Caso Mari Ferrer: ‘Estupro culposo’ existe? O julgamento acabou? Entenda a decisão

Mariana Ferrer e André Aranha
Especialistas explicam as implicações do caso que chocou o Brasil (Reprodução/The Intercept/Youtube)

A absolvição do empresário André de Camargo Aranha no caso Mariana Ferrer gerou revolta nas redes sociais. Após o The Intercept divulgar um vídeo da audiência iniciou-se uma campanha pedindo justiça pela influenciadora. No entanto, alguns questionamentos foram levantados. “Estupro culposo” existe? Aranha ainda pode ser condenado? Por que o advogado de defesa humilhou e ofendeu Mariana durante o julgamento?

O BHAZ conversou com especialistas para entender o que foi decidido pelo juiz responsável pelo caso. Para as advogadas entrevistadas, a expressão “estupro culposo” usada pelo The Intercept foi infeliz. A modalidade não existe na legislação e não foi usada no processo para inocentar o empresário.

Ainda assim, o caso é simbólico de uma estrutura machista no judiciário e na sociedade. A advogada criminalista Paola Alcântara defende que o tratamento, como o recebido por Mariana, é um processo de revitimização. “É um ponto dentro de um sistema penal puramente preconceituoso e machista. Essa nova vitimização passa por todos os setores da vida social”, afirma.

‘Modalidade culposa do estupro’

O título da reportagem do The Intercept, que trouxe o vídeo da audiência à tona, trazia a afirmação de que o julgamento terminou “com sentença inédita de ‘estupro culposo'”. O termo é uma alusão a crimes cometidos sem a intenção do autor. O trecho deu origem a campanha “estupro culposo não existe”. No entanto, a expressão não foi utilizada para justificar a decisão do juiz.

Para a advogada criminalista Joyce Meireles, houve uma interpretação incorreta por parte do portal de notícias. “O estupro culposo de fato não existe e o juiz na sentença não quis fazer acreditar que existisse. Esse termo, como consta na sentença, é uma questão técnica. Ele não está explicando para uma população geral. Ele está explicando para quem tem o linguajar jurídico”, detalha.

Trecho da decisão do caso Mari Ferrer
Trecho pode ter levado a interpretação incorreta sobre a decisão
(Reprodução/Estado de Santa Catarina)

A especialista explica que o jurista cita um autor para trazer a definição de vulnerabilidade. Segundo Joyce, a citação explica que se o autor do fato não tem conhecimento da vulnerabilidade entraria em “erro de tipo”. “É quando a pessoa acredita que está fazendo algo que é dentro da lei, só que na verdade está fazendo algo ilegal”, define.

Em outras palavras, a sentença diz que, se Aranha não sabia que ela estava em estado de vulnerabilidade, ele não poderia ter cometido estupro de vulnerável. Em um trecho, a decisão cita: “como não foi prevista a modalidade culposa de estupro de vulnerável, o caso é atípico”. Joyce explica que essa é a afirmação exatamente de que não seria possível cometer um estupro culposo, ou sem intenção.

O Ministério Público de Santa Catarina também reafirmou que o termo não foi usado na absolvição de Aranha. “O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável”, afirmou o órgão em nota publicada no site (leia na íntegra abaixo).

‘Não há provas contundentes’

Na decisão, a Justiça entendeu que não havia outra prova contra Aranha, a não ser a palavra da vítima. Paola Alcântara destaca a importância desse relato, principalmente em crimes sexuais. “Não é que a gente espera que todas as pessoas sejam condenadas. Mas nesse caso foi ao inverso. Saiu da regra e essa exceção não se justificaria”, declara. Ainda assim, o juiz não considerou que tenha sido o suficiente no caso de Mari Ferrer.

Trecho decisão caso Mari Ferrer
Decisão reconhece a importância do relato da vítima, mas considera que não existem outras ‘provas contundentes’ (Reprodução/Estado de Santa Catarina)

Para a advogada, é possível adotar uma estratégia de defesa que desqualifique a palavra da vítima. “Só que isso não permite que qualquer advogado ultrapasse limites éticos e aceitáveis para isso”, alerta.

O Ministério Público de Santa Catarina reafirmou que as evidências não apontam que houve crime. “Neste caso,  a prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime”, declarou.

‘Implorando por respeito’

Em imagens divulgadas pelo Intercept, é possível ver Mariana sendo humilhada durante o julgamento por videoconferência. A defesa do empresário exibiu fotos sensuais produzidas pela jovem durante trabalhos como modelo profissional antes do crime. O advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho afirma que nunca “teria uma filha” do “nível” de Mariana, entre outras ofensas.

Com as inúmeras humilhações, Mariana ainda chegou a reclamar com o juiz. “Excelentíssimo, eu tô implorando por respeito, nem os acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?”, diz. 

Joyce Meireles reforça que é totalmente inadmissível que seja feito da forma como foi. “Só escancara que o Brasil é um país extremamente machista. Independente de ser vítima ou acusado, esse tratamento de julgamento da moral como foi feito não deveria ter espaço em uma audiência”, declara.

“É lamentável porque se ela tira uma foto com as pernas abertas ou fechadas, se ela tira foto chupando um picolé ou da forma que ela queira, não permite que seja praticado um ato sexual com ela, que ela não concorde. Essa abordagem que é feita, para desmoralizar a mulher, para humilhar a mulher enquanto vítima, não contribui em nada para o processo, em nada para ser discutido. A única finalidade é a humilhação, o que infelizmente a gente está cansada de sofrer”, acrescenta.

O que acontece daqui pra frente…

O caso de Mari Ferrer ganhou enormes proporções com a repercussão. Agora, alguns desdobramentos podem ainda acontecer.

…Para o advogado do réu

A OAB/SC (Ordem dos Advogados Brasileiros de Santa Catarina) afirmou que o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho deve prestar esclarecimentos. “Os processos disciplinares tramitam no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SC e são sigilosos até o seu término, na forma da lei vigente”, declarou.

Para Paola Alcântara, a atuação de Gastão na audiência ultrapassou os limites aceitáveis. “A falta ética do advogado, que foi puramente invasiva, não corresponde com uma defesa técnica e qualificada que a OAB determina”, opina.

…Para o Juiz responsável pelo caso

A CNJ (Corregedoria Nacional de Justiça) está apurando a conduta do juiz de Direito Rudson Marcos, responsável pelo julgamento de André Aranha. A conduta do magistrado será verificada e o órgão já requisitou informações para apuração.

Paola Alcântara acredita que o juiz tem a reponsabilidade de intervir, caso alguém seja ofendido durante uma audiência. “Independente de quem tiver sido ofendido, é obrigação do magistrado fazer as intervenções necessárias”, comenta.

…Para André Aranha

Paola Alcântara explica que uma medida que já foi tomada pela influenciadora é o recurso de apelação. Os advogados de Mari entraram com o pedido. A especialista explica que o Ministério Público irá revisar a absolvição e os autos serão novamente avaliados. “A partir de todo esse conjunto eles vão julgar o caso novamente. Só depois que o TJ decidir, já não caberia avaliação de prova”, acrescenta.

…Para os julgamentos de crimes sexuais

Joyce Meireles acredita que o principal problema do caso foi a forma como foi conduzida a audiência. “Ela aos prantos, qualquer mulher que assista aquilo vai se sentir profundamente ofendida. Isso pode levar inclusive a pensar duas vezes antes de expor um crime desse tipo. Não é esse o objetivo da justiça. O ideal é que as pessoas que se sentiram violadas sejam ouvidas, para que seja avaliado”, opina.

A advogada ressalta a importância de audiências serem gravadas, uma mudança recente no sistema judiciário. “Antes era somente por escrito. Abusos acontecem o tempo todo, isso tem sempre que ser combatido”, defende.

Nota da OAB/SC na íntegra

A OAB/SC, por intermédio de seu Tribunal de Ética e Disciplina, atua no sentido de coibir os desvios éticos. Estamos dando sequência aos trâmites internos que consistem em oficiar ao advogado para que preste os esclarecimentos preliminares necessários para o deslinde da questão.

Os processos disciplinares tramitam no Tribunal de Ética e Disciplina da OAB/SC e são sigilosos até o seu término, na forma da lei vigente.

Nota do CNJ na íntegra

A Corregedoria Nacional de Justiça  instaurou expediente para apurar a conduta do juiz de Direito Rudson Marcos, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC), na condução de audiência em processo criminal movido pelo Ministério Público estadual contra André de Camargo Aranha, no qual este é acusado da prática de suposto crime de estupro de vulnerável.

Na Reclamação Disciplinar 0009128-73.2020.2.00.0000, a Corregedoria Nacional de Justiça requisitou informações sobre a existência de eventual apuração sobre o mesmo fato junto à Corregedoria-Geral do TJSC.

A verificação sobre a conduta do magistrado em Santa Catarina também é acompanhada pela Comissão Permanente de Políticas de Prevenção às Vítimas de Violências, Testemunhas e de Vulneráveis do CNJ, composta pelas conselheiras Maria Cristiana Ziouva e Ivana Farina e pelo conselheiro Marcos Vinícius Jardim. O conselheiro Henrique Ávila também se manifestou pela imediata apuração dos fatos.

Nota do Ministério Público de Santa Catarina na íntegra

Não é verdadeira a informação de que o Promotor de Justiça manifestou-se pela absolvição de réu por ter cometido estupro culposo, tipo penal que não existe no ordenamento jurídico brasileiro. Salienta-se, ainda, que o Promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo.

A 23ª Promotoria de Justiça da Capital, que atuou no caso, reafirma que combate de forma rigorosa a prática de atos de violência ou abuso sexual, tanto é que ofereceu denúncia criminal em busca da formação de elementos de prova em prol da verdade. Todavia, no caso concreto, após a produção de inúmeras provas, não foi possível a comprovação da prática de crime por parte do acusado.

Cabe ao Ministério Público, na condição de guardião dos direitos e deveres constitucionais, requerer o encaminhamento tecnicamente adequado para aquilo que consta no processo, independentemente da condição de autor ou vítima. Neste caso,  a prova dos autos não demonstrou relação sexual sem que uma das partes tivesse o necessário discernimento dos fatos ou capacidade de oferecer resistência, ou, ainda, que a outra parte tivesse conhecimento dessa situação, pressupostos para a configuração de crime.

Portanto, a manifestação pela absolvição do acusado por parte do Promotor de Justiça não foi fundamentada na tese de “estupro culposo”, até porque tal tipo penal inexiste no ordenamento jurídico brasileiro. O réu acabou sendo absolvido na Justiça de primeiro grau por falta de provas de estupro de vulnerável.

O Ministério Público também lamenta a postura do advogado do réu durante a audiência criminal, que não se coaduna com a conduta que se espera dos profissionais do Direito envolvidos em processos tão sensíveis e difíceis às vítimas, e ressalta a importância de a conduta ser devidamente apurada pela OAB pelos seus canais competentes.

Salienta-se, ainda, que o Promotor de Justiça interveio em favor da vítima em outras ocasiões ao longo do ato processual, como forma de cessar a conduta do advogado, o que não consta do trecho publicizado do vídeo.

O MPSC lamenta a difusão de informações equivocadas, com erros jurídicos graves, que induzem a sociedade a acreditar que em algum momento fosse possível defender a inocência de um réu com base num tipo penal inexistente.” 

Edição: Roberth Costa
Guilherme Gurgel[email protected]

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Escreve com foco nas editorias de Cidades e Variedades no BHAZ.

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