Os trainees da Magalu e o privilégio branco

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Selecionados pelo Itaú em programa de trainees e ato supremacista em Charlottesville, em 2017 (Itaú/Divulgação + Reprodução/@BrandonStraka/Twitter)

Mais da metade dos funcionários do Magazine Luiza são pretos e pardos; no entanto, apenas 16% desses funcionários ocupam postos de liderança.

Esses dados não chocam ninguém: não se viu uma juíza do trabalho vociferando nas redes sociais contra essa situação e o vice-líder do governo na Câmara dos Deputados nunca pensou em denunciar ao Ministério Público os critérios adotados pelo RH da empresa.

Mas bastou a Magalu anunciar que sua próxima seleção de trainees será destinada a candidatos pretos para que o céu caísse. Como assim? Como os brancos podem ser excluídos do processo que selecionará aqueles que ocuparão os postos diretivos da empresa? Isso é discriminatório, dizem uns. A Constituição proíbe um tratamento não isonômico, dizem outros. Racismo reverso, esbravejam aqueles que não tem vergonha de usar a expressão…

A diversidade racial entre os trainees do Itaú

Poucas pessoas se incomodaram quando o Banco Itaú divulgou, em dezembro de 2019, a foto dos candidatos aprovados ao final do seu processo para seleção de trainees: coincidentemente, todos brancos!

A imagem realmente não causa estranheza. Pelo contrário: está de acordo com a disseminada visão de que os altos cargos seriam destinados por direito divino aos brancos, “mais educados e escolarizados”, ao passo que os trabalhos menos qualificados seriam naturalmente destinados à população preta e parda, “menos instruída”.

E não se entenda que isso seria uma manifestação do racismo estrutural da sociedade brasileira. Não, de forma alguma! Seria uma decorrência do mérito de cada um dos candidatos…

Por esse falso motivo é que acusam o processo da Magalu de racista: porque ele, já de partida, excluiria os brancos, impedindo-os de concorrer em igualdade de condições. Igualdade de condições, aliás, que se viu no processo seletivo do Itaú, que dentre 72 mil candidatos não conseguiu encontrar um único negro qualificado para ser estagiário…

O avanço da extrema-direita sobre as pautas identitárias

A reação de setores conservadores da sociedade brasileira à proposta da Magalu não é inesperada. E nem tampouco impensada!

De forma muito bem organizada, a extrema-direita tem se concertado para atacar as pautas identitárias. Só que ela não o faz apenas vestindo roupas brancas, incendiando cruzes ou organizando passeatas para insultar negros, imigrantes, homossexuais e judeus, como se viu em Charlottesville no ano de 2017.

A sua ação, na verdade, é muito mais estruturada: por meio de poderosas organizações civis, tais como a Alliance Defending Freedom – ADF, a extrema-direita atua nos tribunais e na alta administração pública, aproveitando lacunas legais para desconstruir os discursos e práticas que não lhe agradam.

Foi o que se viu na ação movida por Jack Phillips, confeiteiro norte-americano que por convicção religiosa se recusou a fazer um bolo para a celebração de um casamento entre pessoas do mesmo sexo e que foi absolvido pela Suprema Corte dos EUA.

É o que se vê no recente comunicado que o Departamento de Educação Norte-americano enviou à Universidade de Princeton, acusada de violar a legislação federal de direitos civis ao reconhecer, publicamente, o racismo sistêmico na Universidade. O mesmo ocorreu com as universidades de Harvard e Yale, acusadas de pactuarem com políticas discriminatórias ao instituírem programas de ação afirmativa.

Em todos esses casos, a estrutura do estado de direito é utilizada para corromper a própria democracia, questionando-se os poucos avanços obtidos pelas minorias. O caso de Princeton evidencia que nem mesmo um pedido de desculpas pelo passado racista é admissível aos olhos dos conservadores de extrema-direita.

Os direitos fundamentais nas relações privadas

Diferentemente do que disse a juíza do trabalho em suas redes sociais, a nossa ordem constitucional admite, sim, algumas práticas discriminatórias: não se questiona a legitimidade da Igreja em ordenar apenas padres, de uma organização feminista admitir apenas associadas e de uma senhora alugar um quarto em sua residência exclusivamente para estudantes do sexo feminino.

Na verdade, a discussão sobre a incidência dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares remonta aos anos 50 do século passado e hoje já está relativamente consolidada.

Por isso, práticas discriminatórias que tenham o objetivo de beneficiar grupos que historicamente não foram excluídos ou perseguidos em virtude de seu sexo, nacionalidade, religião ou cor, não são admissíveis. Excepcionalmente, pode-se até permitir tais práticas, desde que não se viole gravemente os direitos fundamentais daqueles excluídos: seria o caso da maçonaria, que admite apenas homens.

Em contrapartida, medidas que promovam a inclusão, a representatividade ou que tenham uma justificativa objetiva, tendem a ser admitidas. É exatamente nesse contexto que se insere o processo para seleção de candidatos negros, que visa a aumentar a diversidade no ambiente de trabalho e promover a inclusão de pessoas que, por sua cor, tem maior dificuldade de ascensão profissional.

A função promocional do direito

O direito tem que ser um processo de transformação social. Ele tem que promover valores considerados essenciais para o bem-estar da sociedade; não é um simples instrumento para a manutenção do status quo.

Aceitar as conquistas das minorias e respeitar os direitos que apenas agora conseguem obter é um sinal de amadurecimento democrático. Insurgir-se contra as medidas que combatem privilégios não é apenas mesquinho e egoísta; é antes de tudo, pactuar com um reacionarismo que inflige mais dor e sofrimento a uma parcela da sociedade há muito castigada.

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior[email protected]

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em direito civil, professor universitário, Diretor Científico da ABDC – Academia Brasileira de Direito Civil e associado ao IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Foi presidente da Comissão de Direito Civil da OAB/MG. Apresentador do podcast “O direito ao Avesso”.

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