Fidel Castro: herói indiscutível ou ditador sanguinário?

Ex-presidente de Cuba Fidel Castro (Reprodução)

A história cubana é conectada com a estadunidense, uma vez que os norte-americanos tentaram influenciar direta ou indiretamente todo o processo político-econômico da ilha, mesmo durante o processo de independência cubano. Portanto, uma introdução histórica ao processo revolucionário e a importância dos EUA para isso torna-se essencial, a fim de compreender a mais importante Revolução ocorrida na história da América Latina.

Introdução Histórica à Revolução

O processo independentista de Cuba ocorreu entre 1895-1898, e contou com auxílio direto dos EUA, os quais desejavam influenciar mais diretamente a região latino-americana em decorrência do colossal crescimento econômico e populacional que haviam experimentado durante o século XIX. A partir dessa interferência, Espanha e EUA entraram em guerra direta durante o ano de 1888, que culminou com a vitória estadunidense.

Porém, a partir da independência formal da Espanha, Cuba esteve sob ocupação norte-americana de 1891 a 1903, o que proporcionou a imposição dos interesses dos EUA nessa ilha.  Cuba tornou-se indiretamente uma colônia norte-americana, principalmente por causa da imposição da chamada Emenda Platt na Constituição Cubana, por meio da qual os EUA teriam o direito legítimo de interferir militarmente nesse país, o que prejudicou profundamente sua soberania.

Da independência formal até 1933, Cuba viveu intensa instabilidade em todos os âmbitos, tanto político como socioeconômico, o que possibilitou a ascensão de movimentos populares e a consequente derrubada da ditadura de Gerardo Machado. Embora tenha adotado medidas importantes, como a redistribuição de terras e a expropriação de engenhos açucareiros estadunidenses, esse governo provisório foi derrubado pelos movimentos estudantis e pelo exército, proporcionando o governo ditatorial de Fulgêncio Batista, entre 1933 e 1944 (em 1940, foi eleito diretamente).

Importante destacar que esse governo alinhou-se à política exterior estadunidense e permaneceu dependente desse país, o que também ocorreu com os governos democráticos de 1944 a 1952. A profunda violência política e a corrupção foram marcantes no período. Novamente, por um golpe militar, Fulgêncio volta ao poder, recebendo os aplausos do embaixador dos EUA em Havana:

“As declarações do general Batista a respeito do capital privado foram excelentes. Fora muito bem recebidas e, eu sabia, sem dúvida alguma, que o mundo dos negócios é dos mais entusiastas partidários do novo regime.”

A figura de Fidel Castro tornou-se mais conhecida após um atentado realizado ao quartel de Moncada, em Cuba, que foi um profundo fracasso.

Ditador Fulgêncio Batista,à esquerda, inspeciona armas apreendidas depois de uma rebelião que fracassou, liderada por um jovem chamado Fidel Castro (Foto: 1953 OFF / AFP / Getty Images)
Ditador Fulgêncio Batista,à esquerda, inspeciona armas apreendidas depois de uma rebelião que fracassou, liderada por um jovem chamado Fidel Castro (Foto: 1953 OFF / AFP / Getty Images)

Castro foi preso, entretanto, em decorrência de intensos protestos populares, Batista concedeu anistia a diversos presos políticos, inclusive ao futuro comandante da revolução. Asilado no México, Fidel passou a promover ações contra a ditadura de Fulgêncio, tendo sido auxiliado por importantes movimentos populares, como a entrada das mães de presos políticos em 1957, a greve geral de 9 de abril de 1958 (anarco-sindicalismo cubano extremamente forte), o movimento estudantil e outros focos guerrilheiros.

Vitória da Revolução, com o comando de Fidel Castro (Reprodução: http://www.ambito.com/863849-las-fechas-mas-importantes-de-la-vida-de-fidel-castro)
Vitória da Revolução, com o comando de Fidel Castro (Reprodução: http://www.ambito.com/863849-las-fechas-mas-importantes-de-la-vida-de-fidel-castro)

É fundamental afirmar que o Partido Comunista Cubano foi aliado de Batista e aderiu à revolução liderada por Fidel Castro somente no último momento. Posteriormente, esse partido ganhou importância na contrarrevolução stalinista de 1961, momento no qual Fidel se declara como marxista-leninista pela primeira vez em público. Percebe-se, portanto, que a revolução não tinha um cunho socialista num primeiro momento, mas era uma união heterogênea, com o fim de derrubar a ditadura de Fulgêncio Batista.

Posteriormente, com o crescimento da oposição dos EUA ao novo governo cubano, principalmente a partir das nacionalizações de propriedades norte-americanas pelo novo governo cubano e da tentativa de invasão norte-americana da Baía dos Porcos, Fidel aproximou-se de maneira mais efetiva da União Soviética, a qual passou a apoiar o novo regime política e economicamente.

Primeira visita de Fidel Castro à União Soviética. Fidel Castro e Nikita Krushev desfilam em carro aberto (Reprodução: TASS/AFP)
Primeira visita de Fidel Castro à União Soviética. Fidel Castro e Nikita Krushev desfilam em carro aberto (Reprodução: TASS/AFP)

Embora Cuba tivesse índices socioeconômicos semelhantes aos países mais ricos da América Latina antes da revolução, como o Chile, a Argentina e o Uruguai, as grandes desigualdades entre a cidade e o campo (trabalhadores do campo não eram sindicalizados e trabalhavam em regime semelhante à escravidão) e a forte repressão contra os trabalhadores foram causas intrínsecas que auxiliaram no sucesso de Fidel Castro à frente do movimento revolucionário. Além disso, a intensa corrupção que existia na ilha também auxiliou no apoio a esse movimento.

Consequências imediatas da Revolução

Uma das críticas mais relevantes ao período pós-Revolução referia-se às execuções do novo regime contra soldados e agentes de Fulgêncio Batista, por violações de direitos humanos e crimes de guerra, como assassinatos e torturas. A maioria dos condenados nos tribunais revolucionários recebeu a pena de execução, enquanto o restante recebeu longas penas de prisão.

Sem dúvida excessos podem ter existido durante o processo, mas fuzilamentos em processos revolucionários não são incomuns na história da humanidade, pelo contrário, são a regra geral: da Revolução Gloriosa (Revolução Burguesa Inglesa), passando pela Revolução Francesa (Revolução Burguesa Francesa) e pela Revolução Bolchevique (Revolução Socialista Russa), chegando à Revolução Cubana (Revolução Socialista Cubana), execuções e fuzilamentos dos inimigos foram práticas comuns dos novos regimes.

Inclusive, Ernesto “Che” Guevara não somente confirmou a existência de fuzilamentos, como os defendeu diante da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), em 1964:

“Fuzilamentos sim. Fuzilamos e seguiremos fuzilando, enquanto seja necessário. Nossa luta é uma luta até a morte. Nós sabemos qual seria o resultado de uma batalha perdida e também os inimigos devem saber qual o resultado de uma batalha perdida em Cuba (…) Assassinatos não cometemos” (tradução nossa).

Ainda nessa mesma linha de argumentação, Malcom X já havia dito para “não confundir a reação do oprimido com a violência do opressor”.

A Lei de Reforma Agrária foi promulgada ainda em 1959, na medida em que 75% das melhores terras cultiváveis de Cuba eram propriedades de indivíduos estrangeiros ou companhias estrangeiras – principalmente dos EUA. Fazendas de todos os tamanhos (inclusive da Igreja Católica) e propriedades estrangeiras (inclusive norte-americanas) passaram a ser apreendidas e nacionalizadas pelo governo, principalmente entre 1959 e 1961, o que provocou a intensa oposição já mencionada dos EUA ao novo regime.

Esses esforços de reforma agrária contribuíram para elevar os padrões de vida da população cubana. Além disso, a eliminação do analfabetismo e os profundos investimentos sociais foram aspectos intensamente importantes para a consolidação do processo revolucionário.

Torna-se fundamental dizer que o Embargo dos EUA a Cuba (1960), que incidiu nos âmbitos econômico, comercial e financeiro, foi uma resposta frontal às expropriações realizadas pelo governo cubano das propriedades de cidadãos e companhias americanas. Esse embargo persiste até os dias de hoje, apesar da reaproximação atual entre esses dois países.

Durante um encontro de Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir (filósofos, escritores e críticos franceses) com Fidel Castro e Che Guevara, relatado no livro “Furacão sobre Cuba”, houve uma conversa a respeito do embargo norte-americano:

Levando as coisas ao limite, se poderia dizer que o rebelde obriga o agressor a escolher entre duas derrotas: ou o reembarque das tropas ou o genocídio. Qual é a pior? Ofereço à escolha. Sob o ponto de vista rebelde, dou como exemplo essas palavras de Castro:

– O bloqueio é a arma menos nobre: se aproveita da miséria de um povo para submetê-lo pela fome. Não aceitaremos isso – prosseguiu. Nos negamos a morrer nessa ilha sem levantar um dedo para nos defendermos ou para devolver os ataques…

– Que fariam vocês? – perguntei.

Sorriu tranquilamente:

– Se querem começar pelo bloqueio – respondeu –, não podemos impedi-los. Mas podemos fazer que o abandonem pela verdadeira guerra, pela agressão a mão armada – e o faremos, garanto. Mais vale morrer ferido na guerra do que de fome em casa.

Da esquerda para a direita: Fidel Castro, Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre, e Ernesto Che Guevara (Reprodução: https://br.pinterest.com/pin/402298179194770389/)
Da esquerda para a direita: Fidel Castro, Simone de Beauvoir, Jean Paul Sartre, e Ernesto Che Guevara (Reprodução: https://br.pinterest.com/pin/402298179194770389/)

O impacto de longo prazo para o mundo

Embora a Revolução Cubana tenha sido essencial para o povo cubano, o impacto para o mundo foi ainda mais importante, uma vez que o ideário desse movimento influenciou inúmeras sublevações em todo o mundo, principalmente na América Latina, como a tentativa de Revolução na República Dominicana (1959); o Movimento Sandinista na Nicarágua (1979); guerrilhas resistentes às ditaduras latino-americanas no Brasil, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai e no Chile, por exemplo; movimentos de independência africanos, como em Angola (no qual Cuba interviu com o envio de exército inclusive).

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Soldados cubanos em Cuito Cuanavale , Angola (Reprodução: http://www.trabajadores.cu/20140525/victorious-end-carlota-operation/)

Importante afirmar as críticas existentes às consequências da Revolução. Primeiramente, alguns autores afirmam que existe um intenso militarismo no aparato estatal cubano, uma vez que a burocracia que tomou o poder no país tinha uma formação proveniente do sistema da guerra de guerrilhas, e não necessariamente uma formação classista.

A partir disso, Cuba se transformou, por exemplo, durante a Guerra Fria, no terceiro maior exército do continente americano, atrás apenas dos EUA e do Brasil, apesar de ter apenas 10 milhões de habitantes. O militarismo, desse modo, tornou-se tão profundo em Cuba que 1 em cada 27 habitantes do país pertencem aos quadros militares do partido.

Somado a isso, alguns críticos dizem que não existe verdadeiramente um “igualitarismo” da revolução, já que o planejamento centralizado da economia propiciou uma nítida separação de classes, onde a burocracia estatal usufrui de privilégios que não estão a serviço da população.

Porém, se comparamos Cuba com outros países semelhantes em tamanho e em população, como aqueles da América Central e do Caribe, e mesmo com relação a todos os países do continente, inclusive aos EUA, percebemos a enorme importância das políticas adotadas pela Revolução Cubana e sua continuidade até os dias de hoje, já que Cuba atualmente consegue fornecer uma boa qualidade de vida à sua população, comprovada através das estatísticas econômicas e sociais do país: melhor IDH da América Latina; melhor sistema educacional da América Latina (Banco Mundial); modelo mundial de sistema de saúde (Organização Mundial da Saúde); segundo país menos violento da América Latina, com 4,2 homicídios por 100 mil habitantes, de acordo com a ONU (o Brasil possui 25,2 mortes por 100 mil habitantes, 6 vezes maior que Cuba); analfabetismo quase inexistente; único país da América que registrou crescimento econômico nos últimos 21 anos; desnutrição infantil quase inexistente; maior número de leitos por habitante (5,9 por 1000 habitantes) da América; maior expectativa de vida (79 anos); menor taxa de mortalidade infantil da América (5 para cada 1000 nascimentos); e maior taxa de médicos por habitante da América Latina (1 para cada 160).

Conclusão

Sartre, no mesmo livro citado anteriormente, se impressionou com o vigor dos líderes revolucionários Fidel Castro e Ernesto Che Guevara durante sua visita à Cuba:

No que me diz respeito, me sentia mais velho entre eles do que em Paris e, apesar de sua extrema amabilidade, temia ao mesmo tempo importuná-los e trair meus contemporâneos. Já que era necessária uma revolução, as circunstâncias designaram a juventude para fazê-la. Só a juventude tinha a cólera e a angústia suficientes para empreendê-la e a pureza necessária para concretizá-la.

A Revolução Cubana foi essencial para a história do século XX e de toda humanidade, não apenas no que diz respeito às melhorias materiais nas vidas dos cidadãos cubanos, mas principalmente com relação ao contexto das ideias, das utopias, das lutas revolucionárias por um mundo mais igualitário e justo. Não estranhamente, a Revolução Cubana ainda possibilita intensos debates a respeito da sua importância histórica e dos caminhos que escolheu para defender os interesses socialistas.

Qualquer análise transformando Fidel Castro em herói absoluto ou em ditador sanguinário são muito “pobres” intelectualmente, e devem ser evitadas, já que demonstram um pensamento imaturo e acrítico.

Fidel Castro (Reprodução: RT)
Fidel Castro (Reprodução: RT)

A essencialidade da Revolução Cubana como o mais importante movimento revolucionário da América Latina jamais pode ser minorada, muito menos a importância de Fidel Castro para esse movimento. Esse revolucionário continua desenvolvendo ódios e paixões nas pessoas, o que por si só já demonstra a importância dele. Suas ideias e suas ações, entretanto, jamais serão apagadas da história da humanidade, primordialmente no contexto de lutas do século XX.

“E seus inimigos não dizem que apesar de todos os pesares, das agressões de fora e das arbitrariedades de dentro, essa ilha sofrida mas obstinadamente alegre gerou a sociedade latino-americana menos injusta” (Eduardo Galeano, Do livro “Espelhos, uma história quase universal”). 

¡Hasta siempre Fidel Castro!

Felipe Costa Lima é formado em Direito pela UFMG; Especialista em Política Internacional pela Faculdade Damásio de Jesus; e Mestrando em Relações Internacionais pela PUC-Minas. Latino-americano de alma, talvez consiga quebrar visões eurocêntricas sobre os acontecimentos mundiais. Talvez…

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