Precisava do presidente ter dito, em alto e bom som, em rede nacional, que ninguém é obrigado a se vacinar? Não, definitivamente, não precisava…
Em meio a uma pandemia que já contaminou milhões de pessoas e que causou a morte de milhares mundo afora – só no Brasil foram mais de 125.000 vidas levadas pela Covid – a reação presidencial à mais razoável esperança de cura foi desprezível – esperada, é certo, mas ainda assim, desprezível.
Não se diga que ele estava fazendo uma defesa da liberdade individual. Não, ele não estava empenhado em um debate bioético, defendendo a autonomia do paciente na escolha do tratamento médico a que será submetido. Afinal, ele já deu reiteradas demonstrações de que a liberdade de escolha – especialmente das mulheres, não é exatamente um direito a ser garantido.
A sua fala, na verdade, como todo o seu comportamento com relação ao novo coronavírus, é uma expressão de seu negacionismo: nega a origem natural do vírus, nega a sua letalidade, nega as possibilidades de contágio, nega o seu impacto sobre o corpo humano e nega as possibilidades reais de se minimizar a sua dispersão.
Uma visão ideológica
Na realidade, a postura do presidente é puramente ideológica. Ele consente na divulgação da ideia de que o “vírus chinês” seria parte de um plano engendrado pela potência comunista, com o objetivo de colocar de joelhos o “mundo livre”.
Logo, a única alternativa aceitável é recusar a submissão à estratégia do império chinês, “enfrentando” a doença, preferencialmente com o uso de medicamentos como a cloroquina e a ivermectina, que apesar de eficazes seriam deliberada e intencionalmente barrados pela OMS…
A atividade econômica, que ele diz pretender preservar, teria sofrido um impacto muito menor se, a exemplo de outros países, tivéssemos um controle mais rigoroso no período inicial. Do mesmo modo, a coordenação de esforços com estados e municípios teria propiciado sinergia essencial para o combate à pandemia; mas seria pedir demais abandonar um pretexto tão bom para atacar o STF…
O que deveria ser um debate sobre saúde pública tornou-se um embate entre direita e esquera.
A Nova Revolta da Vacina
Diante desse quadro, não é honesto defender a atitude presidencial como uma manifestação livre e esclarecida sobre a conveniência da vacinação.
Em um momento em que os movimentos antivacina crescem, em que algumas pessoas realmente acreditam que o aparelho que verifica a temperatura causa danos cerebrais e que a vacina chinesa irá instalar um nano-chip que irá monitorar a população, não é prudente que a máxima autoridade da República desautorize a vacinação (atitude que, posteriormente, foi repetida pela Secretaria de Comunicação da Presidência e pelo Vice-presidente, Hamilton Mourão).
Há pouco mais de um século, o Rio de Janeiro debelou a Revolta da Vacina, um motim promovido pela população, insatisfeita com as medidas de saneamento implementadas por Oswaldo Cruz, que atingiu seu ponto máximo quando se tornou pública a obrigatoriedade da vacina contra a varíola.
Àquela época, a ignorância e a credulidade da população foram politicamente exploradas. A obrigatoriedade da vacinação foi o gatilho que disparou a revolta, sendo apropriada por grupos que planejavam um golpe de estado..
É impossível não se fazer um paralelo com a situação atual. A apropriação do discurso antivacina pelo governo federal não é uma escolha inocente. Pelo contrário. Ao mobilizar os seus seguidores contra a vacinação, endossando a tese do complô chinês, ele mantém coesa a sua base e o seu palanque – e, por incrível que possa parecer, a coerência de seu discurso negacionista.
Como comprovam as últimas pesquisas, o presidente não perde nada com essa postura. A maioria da população não o considera responsável pelo agravamento da crise. Portanto, manter sua política de desvalorização da pandemia só lhe traz ganhos. E o melhor: ele próprio não corre qualquer risco: afinal, sua vida não está mais em jogo…