Arquitetura protomodernista em BH, entre a tradição e a vanguarda

Arquitetura protomodernista em BH, entre a tradição e a vanguarda

12/06/2025 às 16h53 - Atualizado em 12/06/2025 às 20h52
Edifício Postália (atual Hotel Madrid), projetado em 1937 por Romeo de Paoli no estilo protomoderno, por encomenda da Sociedade Beneficente dos Empregados dos Correios de Minas Gerais. (Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto)

Neste quinto artigo da série em que tratamos da evolução da arquitetura em Belo Horizonte, falaremos sobre a arquitetura protomodernista, um tema pouco conhecido do grande público e, por que não dizer, dos próprios arquitetos. Trata-se de um enquadramento estilístico de grande relevância, pois engloba uma vasta produção arquitetônica brasileira que ficou, por muito tempo, no limbo da história – representativa da transição de uma linguagem tradicional para outra de expressão vanguardista.

O protomodernismo na arquitetura é uma classificação estilística recente na literatura especializada nacional, remontando ao final da década de 1980. A partir desse momento, novos estudos consolidaram esse termo como definidor de uma extraordinária produção arquitetônica brasileira, esteticamente situada entre o Art Déco e o modernismo. Nesse sentido, conforme o arquiteto e professor Fernando Freitas Fuão:

Até então, tudo era moderno ou Art Déco, entre uma classificação e outra: um abismo abarrotado de edifícios que não eram nem daqui nem de lá, mas que se deveria colocar nas gavetas da história.

Na busca pela classificação dessa arquitetura “marginalizada” pelo discurso historiográfico, mas de grande presença nas cidades brasileiras, surgiu o termo protomodernismo, apresentado pela primeira vez no cenário nacional pelo arquiteto Luiz Paulo Conde, no artigo Anônimo, mas Fascinante: Protomodernismo em Copacabana, publicado em fevereiro de 1988 na conceituada revista AU – Arquitetura e Urbanismo.

No contexto local, o Guia de Bens Tombados de Belo Horizonte (2006) – organizado pela arquiteta Maria Ângela Reis de Castro e escrito pelo ilustre professor da UFMG Flávio de Lemos Carsalade, um dos maiores especialistas brasileiros em patrimônio cultural – já consolida essa classificação estilística, adotando-a no enquadramento dos edifícios patrimonializados na capital.

Sendo assim, o que caracteriza o estilo protomoderno na arquitetura? Diferentemente do Art Déco, as edificações protomodernas apresentam volumes de maior complexidade formal e frequentemente pouca simetria compositiva. Entretanto, assim como no Art Déco, os cheios predominam sobre os vazados nas fachadas, e ainda notamos a presença de alguns frisos e molduras. Além disso, os elementos arquitetônicos aerodinâmicos (sobretudo em varandas e balcões arredondados), típicos da linha Streamline do Déco, também foram largamente explorados pelo protomodernismo. O concreto armado, como tecnologia construtiva, é o elemento comum encontrado tanto no protomodernismo quanto no Art Déco e no modernismo.

Feito esse breve preâmbulo, falemos sobre a ocorrência desse valoroso estilo arquitetônico em nossa cidade. Aqui, essa arquitetura se manifestou majoritariamente entre os anos 1930 e 1940, simultaneamente ao Art Déco e aos ecletismos, sobretudo por meio de edifícios em altura na primeira fase de verticalização da cidade, abrangendo principalmente usos habitacionais e comerciais e, em menor escala, usos educacionais e de serviços públicos.

O que se verifica nessa arquitetura é uma busca pela racionalidade, economia de meios e funcionalidade, sem perder de vista o refinamento e a sofisticação nos detalhes construtivos, como revestimentos em mármore e granito. Assim, temos uma arquitetura caracterizada pela simplificação formal e por uma estética modernizante, que combinava tecnologias avançadas, como o concreto armado, com técnicas tradicionais, como a alvenaria de tijolos e esquadrias em ferro.

Sede dos Correios e Telégrafos em Belo Horizonte. Obra projetada em estilo protomoderno pelo arquiteto José Story dos Santos em 1936. Av. Afonso Pena, n. 1270. (Fonte: Cartão-postal / reprodução).

Esse tipo de obra de viés racionalizante e funcionalista foi especialmente empregado em edifícios públicos, como sedes de correios, hospitais, bancos e escolas. Um bom exemplo é a extraordinária Sede Regional dos Correios e Telégrafos em Belo Horizonte, projetada em linguagem protomoderna pelo arquiteto José Story dos Santos em 1936. Nessa obra, em nítida aproximação ao modernismo e em contraste com o Art Déco, a volumetria é mais dinâmica; não há feixes de relevos decorativos horizontais ou verticais, nem simetria de fachada. Por outro lado, em sintonia com o Art Déco, notam-se frisos nas alvenarias, molduras de arremate nos vãos e topos de parede, bem como a prevalência dos cheios sobre os vazados nas fachadas e volumes com formas “aerodinâmicas”.

O setor educacional também adotou o protomodernismo para construir escolas na capital mineira, a exemplo do icônico Colégio Nossa Senhora do Monte Calvário, projetado por Romeo de Paoli no final da década de 1930. Esse edifício, localizado na Av. do Contorno, n. 9384, apresenta linguagem arquitetônica que já aponta para o modernismo, embora mantenha alguns traços tradicionais de composição, como a simetria e as molduras nas fachadas. Por outro lado, os traços de uma estética vanguardista estão presentes na racionalidade compositiva, ausência de ornamentação, volumetria prismática e janelas praticamente em fita – uma das marcas da arquitetura moderna.

Colégio Nossa Senhora do Monte Calvário, projetado por Romeo de Paoli no final da década de 1930. (Fonte: Museu Histórico Abílio Barreto).

O Serviço Nacional da Indústria (Senai) Américo Renê Giannetti – escola de ensino profissional de feição protomoderna, cuja autoria do projeto arquitetônico é desconhecida – foi inaugurado na Av. Antônio Carlos, n. 561, bairro Lagoinha, em 1944. A instituição, primeira desse gênero em Minas Gerais, apresenta uma volumetria despida de ornamentos, mas marcada pela composição simétrica e pelo emolduramento dos vãos.

Senai Américo Renê Giannetti, obra protomodernista inagurada em 1944 na Av. Antônio Carlos. (Fonte: Biblioteca do IBGE).

No setor de saúde, o Hospital Semper, antigo Hospital da Cruz Vermelha, construído na Alameda Ezequiel Dias em 1948, é uma exuberante obra arquitetônica que expressa de maneira inequívoca os valores estéticos do estilo protomoderno. Projetado pelo arquiteto Raffaello Berti, sua forma exibe, por um lado, esquemas compositivos tradicionais, como a axialidade e a marcação de base, corpo e coroamento na fachada; por outro, revela traços modernizantes, como as colunas sem capitéis clássicos e a ausência de ornatos.

Hospital Semper (antigo Hospital da Cruz Vermelha), construído em 1948 com projeto de Raffaello Berti. (Fonte: Centro de Memória Escola de Enfermagem).

A antiga sede do Banco de Minas Gerais, atual Belotur – projetada em 1938 no estilo protomoderno pelo ilustre arquiteto italiano Raffaello Berti – é uma das mais admiráveis obras do setor financeiro da capital mineira. O imóvel é tombado pelo patrimônio cultural do município e localiza-se na esquina das ruas Carijós e Espírito Santo. Sua composição arquitetônica mescla elementos inovadores e consagrados, destacando-se na esquina pela grande massa volumétrica – elegantemente suavizada pela curvatura de canto e pela disposição de delgados elementos verticais e horizontais nas fachadas. O embasamento dessa imponente obra, assim como a sua porta monumental são valorizados por um revestimento em pedra nobre.

Edifício da Belotur (antigo Banco de Minas Gerais), imóvel projetado em 1938 pelo arquiteto Raffaello Berti. (Fonte: Jomar Bragança).

Em termos de habitações construídas em linguagem protomoderna em Belo Horizonte, além de diversos sobrados unifamiliares, destacam-se as de uso coletivo, sobretudo os edifícios de apartamentos ligados à iniciativa privada, que integraram o processo de grande verticalização da cidade, principalmente na década de 1940.

Um dos mais emblemáticos sobrados protomodernos da capital mineira foi construído em 1930 no Bairro Santo Antônio – a Casa Hera, pertencente à família Ferolla, projetada pelo ilustre arquiteto Ângelo Murgel, também autor do icônico Cine Brasil em estilo Art Déco. Esse sobrado – situado na Rua São Romão, n. 434, esquina com a Rua Leopoldina – possui uma linguagem que conjuga elementos típicos do Art Déco e do minimalismo moderno, revelados nas fachadas: as laterais e de fundo aproximam-se do modernismo (conforme a foto abaixo), enquanto a fachada frontal segue o gosto Art Déco. Atualmente, a planta trepadeira conhecida como hera se espalhou por todas as fachadas, impedindo a visualização da sua arquitetura.

As faces modernistas da Casa Hera, que contrapõem sua fachada frontal de gosto Art Déco. Projeto do arquiteto Ângelo Murgel. (Fonte: Guia do Bem).

O Edifício Cauê é um dos mais representativos da arquitetura protomodernista de Belo Horizonte de uso residencial coletivo vertical. Este prédio de apartamentos – que abriga lojas comerciais no térreo – foi concebido com 17 pavimentos em estrutura de concreto armado para atender à crescente demanda de moradia na área central de Belo Horizonte no final dos anos 1940. Sua composição arquitetônica, elaborada pelo arquiteto Walter Machado em 1947, destaca-se na esquina da Av. Augusto de Lima com a Rua Espírito Santo pelo volume central verticalizado – “abraçado” simetricamente pelas varandas curvas das duas fachadas voltadas para as vias. Embora a sua moderna estrutura permitisse amplas aberturas, a edificação segue o tradicional esquema de fenestração, cujos cheios prevalecem sobre os vazados.

Edifício Cauê, um arranha-céu protomoderno projetado pelo arquiteto Walter Machado em 1947. (Fonte: Ulisses Morato).

O Brasil Palace Hotel, projetado em 1941 pelo arquiteto Luiz Pinto Coelho, é um importante registro da arquitetura protomodernista do setor privado que compõe a memória edificada da Praça Sete, no centro de Belo Horizonte.  A concepção estrutural do edifício foi de autoria de Emílio H. Baumgart, profissional cujo trabalho criou novas possibilidades para a utilização do concreto armado no Brasil, tendo sido autor de projetos estruturais pioneiros na engenharia nacional. A composição arquitetônica do Brasil Palace Hotel – que apresenta o clássico esquema de fachada tripartite (base, corpo e coroamento), eliminação ornamental e ainda as varandas curvilíneas – também é uma típica expressão da linguagem de transição do Art Déco para o modernismo.

O Brasil Palace Hotel (segundo da esquerda para a direita), projetado por Luiz Pinto Coelho em 1941 na Praça Sete. (Fonte: Cartão-postal/reprodução).

Por fim, vale destacar o que pode ser considerado um símbolo do protomodernismo na capital mineira – o Edifício Sulacap-Sulamérica, projetado pelo arquiteto Roberto Capello em 1941 e inaugurado em 1947. Trata-se de um dos primeiros edifícios da cidade com uso misto para três funções: lojas no térreo, uma torre residencial e outra de salas. A obra, de composição extremamente racionalista, mas com grande apelo clássico em sua simetria, fenestração e massa, é constituída por quatro volumes baixos e duas torres de dezesseis pavimentos, cujo arranjo propiciou um vazio central que promove a conexão visual e física entre a Avenida Afonso Pena e o Viaduto Santa Tereza – conexão esta que, por mais de cinco décadas, ficou prejudicada pela construção de um anexo espúrio. No entanto, o Sulacap-Sulamérica, imóvel tombado, foi recentemente cenário de um feito histórico para o patrimônio edificado da cidade: a demolição do seu anexo e a reconstrução da extinta Praça da Independência, junto à Av. Afonso Pena.

Detalhe de um postal dos anos 1950 que mostra a configuração original do Edifício Sulacap-Sulamérica e sua praça frontal, recentemente recuperada para a cidade. (Fonte: Cartão-postal / reprodução)

Assim, como se observou, a arquitetura protomoderna engloba um significativo acervo de edificações representativas de uma época de grandes transformações urbanas em Belo Horizonte – quando notamos, simultaneamente, o último suspiro da tradição construtiva e o anúncio das vanguardas que revolucionaram o mundo arquitetônico nas primeiras décadas do século XX.

Editado por: Ulisses Morato

Ulisses Morato

Ulisses Morato é doutor em arquitetura pela Universidade de Lisboa, especialista em construção civil pela UFMG e arquiteto pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. Atuou na diretoria do Instituto de Arquitetos do Brasil e no Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte. É professor de pós-graduação na PUC Minas, editor da página Arquitetos de Belo Horizonte e gestor da Cultura Arquitetônica, dedicada a serviços e eventos na área do patrimônio edificado.

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Ulisses Morato é doutor em arquitetura pela Universidade de Lisboa, especialista em construção civil pela UFMG e arquiteto pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. Atuou na diretoria do Instituto de Arquitetos do Brasil e no Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte. É professor de pós-graduação na PUC Minas, editor da página Arquitetos de Belo Horizonte e gestor da Cultura Arquitetônica, dedicada a serviços e eventos na área do patrimônio edificado.

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