Recepcionista demitida por usar tranças afro será indenizada em R$ 30 mil

Mulher com tranças afro
Consultora de moda disse que o penteado não condizia com o ‘dress code’ da empresa (Orna Wachman/Pixabay)

Do TRT-MG

Uma mulher que trabalhava como recepcionista de uma clínica médica denunciou ter sido vítima de discriminação racial no ambiente de trabalho e será indenizada em R$ 30 mil após perder o emprego por se recusar a remover suas tranças afro, conforme determinação da chefe. A decisão foi tomada pelo juiz Henrique Macedo de Oliveira, da 2ª Vara do Trabalho de Nova Lima, que reforçou que o caso é um exemplo de prática de racismo institucional.

De acordo com a justificativa da coordenadora da clínica, o penteado da recepcionista negra não se enquadrava no “padrão estético que a boa imagem institucional exigia”. A empregadora argumentou que as tranças não se enquadravam no “dress code” da empresa, pois são “muito informais”.

‘Dress code’

“Dress code” é uma expressão em inglês que significa código de vestimenta. É um conjunto de regra relacionado a roupas, criado a partir de percepções e normas sociais e varia de acordo com o propósito, as circunstâncias e as ocasiões.

No caso, a empregadora mantinha contrato com uma consultora de moda para orientação quanto à imagem, vestimentas e forma de atendimento aos clientes finais, entre outros aspectos. De acordo com a recepcionista, depois de voltar das férias, sua chefe percebeu que ela havia feito tranças afro no cabelo e tirou foto para levar à consultora de imagem, que verificaria a adequação da mudança de visual.

A consultora, em ligação telefônica para a recepcionista, com o conhecimento da empregadora, teria constrangido a trabalhadora a retirar as tranças, argumentando que o visual não combinaria com a imagem da clínica. A recepcionista, por sua vez, contou que se negou a atender à solicitação da consultora e, dias depois, foi dispensada sem justa causa.

Na visão da recepcionista, a dispensa foi discriminatória, causada pela recusa do pedido. Ela acrescentou que, na mesma ligação telefônica, a coordenadora da clínica demonstrou ter conhecimento da ajuda que a consultora prestou à trabalhadora em um tratamento capilar, o que foi interpretado pela funcionária como exposição indevida.

Defesa

Ao se defender, a clínica médica sustentou que a dispensa da autora da ação ocorreu em razão da drástica queda de movimentação, em consequência da pandemia da Covid-19. Foi dito que a recepcionista sempre foi valorizada e elogiada pela empregadora, e alegaram que a conversa mantida com a consultora de imagem ocorreu em caráter privado e que não houve determinação para que a funcionária alisasse os cabelos.

Também foi dito que a empresa não causou nenhum dando moral, direta ou indiretamente, à recepcionista. Já a consultora de imagem, em sua defesa, argumentou que a recepcionista não foi vítima de tratamento discriminatório, pois pediu apenas que esta fizesse um “penteado formal”.

A consultora confirmou que a dispensa da trabalhadora ocorreu em razão de dificuldades financeiras da clínica médica, após a pandemia do novo coronavírus. Por fim, ela declarou que soube pela própria recepcionista, e não por terceiros, a respeito do tratamento capilar.

Quanto à alegação da recepcionista de que houve exposição pelo fato de a empregadora ter procurado a consultora para conversar com ela sobre o tratamento capilar que teria sido custeado pela clínica, o juiz descartou a ocorrência do dano moral. Isso porque, no entendimento do magistrado, a recepcionista não demonstrou que foi a representante da clínica quem revelou à consultora o tratamento capilar que a empregadora pagou.

Gravação

Em uma conversa gravada entre a recepcionista e a consultora, a última argumentou que o novo visual da trabalhadora é muito informal para a sua profissão, principalmente no padrão da clínica: “Não dá para você trabalhar com ele, fica muito informal mesmo, sabe, tem até uns penteados, alguns cortes de cabelo que de fato é dress code de empresa muito casual, muito informal, não se enquadra tipo em banco, clínica médica, essas coisas (…)”.

Em outros trechos da conversa, a consultora reiterou a tese do “dress code corporativo” e frisou que não são meras dicas, são normas. “Existem duas coisas muito distintas, uma coisa chama estilo e outra coisa chama dress code, a pessoa pode ter o estilo que ela quiser, mas a partir do momento que ela tem um trabalho e o trabalho dela tem o dress code corporativo formal, ela precisa se enquadrar nisso ou então não tem como ela trabalhar”, disse.

Em outra passagem, a consultora reafirma a sua resistência ao novo penteado da recepcionista: “(…) Então, eu não consigo que as recepcionistas trabalhem com o cabelo que não seja formal. Um cabelo formal não está incluído um cabelo liso, alisado, um cabelo formal é um cabelo formal”.

Neste trecho, a consultora comparou a trança afro ao uso de um uniforme e deixou a última “recomendação” ou “opção” para que a recepcionista desfaça o penteado: “Quando eu te dou a opção de se enquadrar no dress code da minha empresa, te dou uniforme, não te dou? Da mesma forma, eu vou mandar uma pessoa aí para te ensinar como que o seu cabelo tem que tá adequado para o dress code corporativo da empresa”.

Conclusão do juiz

Na avaliação do juiz Henrique Macedo, não há no processo nenhum elemento de convicção que indique que as tranças da recepcionista fossem impróprias para utilização no local onde a atividade profissional era exercida.

Ele frisou que sequer foi juntada imagem da trabalhadora com as tranças que causaram o constrangimento alegado pelas rés, embora a consultora, em seu depoimento pessoal, tenha dito que as tranças da reclamante eram em castanho dourado e organizadas de maneira bem informal.

Citando vários autores em sua sentença, o magistrado teceu considerações sobre a força simbólica dos cabelos para a identidade negra e para os povos de origem africana e enfatizou o indiscutível valor histórico e cultural dos cabelos trançados à moda africana, sem prejuízo do significado individual.

A partir dessa análise sociológica sobre o tema, o julgador concluiu que deve ser afastada a alegação patronal no sentido de que o uso das tranças seria incompatível com a formalidade do ambiente de trabalho. “O tratamento dado ao tema pela empregadora parte de um raciocínio reducionista e que carrega uma visão muito distorcida da nossa sociedade, tão plural quanto complexa em sua identidade”, pontuou.

Conforme acentuou o magistrado, o chamado racismo institucional, embora comum, tem sua verificação muitas vezes dificultada em decorrência de um discurso antirracista absolutamente incompatível com a prática. Assim, o acesso, a permanência ou a ascensão da pessoa negra nas instituições (públicas ou privadas) são mais penosos do que para o indivíduo branco, sem que tal circunstância seja explicitamente demonstrada.

“Parece-me que a situação no caso concreto é reveladora dessa prática: a reclamada negou a conduta preconceituosa, afirmou em diversas passagens da defesa o seu bom relacionamento com a autora, tendo, inclusive, apresentado várias postagens em redes sociais que explicitariam a excelente convivência com a demandante, mas, quando afrontada pela identidade visual da trabalhadora, que decidiu valer-se de um recurso estético que reforçava sua identidade negra, a empregadora entendeu que a imagem da demandante não mais se adequava ao ambiente organizacional e dispensou-a”, completou.

Em sua análise, o julgador reconheceu que os reflexos econômicos da pandemia podem ter levado a empregadora a decidir pela redução do seu já enxuto quadro de pessoal. Entretanto, para ele ficou claro que a escolha pela dispensa da recepcionista teve ao menos como concausa a recusa da trabalhadora em modificar o visual. Isso porque a ligação telefônica examinada pelo juiz ocorreu no dia 14 de abril de 2020, conforme esclarecido pela representante da clínica em seu depoimento, e o encerramento do contrato se deu no dia 20 de abril, ou seja, menos de uma semana depois.

Com base em diversos critérios e por reconhecer que é discriminatória a dispensa que se funda em concepções preconceituosas, o julgador fixou a indenização por danos morais no valor de R$ 30 mil. Ao finalizar, o magistrado chamou a atenção para a dificuldade em identificar os discursos racistas, quase sempre velados e carregados de justificativas e de negacionismo. Em outras palavras, o discurso mais ouvido, aceito e confirmado pela sociedade é aquele segundo o qual não existe racismo e tudo não passa de vitimismo da pessoa de pele negra. Porém, a realidade tem mostrado que esse discurso não é verdadeiro.

“A inadequação que a primeira reclamada percebeu nas tranças da trabalhadora traduzem uma perspectiva de desajuste quanto ao modo de ser e de existir da pessoa negra, que deveria, assim, abster-se de revelar seus símbolos de autoafirmação em benefício de uma pretensa padronização aos modelos impostos pelo grupo que reclama e exerce a hegemonia cultural. Todavia, nem sempre essas relações estão explicitamente reveladas nos discursos”, pontuou.

“Na maioria das vezes, especialmente numa sociedade que acredita viver uma democracia racial, é necessário ir a fundo nas condutas para que seja possível compreender as motivações implícitas e, sobretudo, as consequências dessas ações. Quando estas são esquadrinhas e as intenções subjacentes reveladas, constata-se que o racismo é um problema presente no ‘DNA’ da sociedade, ou seja, ele se projeta por toda a estrutura de relações que formam as instituições (família, igreja, empresas, partidos políticos etc.)”, concluiu.

A recepcionista e a clínica médica interpuseram recursos, que serão julgados no TRT-MG (Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais).

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