar só de três dos mais importantes para o mundo contemporâneo, Karl Marx, Sigmund Freud e Walter Benjamin? Mas parece que nesses o secretário inculto colaria a pecha de “esquerdistas” e “mesquinhos”, da mesma forma que ele considera Fernanda Montenegro “sórdida” e “mentirosa”…

Nem será preciso dizer que o secretário não sabe o que é a “pluralidade” cultural da “nossa nação” (será que ele sabe o que é “nação”?), pois foi só em ambientes pluralistas que judeus puderam produzir, pelos séculos de “civilização cristã”, obras impactantes, como fizeram os três citados há pouco. Fora isso, o que se viu foi pura violência, cujo ápice foram os fornos de Auschwitz e assemelhados.

Não se pode exigir que todo secretário de cultura seja culto, pois ele pode ser só um bom gestor – e no Egito romano havia mesmo um escriba que não sabia escrever, mas dava conta do recado, terceirizando seu trabalho. Não podemos também reduzir os impropérios do secretário a um choque entre esquerda e direita, como querem reduzir tudo agora, pois há muita gente que não é de esquerda e é culto, muitos até cultíssimos (conheço um punhado deles). Pode ser que o problema esteja, no caso do sr. Roberto Alvim, não tanto em ele não ser culto, mas em pensar que é sem ser, tendo-lhe faltado a felicidade de encontrar um Sócrates que lhe demostrasse isso.

Assim, em estilo bem “judaico-cristão”, talvez só nos reste mesmo dizer: perdoemos o secretário, porque ele não sabe o que diz. Isso caso não fosse de gravidade extrema ter um secretário da cultura assim tão sem cultura.

Jacyntho Lins Brandão[email protected]

Jacyntho Lins Brandão é doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo e professor de grego na Universidade Federal de Minas Gerais, onde foi diretor da Faculdade de Letras e Vice-Reitor. É autor de, entre outros, O fosso de Babel (romance) e A poética do hipocentauro (ensaio). Traduziu do original acádio o poema Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh, indicado para o Prêmio Jabuti de 2017. É membro da Academia Mineira de Letras.

SIGA O BHAZ NO INSTAGRAM!

O BHAZ está com uma conta nova no Instagram.

Vem seguir a gente e saber tudo o que rola em BH!