Marido dá facada na esposa por falta de almoço e caso acende alerta

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Caso acende alertas sobre mulheres que vivem em risco maior por causa da pandemia (FOTO ILUSTRATIVA: Amanda Dias/BHAZ)

Um homem de 42 anos foi preso após esfaquear a própria esposa pelas costas enquanto ela limpava a geladeira de casa. Ele disse às autoridades que cometeu o crime porque a mulher não havia feito almoço no dia. O caso ocorreu ontem (31), em Ribeirão das Neves, na região metropolitana de BH, mas reflete uma dura realidade que já se estende há meses: a de mulheres que, por causa da pandemia, se viram forçadas a passar mais tempo com seus agressores e com mais dificuldade para procurar ajuda.

De acordo com o registro da Polícia Militar, o homem atacou a esposa no início da tarde de ontem. Ela contou que estava em casa, com o marido e os filhos, uma menina de 11 anos e um garoto de 13, e limpava a geladeira quando sentiu uma dor nas costas. Em questão de segundos, ela percebeu que o marido havia acabado de atingi-la com uma facada. A filha mais nova, ao perceber a violência, correu para chamar a polícia.

Quando a PM chegou ao local, o homem, que apresentava sinais de embriaguez, disse que havia trabalhado muito na noite anterior e ficou nervoso ao perceber que, no dia de sua folga, a esposa não havia feito almoço. Depois, ele ainda alegou estar arrependido – mas o relato da mulher comprova o que já se sabe sobre esse tipo de agressão: só o arrependimento não é suficiente. Segundo conta, o marido, que costuma ficar nervoso quando bebe, já havia feito várias ameaças à vida dela – ele, inclusive, já foi preso pelo mesmo motivo.

Duas vezes vítimas

A mulher de Ribeirão das Neves foi encaminhada para um hospital e, desta vez, sobreviveu. O caso, no entanto, acende alertas sobre uma realidade muito mais complexa que se agravou em todo o país nos últimos 11 meses. É que, enquanto a maioria dos brasileiros temem perder a vida para um inimigo microscópico, no caso das mulheres brasileiras, o perigo é visível e, na maioria das vezes, vive sob o mesmo teto.

“Graças ao isolamento, não só pelo aumento da convivência, mas pelas consequências dessa convivência aumentada, num momento de dificuldade econômica, isso possibilita uma série de atritos no ambiente doméstico”, explica Carolina Soares, pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP (Universidade de São Paulo), ao BHAZ. Segundo ela, o período mais longo de convivência em casa agrava as tensões especialmente com relação aos papeis que são impostos às mulheres – o chamado trabalho reprodutivo.

“É tudo aquilo que a gente conhece como trabalho doméstico, mas também de maternidade, de cuidado dos filhos, dos idosos, dos doentes da família. Todos esses trabalhos estão atribuídos majoritariamente às mulheres”, pontua Carolina. O que acontece com as medidas de isolamento social é que, além de se sentirem no direito de cobrar esse trabalho, muitos agressores também se sentem no direito de punir as mulheres quando não consideram que o trabalho foi “adequado”.

“Muitas vezes, essa divisão desigual do trabalho doméstico, mesmo fora da pandemia, é motivo para impulsionar um episódio de violência doméstica. Então, muitas vezes os agressores agridem as mulheres – esposa, filha, irmã ou até mesmo a mãe – por causa de algum conflito relacionado a esse trabalho reprodutivo”, explica Carolina. Ela ainda elenca alguns exemplos: “Acontece muito com crianças. Às vezes, a criança faz alguma coisa que o pai não queria e ele agride a mulher por isso. Ou o almoço não sai como planejado e ele agride a mulher por isso…”.

Todo mundo mete a colher

Carolina lembra ainda que há outros tipos de agressões sofridas por mulheres que são ainda menos notificadas. É o caso das agressões verbais, por exemplo. “Nesse caso, a gente tem ainda menos dados, porque as mulheres muitas vezes não vão às delegacias para denunciar isso”, avalia. A pesquisadora pontua, por outro lado, que a pandemia proporcionou a ocorrência de um fator importante: uma onda de vizinhos que se mobilizam para salvar as vítimas.

“Como as pessoas passam mais tempo em casa e esses conflitos definitivamente aumentaram, a gente acredita que, por mais vezes, vizinhos tenham ouvido gritarias, barulhos que as pessoas podem relacionar com violência doméstica”, explica. Essa mudança no padrão deixa ainda mais claro que aqueles que ainda são adeptos do “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher” seguem uma linha de pensamento que, além de arcaica, é negligente com as vidas das mulheres.

Felizmente, o que tem sido observado no Brasil – ainda que de forma incipiente – é o contrário. “[Isso indica que] esses casos estariam cada vez mais sendo denunciados ou que os vizinhos estejam demonstrando algum tipo de solidariedade com essas mulheres que sofrem agressões em casa”, afirma Carolina. Esses indícios começaram a ser observados logo nos primeiros meses da pandemia, quando a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos informou que as denúncias feitas pelo 180 aumentaram 15% em março de 2020 e 36% em abril do mesmo ano – em comparação com o mesmo período de 2019.

comparativo de denúncias violência contra a mulher
Comparativo de denúncias mostra a diferença de registros entre os primeiros meses da pandemia e o mesmo período do ano anterior (Agência Brasil/Divulgação)

“A partir de março, com o fenômeno da Covid-19 e [adoção de] medidas que passaram a impactar seriamente no número de denúncias, o número de casos disparou. Provavelmente, por causa do confinamento”, disse o ouvidor nacional de Direitos Humanos, Fernando César Pereira Ferreira, referindo-se ao fato de mulheres vítimas de agressão doméstica se verem forçadas a passar mais tempo junto a seus agressores.

Os dados da Ouvidoria apontam que, em geral, as denúncias recebidas pelo Ligue 180 tratam, na maioria das vezes, de casos de violência doméstica e familiar (em 2019, elas somaram 79% do total de notificações).

Dificuldades para denunciar

Apesar de os dados sobre as denúncias trazerem algum tipo de conforto – em saber que ao menos parte das vítimas consegue reunir forças para denunciar – até mesmo esse fator foi prejudicado pela pandemia, especialmente no período inicial. “Muita gente afirma com segurança que, de certa forma, para as vítimas a denúncia é dificultada pela impossibilidade de circular pela cidade”, explica Carolina.

Segundo ela, isso acontece porque, no contexto brasileiro, muitas mulheres vítimas de violência costumam aproveitar quando já estão fora de casa para fazer uma denúncia. “Muitas vezes elas vão fazer a denúncia em uma delegacia próxima ao local de trabalho ou outro lugar que elas frequentam, inclusive para evitar serem vistas por alguém do convívio ou pelo próprio agressor”, pontua.

“Agora, elas perdem a possibilidade de tentar a fazer denúncia de forma mais discreta. Perdem também a possibilidade de estar com outras pessoas que podem incentivar que essas mulheres façam a denúncia”, explica Carolina. Por outro lado, ela esclarece ainda que, nesse quesito, as medidas de flexibilização do comércio e o consequente aumento da circulação na cidade contribuem positivamente.

Onde conseguir ajuda?

Caso você seja vítima ou conheça alguém que precise de ajuda, pode fazer denúncias pelos números 181, 197 ou 190. Além deles, veja alguns outros mecanismos de denúncia:

Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher: av. Barbacena, 288, Barro Preto | Telefones: 181 ou 197 ou 190

Casa de Referência Tina Martins: r. Paraíba, 641, Santa Efigênia | 3658-9221

Nudem (Núcleo de Defesa da Mulher): r. Araguari, 210, 5º Andar, Barro Preto | 2010-3171

Casa Benvinda – Centro de Apoio à Mulher: r. Hermilo Alves, 34, Santa Tereza | 3277-4380

Aplicativo MG Mulher: Disponível para download gratuito nos sistemas iOS e Android, o app indica à vítima endereços e telefones dos equipamentos mais próximos de sua localização, que podem auxiliá-la em caso de emergência. O app permite também a criação de uma rede colaborativa de contatos confiáveis que ela pode acionar de forma rápida caso sinta que está em perigo.

Seja qual for o dispositivo mais acessível, as autoridades reforçam o recado: peça ajuda.

Com Agência Brasil

Edição: Roberth Costa
Giovanna Fávero[email protected]

Editora no BHAZ desde março de 2023, cargo ocupado também em 2021. Antes, foi repórter também no portal. Foi subeditora no jornal Estado de Minas e participou de reportagens premiadas pela CDL/BH e pelo Sebrae. É formada em Jornalismo pela PUC Minas e pós-graduanda em Comunicação Digital e Redes Sociais pela Una.

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