Empresa contrata homem trans, mas volta atrás após descobrir transexualidade

Eduardo Príncipe
Jovem tinha sido aprovado na entrevista de emprego (Reprodução/@eduardoprinciperocha/Instagram)

Após meses desempregado, Eduardo Príncipe Rocha, um homens trans, começaria, nesta segunda-feira (12), no seu primeiro dia de emprego. Contudo, o pernambucano, aprovado no processo seletivo na última semana, foi surpreendido nesse domingo (11), um dia antes de começar no trabalho. O empregador enviou uma mensagem a Eduardo e disse que voltou atrás na decisão, depois de descobrir que Eduardo era transexual. O caso aconteceu em Petrolina, no Pernambuco.

Na mensagem, o empregador alega que a empresa já está com todas as “cotas de pessoas diferentes” completas. “Vamos dar uma última forma nas conversas que tivemos. De minha parte, não segui o roteiro correto das entrevistas e não o identifiquei na primeira hora. 99% do meu quadro é composto por mulheres. Meu objetivo com essa vaga é contratar um monitor, consequentemente do sexo masculino. Minha cota de pessoas diferentes já está atendida e completa com o que demonstro não ter preconceito”, afirma.

O empregador diz a Eduardo que ele não poderia mais preencher a posição e reforça a justificativa de que a vaga seria “para o sexo masculino”. “Somente vim saber de sua condição muito depois. Nada contra. Mas a vaga é para o sexo masculino. Agradeço sua atenção”, finaliza.

print eduardo homem trans
Mensagem do empregador (Reprodução/@travestiviva/Twitter)

Violação de direitos e transfobia

Ao BHAZ, o advogado Júlio Mota de Oliveira, homem trans, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Juiz de Fora, diz que a mensagem demonstra várias violações legais. “Neste caso, podemos apontar diversas violações, não só pelo conteúdo da mensagem, mas também pela forma que o empregador comunicou que não precisaria dos serviços do empregado”, explica.

“Os motivos apresentados pelo empregador para não contratar o funcionário são preconceituosos e têm como base a transfobia, uma vez que ignora a identidade de gênero do candidato, que é um homem, independente do seu sexo biológico, o que fica claramente comprovado quando ele afirma que ‘a vaga é para o sexo masculino'”, complementa o advogado, que também é especialista em Gênero e Sexualidade pela UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora).

Para o advogado, o empregador cometeu o crime de transfobia. “Um dos direitos humanos violados foi o direito ao trabalho. Toda pessoa tem o direito de ter acesso ao trabalho, sem discriminação por doença, deficiência, sexo, cor, religião. O empregador, neste caso, além de violar diversos direitos humanos do empregado, cometeu o crime de transfobia que se enquadra na tipificação da Lei do Racismo”, explica.

O presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB cita dois artigos da Lei: “O artigo 1º, que diz que ‘serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional’, e art. 4º ‘negar ou obstar emprego em empresa privada, com pena de reclusão de dois a cinco anos”.

“Neste caso, além de responder pelo crime de transfobia, o empregador poderá também ser responsabilizado civilmente pelos danos morais causados ao empregado”, afirma.

Homem vai denunciar empresa

Eduardo anunciou, nesta segunda-feira, que irá procurar as medidas legais cabíveis. “Quero voltar aqui já com a denúncia formalizada, porque isso não pode ficar aqui. Eu estou recebendo mensagem de outras pessoas trans, do país todo”, contou, em publicação nas redes sociais.

Segundo ele, as pessoas que o procuraram se identificaram com a história. “Dizendo que já passaram por isso, viveram isso e não souberam o que fazer. Então, se eu estou tendo essa rede de apoio, eu quero de verdade fazer justiça em nome de todas essas pessoas e tentar minimamente evitar que outras pessoas passem por isso”, completou o rapaz.

Eduardo também aproveitou para deixar um lembrete importante. “Porque não é justo, não é digno, a gente é gente normal, temos habilidades normais, assim como a gente tem dificuldades”.

Repercussão

A primeira denúncia veio de uma amiga de Eduardo, em publicação nas redes sociais, na tarde de ontem (11). Em pouco tempo, a postagem viralizou e acumulou quase 4 mil curtidas, além de centenas de compartilhamentos e respostas.

Após a repercussão, o pernambucano apareceu nas redes sociais para agradecer todo o apoio. “Não para de chegar ajuda. Tá vindo de todos os lados, de gente que conheço e não conheço, de gente que nem vai com minha cara, nem fala comigo e agora tá tendo empatia. Eu não sei como agradecer e chegar até todos vocês, mas saibam que quero poder recompensar vocês nem que seja em outra vida. Quando tudo isso passar, porque vai passar, podem contar comigo. Muito obrigado!”, disse.

O homem contou que, há até pouco tempo, lutou contra a depressão. “Depois que eu fiquei desempregado eu lutei muito para vencer a síndrome do pânico que eu estava e de certa forma eu venci sim, consegui sair da cama e ir para a rua, trabalhar. Eu comecei a fazer de tudo que eu tinha de ferramenta para fazer ali”, disse Eduardo. Ele contou ainda que, após várias tentativas, voltou a ter esperanças nas últimas semanas.

‘Tentei tudo que podia’

“Eu tentei tudo o que eu podia. Eu fiquei desempregado no começo do ano. Eu estava com um quadro depressivo muito forte, síndrome do pânico, mas eu consegui vencer e sair para a rua para trabalhar. Por conta da depressão, essa parte financeira fica bagunçada, tudo fica bagunçado. Eu acabei ficando extremamente desorganizado nesse sentido, coisa que eu nunca fui”, afirmou.

“Segurei a onda até que ele fechou comigo na terça-feira, eu falei: ‘Eu vou cortar o meu cabelo, vou ficar bem bonito, arrumado, para poder começar a trabalhar com outra energia’, e estava contando com isso, então eu estava muito seguro e ia dar certo, ia poder pagar o seguro do carro, se fosse o caso, mas também as outras contas que eu tinha, as dívidas, a vida”, detalhou o rapaz.

“Estou sensibilizado, não é só pensando na minha situação, mas pensando na quantidade, como sempre pensei, de pessoas trans, travestis e LGBTs de forma geral que passam fome porque não têm um lar, um emprego. E trabalho é sobrevivência, gente”, finalizou o homem.

Casos não são raros

O advogado Júlio Mota também lembra que o caso de Eduardo é um entre vários na comunidade trans e travesti. “Cabe ressaltar que situações como essas não são raras. Há muito relatos de pessoas trans que passaram por processos seletivos e que, ao entregarem suas documentações, foram dispensadas sem mais explicações. Nesse caso, a transfobia está explícita, mas também existem os casos em que o empregador não expõe o motivo pelo qual não contratou o funcionário ou funcionária o que dificulta a comprovação da transfobia”, explica.

O emprego formal ainda é uma exceção entre pessoas trans, e o mercado de trabalho, assim como os empregadores, impõem barreiras à população. Diante disso, no Brasil, 90% da população transexual e travesti tem a prostituição como fonte de renda e possibilidade de subsistência, segundo levantamento da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

De acordo com dossiê da mesma associação, o Brasil é o país que mais mata trans e travestis no mundo. No último ano, pelo menos 175 pessoas trans foram assassinadas. O número é 41% a mais do que o registrado em 2019, quando 124 trans foram mortas.

Ainda este mês, morreu Roberta Silva, uma mulher trans que teve 40% do corpo queimado em um ataque causado por um adolescente, em Recife (PE). Segundo apurado pela Polícia Civil, o adolescente jogou álcool no corpo de Roberta para atear o fogo com a intenção de matá-la. As chamas se alastraram na vítima, causando queimaduras graves no abdômen, no tórax, nos braços e em uma das pernas. O humorista Whindersson Nunes falou sobre o caso no Twitter (veja aqui)

Violência em Minas

Em números absolutos, Minas Gerais ocupa a quarta posição no ranking dos estados mais violentos para pessoas transexuais e travestis. Em solo mineiro, foram contabilizadas 17 mortes em 2020, um total de 12 assassinatos a mais do que em 2019.

Em 2021, no Dia da Visibilidade Trans, uma mulher trans foi assassinada na região metropolitana de Belo Horizonte. Com marcas de crueldade, ela foi morta a facadas e teve o corpo abandonado às margens da avenida Tereza Cristina, no bairro Vila São Paulo, em Contagem. Já no Carnaval do ano passado, uma mulher trans foi espancada na capital mineira. Ela ficou em estado grave no hospital e recebeu alta somente depois de quase quatro meses.

A LGBTfobia não ocorre restritamente em casos de violência física. Um caso em São Paulo representa mais um episódio de transfobia que não envolve agressão. Em junho, uma empresa de locação de imóveis e o proprietário de um flat foram condenados a pagar R$ 10 mil em indenização para uma mulher trans, após expulsá-la do imóvel por transfobia. A 31ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu o crime e ambos foram obrigados a reparar a ex-moradora.

Transfobia na TV e nas redes

Além disso, há ainda os comentários preconceituosos. No mês passado, um grupo de jovens conservadores debocharam e atacaram uma mulher trans em live. Entre os participantes da conversa, estavam o vereador de BH Nikolas Ferreira (PRTB) e a deputada estadual Ana Caroline Campagnolo (PSL-SC). Outros dois episódios lamentáveis foram ao ar na TV Globo: Pedro Bial fez comentário transfóbico, em entrevista com Ronaldo Fenômeno, e a ex-BBB Íris Stefanelli também gerou revolta após protagonizar uma discussão com Ariadna no “No Limite”.

Em 2017, por meio de dados do Disque 100, a Transgender Europe identificou que a maior parte dos relatos da comunidade LGBTQIA+, que inclui as pessoas trans e travestis, diz respeito à violência psicológica, que inclui ameaças, humilhação e bullying. Tais comportamentos podem afetar a saúde mental das pessoas e levá-las, até mesmo, ao suicídio e à depressão.

Conquistas

Apesar do preconceito enfrentado diariamente, também existem conquistas para se comemorar. Neste ano, aconteceu o primeiro nascimento de um bebê filho de casal trans na maternidade Maria Barbosa, do HUCF (Hospital Universitário Clemente de Faria), em Montes Claros, no Norte de Minas. Na ocasião, um homem trans deu à luz à pequena Isabella Victória.

Já em fevereiro, outro homem trans obteve direito, na 11ª Câmara Cível do TJMG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais), a fazer mamoplastia. No mesmo mês, duas irmãs mineiras fizeram história no Brasil ao serem as primeiras gêmeas do país a passarem por uma cirurgia de redesignação sexual, popularmente conhecida como mudança de sexo. Elas realizaram o procedimento quase ao mesmo tempo.

É crime

Em junho de 2019, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero é crime. Com a decisão da Corte ficou definido o seguinte:

  • “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito” em razão da orientação sexual da pessoa poderá ser considerado crime;
  • a pena será de um a três anos, além de multa;
  • se houver divulgação ampla de ato homofóbico em meios de comunicação, como publicação em rede social, a pena será de 2 a 5 anos, além de multa;
  • a aplicação da pena de racismo valerá até o Congresso Nacional aprovar uma lei sobre o tema.

Nos votos que fizeram durante a sessão, os ministros fizeram ressalvas a respeito de manifestações em templos religiosos. Os espaços não serão criminalizados por dizer que são contra as relações homossexuais. No entanto, não podem incitar ou induzir, mesmo que no interior de suas dependências, discriminação ou preconceito.

Como denunciar?

As denúncias de crimes LGBTfóbicos podem ser realizadas em delegacias especializadas em crimes de ódio e nas comuns. Em Belo Horizonte, há a Delegacia Especializada em Repressão aos crimes de Racismo, Xenofobia, Homofobia e Intolerâncias Correlatas. O espaço fica na avenida Barbacena, 288 – Barro Preto, na região Centro-Sul da capital.

Nenhum agente pode se recusar a abrir um boletim de ocorrência quando solicitado. Se a vítima for menor de 16 anos, os casos também pode ser direcionados aos conselhos tutelares.

Além das delegacias, outras instituições auxiliam pessoas LGBTQIA+, como as defensorias públicas, núcleos especializados da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e ongs como a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexo) e a Cellos (Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais).

Em casos de crimes em ambientes virtuais, a orientação é de que as vítimas juntem provas, como prints, áudios, fotos e vídeos, se possível, e procurem as autoridades.

Edição: Giovanna Fávero

SIGA O BHAZ NO INSTAGRAM!

O BHAZ está com uma conta nova no Instagram.

Vem seguir a gente e saber tudo o que rola em BH!