Etnias, futebol e Relações Internacionais: Uma mistura flamejante

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“O futebol não é uma questão de vida ou de morte. É muito mais importante que isso…”(Bill Shankly, futebolista e treinador escocês)

Embora essa afirmação possa parecer exagerada em alguns contextos, ela exterioriza o sentimento de inúmeras minorias étnicas pelo mundo, na medida em que o futebol promove oportunidades de inserção social para essas populações.

Seleções do Brasil, em 2013, e da França, em 2014. http://latino.foxnews.com/latino/sports/2014/05/02/world-cup-2014-brazil-team-profile/ e http://www.fifa.com/worldcup/archive/brazil2014/photos/index.html
Seleções do Brasil, em 2013, e da França, em 2014 (Reprodução/Fox e Fifa)

Conquanto todos os outros esportes tenham potencialmente as características de intensificação inclusiva, o Futebol/Football/Soccer/Fútbol possui especificidades que extrapolam o que qualquer outro desporto pode comumente oferecer às pessoas, principalmente aos marginalizados nas sociedades.

O racismo e a xenofobia, contudo, continuam a ameaçar e a prejudicar a inserção social dessas minorias no contexto interno e as relações internacionais dos países no âmbito externo.

“Elevador social” brasileiro e francês

Com relação ao Brasil, o IBGE (Censo de 2014) [1] demonstrou que 8,6% do total da população brasileira se autointitula negra, 45,5% branca e 45% parda [2]. Na convocação da Seleção Brasileira para a Copa América, entretanto, dos 23 jogadores convocados para esse torneio, 10 são negros, o que configura quase 50% do total – Gil (Shandong Luneng), Fabinho (Mônaco), Douglas Santos (Atlético Mineiro), Luiz Gustavo (Wolfsburg), Elias (Corinthians), William (Chelsea), Casemiro (Real Madrid), Douglas Costa (Bayer de Munique), Hulk (Shangai SIPG) e Gabriel (Santos).

De maneira semelhante, embora cerca de 11% da população francesa seja estrangeira ou de origem estrangeira – 3,5 milhões nascidos no estrangeiro e 3,3 milhões nascidos na França com um ou dois pais estrangeiros [3], o time titular francês era composto, na Copa do Mundo do Brasil, em 2014, por seis descendentes de imigrantes num total de 11 jogadores titulares, o que perfaz mais de 50% do total – Mamadou Sakho, cujos pais nasceram no Senegal; Patrice Evra, senegalês; Blaise Matuidi e Karim Benzema, cujos pais nasceram na Argélia; Matthieu Valbuena, cujo pai nasceu na Espanha; e Paul Pogba, cujos pais nasceram na Guiné.

Quais seriam as razões comuns que fazem do futebol um “elevador social” em países tão distintos?

Foto: Roberto Castro/Ministério dos Esportes
Foto: Roberto Castro/Ministério dos Esportes

Primeiramente, um fator conhecido por todos é a facilidade para praticar esse esporte, visto que qualquer rua asfaltada (ou não), dois chinelos (para formar as traves) e uma bola são os únicos aparatos indispensáveis. Desse modo, nas favelas brasileiras e nas banlieues[4] francesas, compostas, majoritariamente, por crianças e jovens dessas populações marginalizadas, o futebol talvez seja o único esporte com amplo acesso a esse público.

Outro argumento comum seria o socioeconômico, já que os marginalizados sociais, historicamente, têm menor acesso aos direitos econômicos e sociais fornecidos pelo aparato Estatal, o que aumenta a própria atratividade do futebol, pois a possibilidade de ascensão social que ele pode oferecer aumenta exponencialmente quando relacionada à dificuldade dessa ascensão por meio da educação, por exemplo.

O racismo e a xenofobia como obstáculos

Ainda que, proporcionalmente, essas populações estejam intensamente presentes na prática profissional e amadora do futebol desses países, o racismo e a xenofobia continuam a prejudicar as relações internas e internacionais desses países, na medida em que episódios constrangedores prejudicam a “Democracia Racial” brasileira e a “Assimilação Cultural” francesa.

A rivalidade nacional exposta por diferenças étnicas

No que concerne ao Brasil, os negros viviam um momento de afirmação na década de 1920, pois alguns clubes já aceitavam atletas dessa etnia, como o Bangu e o Vasco, embora a discriminação continuasse ferrenha e ainda “socialmente aceitável” nessa época.

No contexto internacional, um dos primeiros episódios constrangedores ocorreu em Buenos Aires, em 1920, quando a seleção brasileira foi disputar um amistoso na capital argentina. Dias antes da partida, o jornal Crítica publicou uma charge que retratava o time brasileiro como um time de macacos, o que revoltou parte da delegação brasileira.

Em consequência desse fato, o jogo teve de ser realizado com apenas 7 jogadores para cada lado, visto que alguns jogadores do Brasil se negaram a entrar em campo. O resultado da partida foi uma vitória dos argentinos, mas a rivalidade, infelizmente, foi manchada por preconceitos nesse momento.

Publicação do jornal argentino dias antes do amistoso em 6 de outubro de 1920
Publicação do jornal argentino dias antes do amistoso em 6 de outubro de 1920

“Nos anos seguintes, os presidentes Epitácio Pessoa, em 1921, e Arthur Bernardes, em 1925, concederam à Confederação Brasileira de Desportos algumas dezenas de contos para participar dos Campeonatos Sul-Americanos dos respectivos anos. Em troca, determinaram que somente fossem convocados atletas rigorosamente brancos, por motivos de “prestígio pátrio”.[5]

É importante dizer que esse sentimento de superioridade argentino era proveniente, primeiramente, da questão racial, uma vez que a escravidão de negros africanos não foi intensa durante sua colonização, o que proporcionava à Argentina “ares europeus” e presumidas “vantagens étnicas” para aquele momento histórico – um estudo genético, realizado em 2009, revelou que a composição da Argentina é 78,50% europeia, 17,30% indígena e 4,20% africana [6].

Somado a isso, em termos educacionais, o atraso do Brasil também era notório, tomando-se como exemplo alguns indicadores:

1)Porcentagem da população matriculada em escolas:

a) No Brasil, em 1890, somente 2,3%; em 1910, 3%.

b) Na Argentina, as porcentagens correspondentes a 1890 e 1910 foram, respectivamente, 7% e 9,7% – mais que o triplo;

2) Quantidade de analfabetos

No Brasil, em 1890, 85% da população brasileira era analfabeta. Em 1900, 75%. Diferentemente disso, a Argentina, em 1895, possuía uma taxa de analfabetismo de 54,4%, e a cidade de Buenos Aires somente 28,1%. Importante afirmar que esses números de analfabetismo argentino se equivaliam a muitos países desenvolvidos, como a Espanha, ex-metrópole. 

3) Renda per capita

Em 1913, quando a população brasileira chegou a 24 milhões, crescimento expressivo relativamente aos 14 milhões de 1890, a situação econômica brasileira com relação à Argentina tinha até se agravado. Por volta de 1820, os desníveis eram de 2:1, no máximo 3:1 em favor dos países desenvolvidos, mas em 1913 a renda per capita brasileira era menos de um quarto da Argentina, menos de um sexto da dos EUA e cerca de dois terços da de Portugal, antiga metrópole[7].

TABELA 01 – COMPARAÇÃO INTERNACIONAL DE RENDAS PER CAPITA EM DÓLARES INTERNACIONAIS DE GEARY-KHAMIS – 1820/2008

 ArgentinaBrasil
1820908
1830892
1840852
1850988
1860999
18701.9781.300
18801.128
18903.2431.208
19004.1521.054
19255.9061.379
19507.5132.592
197512.2386.471
200012.9298.581
200816.56710.030

Fonte: Para o Brasil, resultados do trabalho; para os demais países Maddison (2006)

Conquanto quase um século tenha transcorrido desses episódios domésticos e internacionais lamentáveis, jogadores negros brasileiros continuam a enfrentar profundos preconceitos nos campos mundiais, como nos episódios envolvendo o racismo de torcedores contra o goleiro Aranha, da equipe do Santos, durante um jogo contra o Grêmio pela Copa do Brasil em Porto Alegre, e o jogador Tinga, da equipe do Cruzeiro, durante um jogo da Copa Libertadores da América contra o Real Garcilaso, ocorrido no Peru.

O mito da Democracia Racial brasileira possibilitou a superação de teorias racistas que prevaleciam na “ciência” do fim do século XIX e início do século XX, contudo ainda segue camuflando o intenso racismo no futebol e na sociedade brasileira como um todo.

“Na Europa o futebol é entretenimento entre classes, no Brasil é o analgésico do povo” (Thomé).

A seleção francesa de futebol e a não Assimilação Cultural

A França, de maneira similar, vive inúmeros problemas em razão da composição da seleção francesa de futebol, principalmente no que concerne ao partido de extrema-direita FN (Front National), pois a atual líder desse partido, Marine Le Pen, já se manifestou várias vezes contrariamente à diversidade étnica dessa seleção, quando disse, por exemplo, que se opunha ao “mito grotesco da França Black-Blanc-Bleu” (Negros, brancos, árabes; tradução livre), durante a Copa do Mundo de 1998.

Além disso, ela se envolveu em uma polêmica com o jogador Benzema, quando esse jogador afirmou que “a Argélia é o meu país, a França é apenas para o lado esportivo (tradução livre)”. Em resposta, a líder do FN disse que “vá jogar no seu país se não está contente”. [8]

Um dos contextos mais polêmicos concerne ao hino nacional francês, a “Marseillaise”, uma vez que muitos jogadores descendentes de imigrantes das ex-colônias francesas se recusam a cantá-lo, porquanto, em uma das partes, a letra diz:

“(…)às armas, cidadãos / formai vossos batalhões / marchemos, marchemos! / Que um sangue impuro / banhe o nosso solo.”

Embora essa letra seja de 1792, quando a França estava ocupada por exércitos estrangeiros, a expressão “sangue impuro”, na leitura moderna do hino, é entendida como uma referência aos imigrantes e seus descendentes.

Dois episódios internacionais foram especialmente interessantes para entender os problemas do futebol e da assimilação cultural na França.

O jogo entre França e Argélia, em Paris, em outubro de 2001, ganhou proporções internacionais enormes, visto que a “Marseillaise” foi vaiada em pleno Stade de France, no qual 80% da torcida era formada por argelinos e/ou descendentes argelinos. Nessa ocasião, o jogo nem mesmo terminou no tempo regulamentar, pois, aos 30 minutos do segundo tempo, torcedores invadiram o gramado de jogo [9]. Esses episódios intensificam as dificuldades nas relações entre França e Argélia, que são complexas desde o fim da Guerra de Descolonização da Argélia, ainda que elas sejam consideradas menos tensas atualmente.

Durante a Copa de 2014, além disso, o jogador Benzema, descendente de argelinos, recusou-se a cantar o hino, o que provocou a ira do FN e de sua líder, a qual aduziu que esse jogador não deveria mais ser convocado.

Seja em decorrência desse estigma social dos descendentes de argelinos, pelo patriotismo ou mesmo pela grande concorrência da seleção francesa, uma consequência importante para a seleção argelina é que, dos 23 atletas convocados para a Copa do Mundo de 2014, 17 nasceram na França, o que demonstra a força dessa “quebra” no modelo de Assimilação Cultural francesa.

Irracionalidade

Percebe-se, desse modo, que o futebol é não somente uma “caixa de ressonância” dos problemas nacionais internos, mas também um contexto importante que influencia nas relações interestatais, em decorrência da grande exposição e importância que esse esporte adquiriu ao longo do tempo.

Infelizmente, nos dois casos expostos neste artigo, ele possibilitou o agravamento potencial das relações entre Brasil e Argentina e entre França e Argélia nos contextos históricos respectivos.

O agravamento da xenofobia nos países europeus, em decorrência da crise migratória atual, e os constantes casos de racismo no Brasil demonstram que esse quadro ainda está longe de ser superado. O futebol e as relações internacionais, assim, seguem “sangrando” com a irracionalidade humana.


Felipe Costa Lima é formado em Direito pela UFMG; Especialista em Política Internacional pela Faculdade Damásio de Jesus; e Mestrando em Relações Internacionais pela PUC-Minas. Latino-americano de alma, talvez consiga quebrar visões eurocêntricas sobre os acontecimentos mundiais. Talvez…

[1] Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Síntese dos Indicadores 2014. 13 de novembro de 2015.

[2] Importante salientar que a atribuição de cor ou raça é algo subjetivo e intrínseco ao próprio indivíduo, ou seja, parte da sua própria percepção.  Portanto, qualquer tentativa de imputação de características raciais por um terceiro, inclusive do autor deste artigo, é determinada por grande subjetividade. Assim, a atribuição da raça negra aos 10 atletas citados neste texto leva em conta apenas percepções visuais, e não o autoentendimento dos atletas.

[3] Le débat sans fin dês statistiques ethniques. 4 de fevereiro de 2015. Libération.

[4] Termo francês para subúrbio

[5] A ambígua trajetória do racismo no futebol no Brasil. 4 de janeiro de 2016. Carta Capital.

[6] CORACH, Daniel e outros. Inferring Continental Ancestry of Argentineans from Autosomal, Y-Chromosomal and Mitochondrial DNA. 2009.

[7] FRANCO, Gustavo H.B e LAGO, Luiz Aranha Corrêa do. História do Brasil-Nação 1808-2010. Volume 3. A Abertura para o Mundo 1889-1930. Parte 4. O Processo Econômico/A Economia da Primeira República, 1889-1930. Rio de Janeiro; Mapfre e Editora Objetiva, 2012

[8] Le football, un Sport qui hérisse Le Front National. 8 de junho de 2016. Le Monde.

[9] Copa pode ter duelo tenso: França x Argélia. 30 de junho de 2014.

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