A ministra e o desembargador: Os dois fronts de uma cruzada moralista

Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil + Divulgação/Netflix

Por Rodolpho Barreto Sampaio Júnior*

Postergada em proveito das reformas econômicas, a agenda de costumes no primeiro ano do atual governo não foi implementada como se pretendia.

Na surdina, porém, a ministra da Família desenhava uma nova “política pública”: para combater a gravidez na adolescência, divulgou-se, no início de 2020, a ideia da iniciação sexual tardia, consistente na abstinência sexual pelos jovens. O “raciocínio” é o de que, se não transarem, as crianças e as adolescentes não terão a menor possibilidade de engravidarem. A autocontenção seria, assim, a mais eficiente estratégia de prevenção contra a gravidez precoce e as doenças sexualmente transmissíveis. De fato, se as jovens não mantiverem relações sexuais, a probabilidade de engravidar cai para zero.

Em outro esfera, mas baseado no mesmo ideário, um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedeu medida liminar- já derrubada pelo Supremo – suspendendo o filme A Primeira Tentação de Cristo, produzido pelo Porta dos Fundos e divulgado pela Netflix.

Em comum, os dois fatos se inserem na cruzada moralista que tem ecoado Brasil afora, afrontando a Constituição e ignorando a realidade.

Aparentemente, a ministra entende que o sexo só deveria ser realizado por adultos e, preferencialmente, após o casamento. É até possível que defenda, inclusive, que só deveria ser praticado para fins exclusivamente reprodutivos, muito embora isso não possa ser afirmado de forma peremptória. Ela nega, então, às jovens, o direito ao sexo. Ela não pretende que se pratique o sexo de forma responsável, segura, consciente e consentida; ela defende justamente o não sexo, a abstinência, a negação do prazer.

A ministra sabe que as práticas sexuais mudaram nas últimas décadas. A virgindade não é mais um tabu, o prazer não é um anátema e o próprio casamento foi desbancado por outras formas de constituição de família.

Além disso, a gravidez na infância e adolescência é um fenômeno complexo, com múltiplas causas e com efeitos socialmente desastrosos. A ministra não deve ignorar – a sua posição oficial não o permitiria – que nos últimos 20 anos, mais de 13 milhões de crianças e adolescentes, entre 10 e 19 anos, ficaram grávidas no Brasil. Tampouco pode desconhecer que o país tem a quarta maior quantidade de casamentos infantis, perdendo apenas para a Índia, Bangladesh e Nigéria. Aqui, 26% das adolescentes se casam antes dos 18 anos: são 2,9 milhões de uniões precoces. 877 mil se casaram antes dos 15 anos, sendo que 88 mil se casaram entre 10 e 14 anos.

Quando nos lembramos que até 2005 permitia-se que o abusador sexual se livrasse da pena caso se casasse com a vítima, e que apenas em 2019 se proibiu o casamento antes dos 16 anos de idade, fica fácil inferir que as uniões precoces nunca foram exatamente um problema a ser enfrentado.

Já o desembargador que em atenção à maioria cristã da população brasileira censurou um vídeo disponível apenas para assinantes de um canal de streaming que, voluntariamente, selecionassem o filme para assistir, nos trouxe à memória o fétido odor da censura.

Desde que Sarney, em 1986, proibiu a divulgação de Je vous salue, Marie no Brasil, não se tinha notícia de um filme censurado – muito embora, recentemente, exposições, peças teatrais e livros tenham sido objeto de censura, até mesmo dentro da Câmara dos Deputados.

Tanto em um quanto em outro caso, o que se observa é uma empreitada moralista, que objetiva impor à sociedade uma determinada conduta, que seria a “correta”, “desejável” e “aceitável”. Sob essa ótica, a moça deveria se preservar, mantendo-se pura e virgem até o casamento. Aos rapazes certamente não se exigiria tamanho sacrifício: a eles sempre se reconheceu o direito à iniciação sexual precoce. Igualmente, todos devem se lembrar que com religião não se brinca…

É necessário relembrar que as políticas públicas devem ser dirigidas a toda a sociedade, sem qualquer patrulhamento moral. Elas servem para a promoção dos direitos fundamentais, incluindo-se aí os direitos sexuais reprodutivos. Do mesmo modo, não é aceitável que o estado, por qualquer de seus poderes, diga à sociedade qual filme ela pode assistir. Essa é uma escolha que cabe a cada indivíduo; pode-se até lamentar tal escolha, mas não se pode censurá-la.

É preciso reafirmar, a cada oportunidade, que não se admite que o Estado controle a sexualidade feminina e nem que imponha qualquer forma de censura à sociedade. Nesses casos, a escolha, soberana, é sempre do indivíduo.


* Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em direito e professor universitário. Foi o primeiro presidente da Comissão de Direito Civil da OAB/MG e é membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior[email protected]

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em direito civil, professor universitário, Diretor Científico da ABDC – Academia Brasileira de Direito Civil e associado ao IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Foi presidente da Comissão de Direito Civil da OAB/MG. Apresentador do podcast “O direito ao Avesso”.

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