Adeus a Marcelo Dolabela

marcelo dolabela poeta
Marcelo Dolabela em um dos locais preferidos, o Edifício Maletta (Foto: Túlio Travaglia)

Belo Horizonte perdeu, no dia 18 de janeiro, um de seus mais expressivos poetas: Marcelo Dolabela. Digo “poeta” para englobar tudo que ele produzia em termos de literatura, de música, de cinema, performances e shows. De fato ele era, desde a passagem dos anos 1970-80, um dos articuladores culturais na cidade e deixa um acervo precioso, que seria desejável fosse conservado, além de mais de 30 livros de poemas. É do poeta que quero aqui falar.

Vários têm registrado nas redes sociais e na imprensa escrita aspectos importantes da atuação de Marcelo Dolabela. É que, como afirmou Nísio Teixeira, num extenso e afetuoso artigo no “Estado de Minas”, “sua morte deixa uma profunda lacuna não só na produção da poesia pelo cotidiano belo-horizontino”, mas na própria vibração cultural da cidade, já que, “a despeito de um temperamento mais circunspecto de saída, Dolabela exercia um incrível poder de articulação nas mais várias instâncias e fronteiras”.

Foi assim desde a revista “cemflores”, criada no final dos anos 1970 com colegas da UFMG, dentre os quais Jair Fonseca (o Gato Jair) e Luciano Cortez, então, como ele, estudantes de letras (fui professor dessa turma nessa época distante…). Era a geração mimeógrafo, que produzia poesia “marginal” cuidando de todas as etapas do processo: da escrita até a publicação final, em diálogo com todas as tendências. Marcelo escreveu em 1980:

                  o poeta concreto
discute com o poeta
do poema/processo
qual deles é capaz de apanhar
do poeta marginal
enquanto isso o poeta “marginal”
tira mimeógrafo do nariz.

É que, para ele, “poetar é: conversar em eco”, ou seja, uma atividade tão ininterrupta quanto gregária. Foi com esse espírito que capitaneou, no centenário de Belo Horizonte, em 1997, a publicação da coleção “Poesia Orbital”, 62 livros de escritores em atuação na cidade. A ideia era, nas suas próprias palavras, fazer ecoar “bilhões de vozes num único eco”.

Além de com os contemporâneos, o diálogo de Marcelo espraia-se pelo tempo. No livro que publicou em “Poesia Orbital”, com o título de “Amônia”, existe a sequência “Minas cabralina 6 fragmentos”, em que conversa com escritores e lugares, a saber, Alphonsus de Guimaraens/Mariana, Pedro Nava/Rua da Bahia, Contemplação do Campo das Flores/Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes/Juiz de Fora, Henriqueta Lisboa/Casa de Pedra, Hermes Fontes/Cemitério da Saudade. Com Henriqueta Lisboa ele escreveu:

                 de azul profundo uma túnica
inconsútil te veste a pele
na noite a lesma do sono
a mesma insônia modela
os séculos colhem as tâmaras
tenras da última estrela
suspensa por sobre o abismo
que uma pérola revela
a música para as víboras
ergue um punhal e apunhala
arqueja e fere as carícias
que já se foram da fala
casa de pedra completa a
secreta aurora das pétalas
doce fluído magnético
do alvoroçar de janelas

É sintomático que em seu livro de 2015, “Acre, ácido, azedo”, Marcelo Dolabela tenha celebrado suas relações com a cidade numa série de 17 poemas intitulada “Belo Horizonte, adeus”. Rememorando: houve um dia em que ele desembarcou aqui, procedente de Lajinha, na Serra do Caparaó, para estudar veterinária (curso que logo abandonou, migrando para letras). Acabou ficando a vida toda – e só seu corpo retornou agora à terra natal para ser sepultado. Sua vida, portanto, esteve inteiramente envolvida com Belo Horizonte, cujo cotidiano ele encheu com poesia. Tanto que, o velório, na Casa do Jornalista, contou com recital de poemas (como ele queria) e os amigos organizaram ainda uma “poesia de sétimo dia”.

Assim, o adeus da cidade a Marcelo pode gozar do privilégio de estar conjugado com o adeus de Marcelo à cidade, expresso de modo preciso nos versos de “Belo Horizonte, adeus 2”:

                           Adeus cidade. Adeus tempo.
Adeus estrada. Adeus lar.
Adeus tormenta. Adeus vento.
Adeus batalha. Adeus bar.

Amor que vi nesta rua,
ao cair da tarde, ali.
No céu, tão cheia, ia a lua
Na paz da Carandaí.

Adeus chão. Adeus Arrudas.
Adeus cruzes da história.
Adeus moedas de Judas.

Foi tudo peso, foi brando:
a dor, a vida e a memória.
Por ora: Adeus... até quando...

Jacyntho Lins Brandão[email protected]

Jacyntho Lins Brandão é doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo e professor de grego na Universidade Federal de Minas Gerais, onde foi diretor da Faculdade de Letras e Vice-Reitor. É autor de, entre outros, O fosso de Babel (romance) e A poética do hipocentauro (ensaio). Traduziu do original acádio o poema Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh, indicado para o Prêmio Jabuti de 2017. É membro da Academia Mineira de Letras.

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