O sistema de justiça está preparado para os casos de violência sexual?

Mari Ferrer Rodrigo Constantino
O Ministro Gilmar Mendes considerou estarrecedoras as imagens da audiência (reprodução/Redes Sociais)

Todos já sabemos que nem o juiz e nem o promotor utilizaram a expressão “estupro culposo”. Tratou-se de um artifício retórico utilizado pelo portal The Intercept Brasil para chamar a atenção sobre a decisão que inocentou por falta de provas o acusado de estuprar a influencer Mari Ferrer.

E não há dúvidas de que a estratégia foi bem-sucedida. Muito bem-sucedida!

A questão tomou as redes sociais. Manifestações de apoio vieram de todos os lados. O Ministro Gilmar Mendes considerou estarrecedoras as imagens da audiência; a OAB censurou o advogado de defesa; a senadora Rosa de Freitas pediu a anulação da sentença; a Ministra da Família, Damares Alves, divulgou nota de repúdio e o CNJ vai investigar a conduta do juiz que conduziu o processo. Até os times de futebol se solidarizaram com a vítima…

A violência estatal

Não é nosso propósito, aqui, analisar a sentença. Isso nem seria possível. O processo corre em segredo de justiça. E existe um tribunal que, legalmente, tem competência para reapreciar as provas e proferir um novo julgamento. Mas podemos aproveitar a repercussão do caso para questionarmos se o sistema de justiça está preparado para julgar os atos de violência sexual.

A resposta, ao menos para quem viu os trechos da audiência divulgados nas redes sociais, é obviamente negativa.

Três homens assistem, impassíveis, um quarto homem humilhar a vítima de um estupro durante a audiência. A vítima é ofendida, ultrajada, ironizada e silenciada pelo advogado do acusado e a concessão máxima que o juiz se permite é autorizá-la a se recompor.

Diante das cenas, é irrelevante se em outros momentos o advogado foi ou não admoestado pelo juiz ou pelo promotor. Se o advogado foi advertido, ficou muito claro que a advertência não foi suficiente…

A justiça enviesada

O comportamento dos homens que participaram da audiência diz muito de quão enraizada a cultura do estupro está em nossa sociedade e, como não poderia deixar de ser, no próprio sistema de justiça.

A investigação e o julgamento de um caso de estupro exigem um minucioso trabalho de reconstrução fática. Os policiais, o delegado, o promotor e o juiz deverão reunir os fatos a fim de compor o quadro que conduzirá ou não à condenação do acusado.

E, nesse trabalho, não se pode desconsiderar o viés de gênero dos envolvidos nesse trabalho de reconstrução.

É claro que uma sociedade patriarcal, historicamente machista, sexista e misógina tenderá a responsabilizar a mulher pelo crime de que foi vítima. Por aqui, se a embriaguez do homem justifica a sua conduta, a embriaguez da mulher a condena…

Mulheres decentes e piranhas

Por mais perplexidade que tenha causado, a fala de Rodrigo Constantino representa a compreensão de significativa parcela da população brasileira, que divide o universo feminino entre as “santas” e as “vadias”.

E essa representação do papel da mulher, obviamente, também está presente no sistema de justiça.

Logo, quando o delegado, o juiz e o promotor tentam reconstruir os fatos relativos ao crime de estupro, irão considerar mais relevantes aqueles que confirmam o seu viés.

É por isso que o promotor disse que o acusado não teve a intenção de estuprar; afinal, os homens estão acostumados a acreditar, desde pequenos, que têm direito de consumar o ato sexual mesmo que a mulher diga não. Se Mari Ferrer não recusou as investidas do acusado, ele não teria como saber que o caminho não estava livre; mesmo que ela estivesse tão drogada que não conseguia nem mesmo se expressar.

Por outro lado, é muito provável que um sistema de justiça composto por pessoas com uma orientação oposta, entendesse que o esperma, o hímen rompido e o depoimento do motorista que levou a influencer para casa compusessem o quadro de que houve, sim, um estupro. O que levaria à condenação.

Na realidade, não é correto dizer que o acusado foi inocentado por ausência de provas. É mais preciso afirmar que não houve condenação porque os integrantes do sistema de justiça escolheram aquelas provas que reforçavam o seu próprio viés, desconsiderando todas as outras.

Diferentemente do que se chegou a dizer, a matéria do The Intercept Brasil abriu nossos olhos para uma necessidade premente: o sistema de justiça brasileiro precisa evoluir, precisa se livrar de um viés de gênero que condena milhares de mulheres a um sistema de justiça parcial, no qual a vítima é a única responsável pelo crime que sofreu e o homem não precisa compreender o verdadeiro significado da palavra “consenso”.

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior[email protected]

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em direito civil, professor universitário, Diretor Científico da ABDC – Academia Brasileira de Direito Civil e associado ao IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Foi presidente da Comissão de Direito Civil da OAB/MG. Apresentador do podcast “O direito ao Avesso”.

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