As últimas eleições trouxeram não apenas a extrema-direita para o poder, mas também liberaram sentimentos que, até então, eram escondidos a sete chaves.
De repente, na contramão de tudo o que se acreditava civilizado, as pessoas começaram a revelar as suas mais recônditas convicções.
Tornou-se aceitável ser publicamente racista, homofóbico, xenófobo ou sexista. Defensores da tortura e da ditadura exibem faixas em manifestações políticas e terraplanistas surgiram sabe-se lá de onde, junto com pessoas que realmente acreditam que vacinas são prejudiciais à saúde.
Talvez possamos dizer que a prática já estabelecida de medir a temperatura no pulso simboliza o momento em que o país descarrilhou…
É o triunfo da ignorância, a vitória das fake news e a consagração do autoengano.
O voto contra a intolerância
Nos organismos internacionais, a diplomacia brasileira volta as costas a seus aliados tradicionais, juntando-se agora a países como Arábia Saudita, Líbia, Congo e Afeganistão, a tudo disposta para formar sua Aliança Liberal Conservadora.
Ontem, o Congresso Nacional recusou-se a ampliar a proteção legal às mulheres trans. E, em outra votação, o Partido Novo orientou sua bancada a votar contra a Convenção Interamericana contra Racismo, Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância.
Foi o único partido que votou contrariamente à convenção que pretende combater a intolerância- o que já diz muito da legenda.
O partido, é claro, tomou partido: ficou do lado do opressor, não do oprimido.
Obviamente, tentou justificar racionalmente as suas ações: ele é, por exemplo, contrário à política de quotas. Afinal, o que poderia ser mais contrário à ideia da meritocracia do que as ações afirmativas?
Justificando o injustificável
Não importam os estudos que evidenciam a eficácia do sistema de quotas. Não importam as manifestações contra o racismo ocorridas no mundo inteiro. Não importam os dados sobre a desigualdade salarial, a subrepresentação, o desemprego, a violência e a população carcerária, indicativos da vulnerabilidade da população negra.
Nenhum dado é capaz de convencer aquele que não quer ser convencido: O preconceito é uma escolha pessoal e sobrevive a qualquer fundamentação racional.
De vez em quando, ainda encontramos aqueles que tentam ocultá-lo, apresentando argumentos falaciosos: O Novo alegou, por exemplo, que o sistema de cotas poderia frustrar a vontade popular, pois poderia levar à eleição de candidatos que tiveram menos votos…
O partido é contra o sistema proporcional?
Isso foi dito por um partido que se beneficiou diretamente do sistema proporcional. Em São Paulo, apenas um de seus candidatos a deputado federal teria sido eleito, caso se considerasse a tal “vontade popular”.
Os outros dois deputados do Novo ficaram dezenas de milhares de votos abaixo de outros candidatos, que acabaram preteridos por um sistema eleitoral em que a vontade do eleitor fica em segundo plano.
Se a vontade da população é tão relevante para que o partido vete a convenção, é de se esperar que já tenha pronto um projeto que acabe com nosso distorcido sistema eleitoral proporcional, em que um candidato bem votado elege outros tantos.
Mas acho melhor aguardarmos sentados; não se deve esperar coerência na política. A exceção, no caso, fica por conta do deputado que se diz príncipe. Ele realmente foi coerente ao votar contra a proposta que protege a população negra: honrou o legado da família responsável por manter por séculos a escravatura no Brasil.