Por Rodolpho Barreto Sampaio Júnior*
O presidente tem uma conturbada relação com a democracia. Se, por um lado, ocupou a Câmara dos Deputados por quase três décadas, sempre eleito pelo voto popular, e em seguida venceu a eleição presidencial, tendo obtido quase 58 milhões de votos, ele, por outro lado, já elogiou a ditadura brasileira, a chilena e a paraguaia; já disse que muitos mais deveriam ter sido mortos pelo regime militar e rendeu homenagens, em pleno Congresso Nacional, ao coronel torturador.
Do mesmo modo, aqueles que lhe são próximos, como um de seus filhos e Paulo Guedes, brandem o AI 5 como uma espada de Dâmocles, sempre pendente sobre a ainda frágil democracia brasileira.
Assim, é com muita cautela que devemos analisar sua afirmação de que teria sido vítima de uma fraude nas últimas eleições presidenciais, a qual teria vencido em primeiro turno. Muito provavelmente é apenas mais uma de suas bravatas. Uma frase irresponsável para dar combustível a sua matilha virtual. Seria, mais simbolicamente, uma cenoura, posta diante do focinho do burro, levando-o a caminhar na direção desejada.
Não se pode, porém, desconsiderar a hipótese de que o presidente está pavimentando seu caminho para um golpe de estado, ou um autogolpe, como o próprio vice-presidente já admitiu ser viável.
Ao colocar em xeque as eleições, ao mesmo tempo em que ataca o parlamento e a cúpula do Judiciário, ele se apresenta como o político imaculado, ungido pela vontade popular para acabar com a “velha política”. Ele finge ignorar que os congressistas são tão legitimamente representantes do povo quanto ele próprio. Finge ignorar que os ministros do Supremo foram empossados após a observância de todos os ritos legais necessários. E desponta como a vestal que irá limpar o país da corrupção – a vassourinha de Jânio Quadros rediviva.
Para tornar ainda mais acesa a dúvida, não custa lembrar que há poucos dias o Clube Militar posicionou-se publicamente a favor das manifestações convocadas pelo próprio presidente, criticando expressamente o Congresso Nacional. Para quem não se recorda, o Clube Militar, uma das mais antigas e tradicionais agremiações nacionais, esteve à frente em dois momentos cruciais da história brasileira: a Proclamação da República e o Golpe Militar de 1964.
Considerando a penetração dos militares na atual administração – tendo inclusive um general na vice-presidência – o apoio do Clube Militar é, no mínimo, inquietante.
O último elemento necessário para viabilizar uma eventual ruptura institucional é, justamente, a adesão popular. Hoje já se sabe que os regimes autoritários não se sustentam apenas pelo uso da força. É necessário o suporte da população. Foi assim no Estado Novo de Vargas, que se voltou para a classe trabalhadora especialmente após 1942. Foi assim em 1964, quando as Marchas da Família com Deus pela Liberdade demonstraram a insatisfação popular com as reforma promovidas pelo governo de Jango.
É preciso, então, observar com cuidado as manifestações do próximo dia 15. Caso se repita o apoio minguado das últimas mobilizações, é improvável uma aventura golpista. Mas, um sucesso inconteste bem pode ser o combustível para alimentar delírios antidemocráticos. Afinal, por aqui também a história se repete: já tivemos a tragédia, agora, será a vez da farsa.
* Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em direito e professor universitário. Foi o primeiro presidente da Comissão de Direito Civil da OAB/MG e é membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.
