O abraço do afogado

Eduardo Pazuello e Gilmar Mendes (Nelson Jr./SCO/STF + Alan Santos/PR)

A história da República brasileira está umbilicalmente ligada ao exército. Desde a proclamação, concretizada pelo Marechal Deodoro da Fonseca, até o melancólico fim da ditadura, os militares estiverem envolvidos nos principais acontecimentos políticos da história nacional: a República da Espada, o movimento tenentista, a Revolução de 30 e a ascensão de Vargas, a instauração do Estado Novo e a deposição de Vargas, o golpe preventivo do General Lott e a posse de Juscelino e, por fim, o golpe militar de 1964 e a subsequente ditadura, que perdurou por mais de duas décadas.

Não é por outro motivo que alguns setores das forças armadas insistem na ideia de que ainda hoje exerceriam um poder moderador. A bizarra criação de Benjamin Constant, destinada a assegurar alguma proeminência ao monarca após as mudanças sociais decorrentes da Revolução Francesa, respalda o papel que os militares exerceram ao longo de toda a República. Eles, de fato, sempre agiram como tutores do País, pretendendo ditar os rumos da política nacional, antigamente por meio de notas do Clube Militar e, hoje, por meio das redes sociais.

Certamente, não contavam com o ostracismo que experimentaram após a redemocratização. Ainda que a Lei da Anistia tenha impedido um acerto de contas com o passado, as forças armadas saíram maculadas da ditadura. Perderam prestígio, visibilidade e relevância. A carreira militar deixa de ter o prestígio de outrora, quando se dizia que toda família de respeito deveria ter ao menos um filho militar e outro padre. Nesse sentido, é sintomático que nenhum dos filhos do atual presidente tenha servido às forças armadas…

Com o passar dos anos, a situação começava a se reverter. Três décadas após o fim do regime militar, as pesquisas apontavam os altos índices de confiança que a população depositava nas forças armadas. O número de candidatos por vaga nas seleções para as escolas militares era também elevado, chegando mesmo a superar cursos de prestígio, como os de medicina, por exemplo. Foi exatamente nesse momento que as forças armadas tentaram o seu retorno à vida política: aliaram-se ao então desprestigiado Jair Bolsonaro, avalizando a sua candidatura; forneceram-lhe, inclusive, um general para ocupar a vice-presidência.

A imagem de integridade geralmente associada às forças armadas foi o fiel da balança em um pleito em que os principais partidos estavam submersos em denúncias de corrupção. E esse apoio não foi em vão: os militares conseguiram regras mais favoráveis para sua aposentadoria, a reestruturação de sua carreira e, principalmente, espaço na administração pública. Muito espaço…

Devem ter presumido que seu conhecimento da realidade nacional e sua experiência na administração pública seriam suficientes para assegurar o sucesso das políticas presidenciais. A imagem que tinham em mente devia ser a do Ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, possivelmente o único a se destacar positivamente no atual ministério.

A realidade, no entanto, saiu muito diferente do que se previa.

A escolha ideológica de vários ministros comprometeu significativamente a atual gestão, como são exemplos os ministros do meio ambiente, da educação e da mulher. Uma névoa foi lançada sobre a capacidade gerencial do presidente, que ainda fez o possível para angariar o apoio dos militares para as suas reiteradas ameaças de um novo golpe. Ainda que nenhum integrante do alto comando militar tenha se manifestado favoravelmente à ruptura da ordem constitucional, o passado das forças armadas fala por si só.

O vice-presidente tentou minimizar os danos que a danosa gestão ambiental implementada tem trazido para a imagem do País. À frente do Conselho da Amazônia, tenta, em vão, reduzir queimadas, desmatamentos e reconquistar a confiança internacional, mas ainda sem qualquer sucesso.

O maior dano, porém, está na vinculação dos militares a uma malsucedida condução da política de contenção da Covid-19. Desprezada pelo presidente, a pandemia deve ceifar 80 mil vidas até o próximo final de semana. À frente do Ministério da Saúde, mais um general, que docilmente aceitou a política negacionista encabeçada pela presidência.

A manutenção do general como interino, a estratégia de não conceder entrevistas, de valorizar dados pouco relevantes e de tentar transferir a responsabilidade da crise para prefeitos e governadores não teve resultados significativos. A maioria da população considera negativa a gestão da crise sanitária pelo governo. E, nesse caso, a associação com os militares é imediata; afinal, é um general de três estrelas que está à frente do Ministério da Saúde.

Quando o Ministro Gilmar Mendes afirmou que o exército se associou a um genocídio na condução da pandemia, acertou o alvo. E as forças armadas não demoraram a passar o recibo: o Ministro da Defesa e os chefes da marinha, exército e aeronáutica assinaram nota repudiando a fala do magistrado. Até o Vice-Presidente se solidarizou com seus colegas de farda, exigindo publicamente uma retratação.

A despeito de seu exagero retórico, a afirmação do Ministro expôs o maior receio dos militares: a perda de prestígio decorrente da associação com um governo cada vez mais mal avaliado. O demorado retorno à arena política, esperado por mais de três décadas, pode reconduzir a uma nova interdição dos militares na definição dos rumos da nação. Parece que o alto comando finalmente descobriu os riscos de tentar salvar quem está se afogando.

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior[email protected]

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em direito civil, professor universitário, Diretor Científico da ABDC – Academia Brasileira de Direito Civil e associado ao IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Foi presidente da Comissão de Direito Civil da OAB/MG. Apresentador do podcast “O direito ao Avesso”.

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