O nome delA é Lázaro

Socialmente inadequada. Assim é a belo-horizontina de 1,79m vista pelos diversos olhos que a observam na rua. De saia, jaqueta e all-star, ela desce do apartamento onde mora com duas amigas, na região Leste de BH, para comprar cigarros em uma banca. Venta e faz frio, afinal de contas era o dia mais gelado da história da capital em 42 anos – fazia 6,1ºC naquela manhã do dia 4 de julho de 2017. Mas, leve com uma pluma, ela não se intimida e diz gostar da sensação.

Entre uma conversa e outra, declara: “sou capricorniana, muito fria”. Momentos depois, após uma breve reflexão, muda de ideia: “na verdade, sinto muito, mas não sou de demonstrar”. Atrás da carapaça adornada por cabelos esvoaçantes – sensível e forte ao mesmo tempo -, está Lázaro dos Anjos. Isso mesmo. O nome delA é Lázaro, e não há nada de errado.

Yuran Khan/Bhaz

Aos 24 anos, Lázaro se transformou em referência para muita gente quando os assuntos são transexualidade e militância LGBT. Trans não-binária – que não se identifica com os gêneros masculino e feminino -, carrega consigo marcas de resistência que vão muito além do visual transgressor. Ela é bem-humorada, disposta a se reerguer e a falar sem filtros sobre temas ainda hoje considerados tabus. Como na canção de versos doces entoados por Maria Bethânia, Lázaro é uma fera ferida. Ela não quer nada além de respeito e está pronta para atacar, se preciso for.

Quatorze dias após abrir as portas de casa, e do coração, para falar com o Bhaz, Lázaro deparou-se com o preconceito em sua forma mais agressiva. O simples ato de andar tornou-se difícil quando pelo caminho viu o próprio corpo ser marcado mais uma vez. Dois homens em uma moto e um desfecho aterrador. “eles insistiram até que conseguiram me atingir”. “(…) eu caí, bati a cabeça, machuquei o braço, o joelho e mais uma vez a minha alma”, desabafou.

Yuran Khan/Bhaz

Lázaro teve a vida colocada à prova pela terceira vez. Antes, escapou de uma tentativa de estupro e foi arremessada ao trânsito na rua da Bahia, no Centro. Em um instante, falava com um amigo. Em outro, quase sentiu a lataria de um carro tocar a pele dela. Sobreviveu de novo.

Se na rua enfrenta a fúria da incompreensão, no seio familiar recebe acolhimento e carinho. “O tempo transforma tudo em tempo”, escreveu o poeta português José Luís Peixoto. Horas (in)termináveis foram essenciais para que as dúvidas sobre Lázaro, até então o filho querido, fossem transformadas em certezas: a agora filha diverte e ocupa o lugar do riso. O pai retrato antigo da masculinidade reafirmada saiu de cena. Amor e respeito restaram. Sem reservas.

O contar da vida de Lázaro mistura dores e alegrias, afinal ela carrega consigo a comum humanidade. Não há privilégios, nem expectativas para tal. Apenas o desejo de ser quem se é, e de viver, sem a possibilidade de morrer pelas mãos da violência que insiste em adequá-la.

Roberth Costa[email protected]

De estagiário a redator, produtor, repórter e, desde 2021, coordenador da equipe de redação do BHAZ. Participou do processo de criação do portal em 2012; são 11 anos de aprendizado contínuo. Formado em Publicidade e Propaganda e aventureiro do ‘DDJ’ (Data Driven Journalism). Junto da equipe acumula 10 premiações por reportagens com o ‘DNA’ do BHAZ.