‘Lavamos as mãos nas poças quando chove’: A população de rua e a pandemia do coronavírus

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Moradores em situação de rua e a pandemia (Caio Castor/Ponte Jornalismo)

Por Caio Castor e Leandro Barbosa, da Ponte Jornalismo

Acostumado a mexer em recicláveis que ele cata pelas ruas de São Paulo, a cor preta da sujeira em suas mãos não incomoda José de Souza, 49 anos. As mãos só são lavadas quando há possibilidade de usar um banheiro. Ainda assim, o homem em situação de rua esfregava uma mão na outra tentando aproveitar um dos raros momentos do seu dia em que teria acesso ao álcool em gel, a fim de se prevenir do coronavírus.

Para José, o produto oferecido pela Missão Belém, da Arquidiocese de São Paulo, é um luxo que ele não está acostumado a ter. “Na rua não tem nada disso”, me disse. “Falam que a gente tem que lavar as mãos, mas vamos lavar onde? A gente não tem água. Não acredito que eu vá pegar essa doença. Tenho fé, Deus vai me proteger. Já passei por muita coisa nessa vida e tô aqui trabalhando de baixo de chuva e sol”.

A notícia da doença que já matou mais de nove mil pessoas no mundo, chegou a José pela TV de um bar. Tudo o que ele sabe é o que viu lá. “Eu sei que já matou muita gente. Vi que os sintomas são tosse, febre e falta de ar”. Desde então, seus dias na rua estão se tornando cada vez mais difíceis. “Olha, é isso que eu tenho pra comer”, me disse abrindo um saco com dois salgados. “Essa doença começou e agora as pessoas têm medo de sair de casa e não entregam mais comida”, lamenta.

Por cada carroça cheia José ganha R$20. Em um dia bom de trabalho já conseguiu faturar até R$50. Mas com a chegada do vírus ao Brasil, conta que o trabalho também foi prejudicado. “Eu trabalho com reciclagem. As empresas, lojas, tudo fechando, diminuiu o lixo. Agora é mais difícil encher o carrinho”, explica.

Comida, álcool e sabonete 

A Paróquia São Miguel Arcanjo, na Mooca, zona leste de SP, que fica sob os cuidados de padre Júlio Lancelotti, sempre foi o refúgio para a população de rua. Em tempos de coronavírus, mais ainda. Foi lá que a Ponte encontrou mais de 100 pessoas em busca do básico para viver: comida, álcool e sabonete. Enquanto o grupo tomava café da manhã, por volta das 8h30 desta quinta-feira (19/3), o padre explicava sobre o coronavírus e as formas de prevenção. Aos que tossiam, ele oferecia máscara numa tentativa de minimizar os riscos, devido a aglomeração de pessoas. 

“Há aqueles que dizem ‘eu sou pobre, nem essa doença vai me querer’, e há aqueles que já olham o contexto e se preocupam mais com a falta de comida, trabalho e segurança”, declara Lancellotti. Ambos estão em risco, uma vez que a possibilidade de higienização é escassa. E o desabafo do auxiliar de serviços gerais Robson de Almeida, que está em situação de rua, denuncia isso. “Eu sei que tô falando por tudo mundo aqui. Hoje nós agradecemos que choveu e tá cheio de poça de água, e a gente vai ter acesso para lavar as mãos”. 

O infectologista Juvêncio Furtado, professor de Infectologia na Faculdade de Medicina do ABC e chefe do Departamento de Infectologia do Hospital Heliópolis, explica que a população de rua faz parte dos grupos de risco por viverem em locais abertos, na rua, sem a possibilidade de higienização. “Eles estão expostos a qualquer tipo de vírus, do influenza ao corona”, diz.

O médico defende a ideia do acolhimento como possibilidade de prevenção. “Além de albergues, é preciso pensar em como conscientizar essa população sobre a importância dessa higienização e oferecer até mesmo nas ruas a possibilidade pra que isso aconteça”, afirma. 

Uma possível solução para monitorar os sintomas dessas pessoas, afirma Lancelotti, que também é coordenador da Pastoral do Povo de Rua, é a criação de centros de acolhida emergenciais. Para ele, locais como o Ginásio da Mooca poderia servir como um desses centros. “Tendo um lugar para entrar no ginásio, um colchão para dormir e pessoal da saúde acompanhando, já minimiza a situação”, pondera. 

Quanto a dinâmica de prevenção exigida para conter a propagação do vírus, Irandir dos Santos, que estava na igreja, desabafou: “as pessoas discutem sobre a doença, de lavar a mão, de  passar álcool em gel, máscaras, mas não existe isso na rua é só na televisão”.

Outro lado

Questionada sobre a possibilidade de executar iniciativa como a destinação de um local para acolhimento da população de rua, a prefeitura de SP afirma, em nota, que realizou a capacitação dos profissionais das Unidades Básicas de Saúde e intensificou as abordagens de pessoas em situação de rua com orientação dos profissionais das equipes Consultório na Rua e Redenção na Rua.

“Na identificação de caso suspeito é realizada pesquisa de onde a pessoa em situação de rua dorme e circula, para identificar contatos e possíveis novos suspeitos e encaminha a a pessoa para atendimento”, diz trecho da nota.

Embora o órgão tenha alegado que profissionais estão rodando as ruas de São Paulo para orientar a população de rua quanto ao coronavírus, o grupo reunido na Paróquia São Miguel Arcanjo afirmou nunca ter recebido nenhuma abordagem do órgão. 

Atualmente, de acordo com a assessoria de imprensa da administração municipal, a cidade conta com 89 casas de acolhimento com 17,2 mil vagas, para atender as mais de 24 mil pessoas que vivem nas ruas. A assessoria também afirmou que há 10 núcleos de convivência para pessoas em situação de rua na cidade, com 3.172 vagas, com acesso a banheiros e kits de higiene, onde eles podem tomar banho e receber orientações.

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