Conselho

Foi em uma noite qualquer do período mais duro de isolamento social da pandemia do Covid-19. Aliás, confesso, naquela época, eu era incapaz de distinguir um dia do outro. Tive o privilégio de poder trabalhar remotamente naqueles tempos e, um pouco por medo, um pouco por um senso de responsabilidade coletivo, segui o mantra daquele período e fiquei em casa.

Não foi, porém, uma escolha tranquila. Nunca gostei de ficar em casa, confinamento sempre me enervou para além da conta. Dá uma vontade grande de barulho, de conversa na mesa do lado, de boteco, de rua, de gente. Também não sou uma pessoa tranquila ao ponto de “aproveitar” a imposição de isolamento para ver filmes, ler livros, praticar ioga, aprender a fazer pães ou aprimorar as minhas técnicas de bordado ponto cruz.

Resolvi, portanto, adotar uma divisão do tempo bem simples.

Durante o dia, eu trabalhava para pagar as contas. Horas de reuniões online regadas a café preto, textos protocolares escritos no modo automático; tudo isso entremeado por demandas que chegavam, em cascata, pelo Whatsapp.

À noite, eu bebia cerveja, vinho, Campari ou whisky à meia luz, enquanto ouvia clássicos da fossa nacional e internacional. Dia sim, dia não (ou mais ou menos isso), eu chorava um pouco quando o álcool subia e depois, resignado, ia para a cama tentar dormir.

A escolha pela fossa era uma questão de gosto pessoal, mas também uma maneira de enfeitar um pouco o que eu estava sentindo. A pandemia me pegou entrando na casa dos 40, recém separado, sem filhos, sem muita perspectiva e, principalmente, sem grana. As músicas de fossa, recheadas de profunda tristeza, mágoa, decepção e raiva faziam do meu auto-rancor e da minha persistente sensação de fracasso um lugar um pouco mais poético e menos solitário.

Certa noite, porém, o aplicativo de músicas que eu utilizava se cansou de minha lenga-lenga e resolveu me dar um conselho. Eu estava afundado no sofá com um copo de alguma coisa na mão, quando uma voz grave, profunda, começou a cantar depois de alguns acordes do cavaco:

Deixe de lado esse baixo astral
Erga a cabeça enfrente o mal
Que agindo assim será vital
Para o seu coração…

Ajeitei-me no sofá para ouvir melhor. Estava incomodado com a interferência do aplicativo na linha musical que eu adotara e já ia dizer para o aparelho de som que não tinha pedido a a opinião de ninguém quando, como que brincando comigo, a voz prosseguiu a cantar:

Tem que lutar, não se abater
E só se entregar a quem te merecer
Não estou dando nem vendendo
Como o ditado diz
O meu conselho é pra te ver feliz

A música se chamava Conselho e tinha a simplicidade e a beleza de um cafuné de mãe. Era um sambão bem tocado, bonito, gingado. A voz, grave, mas alegre, que entoava um cantar debochado, era de Almir Guineto. A música é uma composição de Adilson Bispo e Zé Roberto, dois caras de quem eu nunca ouvira falar.

Ao final eu chorei, daquela vez, um choro mais leve, com uma pitadinha de vergonha por todo aquele drama que eu vinha alimentando por pura teimosia. Pela primeira vez em meses, eu dormiria mais tranquilo.

℗ 1999 Universal Music International

Daquela noite em diante, meu repertório noturno passou por algumas transformações. Pedi licença a Lupicínio e Nelson Gonçalves para deixar entrar noite adentro outras vozes. Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Jovelina e o próprio Almir passaram a ocupar minhas noites cada vez mais, até que as dominaram por completo.

Primeira e segunda doses de vacina tomadas, corri para uma roda de samba. No primeiro acorde do cavaco, chorei feito criança, mas um choro bom, daqueles de limpar.

Pra que se lamentar
Se em sua vida pode encontrar
Quem te ame com toda força e ardor?
Assim sucumbirá a dor (tem que lutar)

Da roda de samba não saí até hoje e por aqui pretendo ficar.

E foi numa roda de samba, no último sábado, encontrei com Adilson Bispo, compositor de Conselho e de outras centenas de músicas que aprendi a ouvir e amar, como Amar é Bom, gravada pelo Grupo Fundo de Quintal e Em um outdoor, cantada por Zeca Pagodinho. Era aniversário da grande sambista mineira Luciene Gomes, afilhada musical de Bispo.

Dei em Adilson um abraço forte e prometi a ele que escreveria uma crônica em homenagem à sua música. Meus olhos ficaram marejados ao ouvi-lo cantar, mas dessa vez, eu não chorei.

Acho que, finalmente, assimilei o seu conselho.

Pedro Munhoz[email protected]

Editor de Política do BHAZ. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos e em História pela UFMG, trabalhou como articulista de política no BHAZ entre 2012 e 2013. Atuou como assessor parlamentar desde 2016, com passagens pela Câmara dos Deputados, Câmara Municipal de Belo Horizonte e Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

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