Além da razão

Cris e Pedro (Samba Top)

Todos os domingos ele acordava em um sobressalto, se enfiava no chuveiro, colocava sua melhor roupa e pedia um carro para uma roda de samba, lá no Pirajá.

Passou a fazer disso um ritual, assim que a pandemia assim o permitiu. Não se lembrava muito bem como sua obsessão pelo samba começou. Em uma noite qualquer, na pequenez de sua kitnet de 40 m² na Pampulha, enquanto ouvia música e bebericava alguma coisa, o samba o fisgou. Desde então, estabeleceu essa meta: quando as portas que a pandemia fechou finalmente se abrissem, é para a roda de samba que ele iria.

E assim foi. Turismou por todo e qualquer samba que lhe aparecia pela frente. Até que um certo je ne sais quoi naquele terreiro no Pirajá o fez fincar os pés por lá. E quando falo em fincar, é quase literalmente. É que ele era um sujeito predominantemente sentado, majoritariamente estático e tinha bons motivos para isso.

Destro, mas dotado de dois lados esquerdos no corpo, ele nunca soube sambar. Quando tentava, parecia desempenhar um número de comédia. Era observado pelo pessoal do samba com curiosidade científica. Sujeito branco, desengonçado, sempre sozinho, panamá na cabeça, camisa de botão estampada. “É gringo”, alguém sentenciou, “só pode ser gringo”.

Mas sambar nunca foi exatamente a sua intenção. Descobrira, desde que seguiu o seu instinto e foi à primeira roda de samba, que alguma coisa ali o emocionava.

Descobriu também que aquela emoção o alimentava. Se o primeiro acorde do cavaco ou o primeiro toque do tantã era capaz de fazê-lo se derramar pelos olhos, algo ali também servia para colocar seu coração no lugar certo. Ao fim do dia, voltava para o seu pequeno apartamento, em pleno estado de flutuação.

De tanto ir ao mesmo samba e sentar sempre à mesma mesa (bem perto da roda), não é difícil imaginar que ele se tornaria em uma figurinha mais ou menos carimbada. Não demorou a se tornar conhecido dos músicos, da gerente da casa, do rapaz que atendia no bar e de alguns clientes. Foi, de pouco em pouco, deixando de causar estranheza e virando paisagem, o que lhe parecia ótimo.

Aquele terreiro no Pirajá tornara-se em algo como sua segunda casa, uma espécie de comunidade. E a roda era seu culto de domingo, uma forma de se encontrar com o divino. Mas não só. Nosso personagem, que tinha mania de cronista mas andava com um sério bloqueio, estava, como um predador inofensivo, à cata de personagens. E lá ele os encontrava à larga.

Algo mais que a inspiração

Naquele terreiro, ele conheceu Sandra Veneno, que era a relações-públicas daquela roda de samba. Sandra, ao contrário do que o apelido pode indicar, é uma senhora extremamente gentil. Ela foi, no passado, uma das grandes passistas de Belo Horizonte. Começou a atuar na década de 80 do século passado, na Escola Unidos dos Guaranis, chegando a ser madrinha de bateria dessa escola e da Canto da Alvorada, além de vencer o badalado concurso “As sete mulatas de Ouro”. Todos ali a chamavam de Madrinha.

Conheceu Jean, o hábil cavaquinho daquela roda, sujeito grande, que tinha um aperto de mão daqueles de reduzir os pobres metacarpos a pó. Lá também conversou e bebeu com Eduardo Gatão, um grande vocalista e compositor de Belo Horizonte.

Enfim, naquele terreiro no Pirajá, ao lado de uma rotatória, ele acabou se sentindo em casa, ao ponto de ser quase sempre o primeiro a chegar e o último a sair todos os domingos.

Havia, porém, uma personagem que sempre lhe pareceu uma incógnita. Uma moça magrinha, elegante, que, como ele, trazia sempre um cigarro na mão. Ela também costumava ser uma das primeiras a chegar e gostava, como ele, de se sentar ao lado da roda de samba. Sabia cantar absolutamente todas as músicas que a roda mandava. Batia na palma da mão com ritmo e graça e, das poucas vezes que se arriscava a sambar, movia-se como uma rainha.

Ele nunca se arriscou a conversar com ela. Seu olhar, quase sempre sério, era feito sob medida para afastar qualquer tipo de aproximação. Mas a curiosidade dele, indisfarçável, fazia com que seus olhos, ainda que acidentalmente, acabassem pousando nela.

Uma vez, dia de casa cheia, ela estava voltando do bar quando esbarrou no “gringo” de chapéu e ele criou coragem.

“Oi, sempre te vejo aqui! Qual o seu nome?”, perguntou, fazendo uso do clichê mais idiota disponível.

Ela respondeu olhando para o outro lado, como se estivesse com pressa que se chamava Cristiane.

“Nossa, reparei que você sabe todos os sambas de cor!”, prosseguiu o branquelo, na esperança de puxar assunto.

“Sim..” respondeu a moça com desdém. “Eu nasci no samba, conheço todo mundo, sou amiga de Fernando Bento, Toninho Gerais, conheço o Zeca Pagodinho…”

Nesse ponto, o homem realmente se emocionou. Ele não só estava finalmente conversando com aquela beldade, como estava a apenas um grau de distância de Zeca Pagodinho. Atiçado pelo álcool, até que, na medida do possível, ele mandou bem.

“Nossa, o Zeca? Me passa seu telefone! Eu PRECISO ser seu amigo!”

Ela ditou os números com cara de enfado, ainda olhando para o lado. Ele anotou. Ela sumiu na multidão e a história poderia ter acabado por aí.

Não fosse por uma segunda-feira.

Segunda-feira é das almas, é bom também de sambar

Ele, que ia a outros sambas em Belo Horizontes, decidiu, em uma noite abafada de verão, ir ao Samba do Lava Jato, no bairro São Paulo.

Esse samba tem por principal característica acontecer sempre às segundas-feiras.

Para quem não sabe, para os povos de santo, segunda-feira é dia de Exu, o mais humano dos orixás. É ele quem faz comunicação entre os seres humanos e o outro plano. Por isso, alguns acreditam que na segunda-feira a passagem entre os mundos encontra-se mais embaralhado, mais fluido; que as almas andam por este plano mais desembaraçadas e livres.

Ele, como sempre, chegou cedo e conseguiu uma mesa ao lado da roda. Comprou um balde com dez cervejas e pôs-se a esperar o começo do samba.

E assim foi. O samba estava bom, a banda que tocava sempre fora uma de sua prediletas.

Ele estava imerso na música, quando uma mão tocou levemente o seu ombro. Era Cristiane.

“Cabô meu pai, cabô”, tocava a roda a música de Moacyr Luz, no compasso da mais refinada ironia.

“Olá”, disse ela sorrindo. Era o primeiro sorriso dela que ele via. “Você está em todos os sambas que eu estou, né?”

Ele respondeu meio sem jeito que a recíproca era verdadeira.

“Posso sentar?’, perguntou Cristiane, já puxando a cadeira.

Ele consentiu, pálido e um tanto sem ação.

O que aconteceu em seguida está na conta das almas. Nem ele nem ela se lembram de como eles se beijaram, nem do que aconteceu exatamente, senão por testemunhas.

Só se sabe que ela e ele saíram abraçados cantando pelos becos do bairro São Paulo, ele cambaleante, ela descalça. Desceu do salto, algo que ele imaginava ser impossível.

E desde então estão juntos.

Dizem que hoje moram numa casinha de roça na Zona Norte, com um jardim sem espinhos e embaixo de um céu azul de admirar.

Pedro Munhoz[email protected]

Editor de Política do BHAZ. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos e em História pela UFMG, trabalhou como articulista de política no BHAZ entre 2012 e 2013. Atuou como assessor parlamentar desde 2016, com passagens pela Câmara dos Deputados, Câmara Municipal de Belo Horizonte e Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

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