Mulher pede socorro às autoridades, não é amparada e acaba esfaqueada

delegacia de três corações
Ocorrência foi encerrada na Delegacia de Três Corações (Reprodução/Google Street View)

Minas foi palco de mais uma grave violência contra mulher – e mais uma evidência da necessidade de atualização dos mecanismos de segurança do Estado. Uma jovem de 29 foi esfaqueada e espancada pelo ex-companheiro menos de dois dias após procurar as autoridades em busca de socorro. Não adiantou. Ela teve a residência invadida pelo autor e precisou ser internada às pressas após as agressões.

O caso ocorreu em Três Corações, uma das principais cidades do Sul de Minas. Nas primeiras horas da manhã da última terça-feira (9), o autor de 32 anos armou uma emboscada para tentar assassinar a ex-companheira. Ligou para ela e pediu que emprestasse uma bicicleta, alegando que a moto dele tinha dado problema. A mulher resolveu ajudar o homem com quem teve um relacionamento encerrado recentemente.

Mal abriu a porta para entregar a bicicleta, e a vítima já foi atacada. Socos, chutes e facadas. O homem estava armado com uma faca cuja lâmina media 17 cm, segundo os militares. Toda essa cena de terror protagonizada na frente dos filhos pequenos da mulher, cujo pai é o autor do crime. O espancamento só foi interrompido por vizinhos, que também acionaram a PM.

‘Terror’

A tentativa de feminicídio foi presenciada por uma familiar, que terá o nome preservado. “Foi a coisa mais traumática e bárbara que vi em toda minha vida. Na hora, pra dizer a verdade, eu perdi a fala. Fiquei paralisada. Tentava gritar pedindo socorro e não conseguia. Eu abria a boca e as palavras não saíam. Foi uma cena de terror. A minha vontade era jogar uma panela de água fervendo nele, só que na hora não tinha”, disse em entrevista ao BHAZ.

A vítima, segundo a parente, era ameaçada com frequência, mas temia fazer as denúncias. Só que ela não aguentou mais viver com tanto medo e procurou as autoridades. “Ele sempre falava que, se ela o largasse, ele ia matar ela e toda a família. Procuramos a polícia porque não estávamos aguentando mais”, relembra.

Os filhos do casal, que presenciaram o crime, estão realizando acompanhamento psicológico. “As crianças estão muito abaladas, mas estão seguras. Já iniciaram o tratamento com psicólogo”. O trauma ficou em toda a família e não só nos pequenos. “O que a gente viu foi uma cena de terror. Não sei quando isso vai fugir da minha cabeça. Estou tomando calmante de manhã e de noite. Sem os medicamentos, eu não ia conseguir ficar de pé”.

A chegada dos vizinhos impediu a sequência do crime e, consequentemente, a morte da jovem, como diz a familiar: “Os vizinhos foram anjos enviados de Deus. Falei que eles vão estar sempre nas minhas orações. Eu não conseguia interferir porque não conseguia”.

Fuga no rio

Quando chegaram ao local do crime, no Centro da cidade do Sul mineiro, os militares encontraram a vítima com uma grande quantidade de sangue e em estado de choque. A mulher foi prontamente levada a uma unidade de saúde do município, onde foi medicada e tratada dos ferimentos diversos na cabeça, tórax e membros superiores.

O autor da tentativa de feminicídio, por sua vez, chegou a ser visualizado por equipes da polícia, mas, assim que também avistou os militares, pulou em um rio. Os bombeiros fizeram buscas por dois dias seguidos até encontrar o autor morto na tarde de quinta-feira (11).

Falência do Estado?

O caso evidencia a ineficiência do Estado para proteger, em especial, a mulher vítima de violência doméstica. Entre a noite de sábado e a madrugada de domingo (7), a vítima e a mãe dela procuraram as autoridades para pedir socorro. Elas estavam aterrorizadas com as ameaças feitas pelo ex-companheira da jovem. “Vou dar fim na vida de vocês duas”, prometeu o homem. Dois dias depois, se não fosse a intervenção de vizinhos, a promessa poderia ter sido cumprida.

A jovem havia solicitado medida protetiva contra o ex, no entanto o crime foi praticado antes que o pedido fosse acatado pela Justiça. Luciana Andrade, pesquisadora do Nepem (Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher), da UFMG, explica que “o prazo legal, estabelecido pela Lei Maria da Penha, é de 48 horas para que aconteça a análise e o deferimento ou não da medida”.

Mas, mesmo que nesse caso do Sul de Minas o prazo não tenha se esgotado, é usual que a emergência não seja cumprida. “Dados da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência Contra a Mulher apresentam que o prazo não é cumprido. No caso de Minas Gerais, a comissão viu que leva até 819 dias – portanto, mais de dois ano – para a medida protetiva ser implementada. É um perigo muito grande. Demora-se a dar resposta e a mulher fica realmente sem proteção”, diz.

Quando a vítima demora a receber o retorno das autoridades competentes, ela pode procurar a assistência social do município, conforme explica Andrade. “A Lei Maria da Penha angaria uma rede ampla de atuação de mulheres em situação de violência. Infelizmente não é todo município que tem, mas elas podem contar com o auxílio da Casa Abrigo, onde mulheres ficam recolhidos e permanecem em situação de esconderijo”. A estudiosa explica que, para descobrir se existe a estrutura na cidade, a pessoa deve procurar a Assistência Social do município.

Outra forma de pedir ajuda é por meio do 180. A denúncia é feita diretamente ao governo federal, que entra em contato com o Ministério Público. “Caso a medida não seja expedida e a violência continue ocorrendo, é procurar a PM no momento da agressão. A prisão em flagrante agiliza todo procedimento judicial”, alerta a especialista em estudos de Gênero, Lei Maria da Penha, políticas de enfrentamento da violência contra as mulheres e acesso à Justiça.

E mesmo com a medida…

Passado o primeiro desafio – conseguir a medida protetiva -, a mulher ainda enfrenta um ainda maior: o cumprimento dessa proteção judicial. “O respeito à medida protetiva é um dos grandes gargalos, o primeiro é consegui-la. Outra alternativa que tem é a tornozeleira eletrônica, que após colocada no agressor indica se ele está respeitando o distanciamento que deve ser seguido”, explica a especialista no tema.

“Em alguns locais, existe a Patrulha Maria da Penha. Você tem um corpo policial que faz visitas às mulheres dando o apoio institucional para que ela saiba que não está sozinha”, complementa Luciana Andrade.

Qual a solução?

Se o Estado demora na hora de analisar e conceder a medida protetiva e é ineficiente na hora de cumpri-la, como solucionar a violência contra a mulher? Para Luciana Andrade, o investimento e a mudança devem começar na base. “Para dar mais segurança e possibilitar ambiente seguro e democrático de justiça, precisamos pensar no processo de educação. Ver como a violência contra a mulher é abordada nas escolas”.

“Para além disso, é preciso ter toda rede organizada. Tem que ter atuação integrada desde a assistência social, saúde, segurança púbica e as demais áreas. É necessário pensar em estratégias de emprego e renda, pois mulheres com autonomia financeira, segundo estudos, conseguem se empoderar frente aos agressores”, explica a pesquisadora do Nepem.

Por fim, a estudiosa defende a capacitação na rede de atendimento, inclusive com criação de protocolos. “Mulheres vão à delegacia e a situação de violência é ignorada, menosprezada pelos agentes que fazem o atendimento. O registro não é feito por falta de testemunhas, ausência de marcas físicas. Só que esquecem que muitas vezes as agressões ocorrem no ambiente doméstico, onde não há testemunha”, alerta Luciana Andrade.

“Ameaças psicológicas não deixam marcas visíveis. A capacitação é de suma importância para termos aumento da efetividade da Lei Maria da Penha e maior segurança de mulheres”, conclui.

Edição: Thiago Ricci
Vitor Fórneas[email protected]

Repórter do BHAZ de maio de 2017 a dezembro de 2021. Jornalista graduado pelo UniBH (Centro Universitário de Belo Horizonte) e com atuação focada nas editorias de Cidades e Política. Teve reportagens agraciadas nos prêmios CDL (2018, 2019 e 2020), Sebrae (2021) e Claudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados (2021).

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