Enfermeira de BH faz desabafo emocionante sobre caos na capital

Daniele enfermeira
Daniele, em meio à esperança e o cansaço na linha de frente (Arquivo pessoal/Daniele Azevedo)

Mesmo com um ano da chegada da Covid-19 no Brasil, o cenário nunca esteve pior. São redes de saúde inteiras em colapso, mutações preocupando autoridades e até mesmo crianças e bebês ameaçados. Mobilizada com a situação, uma técnica de enfermagem que atua na linha de frente na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) pediátrica em BH publicou um relato emocionante sobre o que tem encarado todos os dias no trabalho. Ao BHAZ, ela ainda contou que, além dos desafios já habituais, a exaustão e a desvalorização dos profissionais tornam tudo mais difícil.

“Até hoje eu tinha forças e estava na luta, até hoje eu tinha combustível e cuidei, dando o meu melhor, do amor da vida de alguém. Acontece que hoje estou com meu pai em um CTI”, contou Daniele Azevedo em uma publicação no Facebook. Mesmo um ano combatendo a doença não foi o suficiente para prepará-la para o desafio que seria ver o próprio pai lutando contra o vírus. “Eu conheço cada passo do tratamento e sei exatamente como pode evoluir. Sei também que passar por isso sozinho, sem a família, é muito difícil e triste”, diz.

Daniele publicou um relato comovente em rede social (Reprodução/@daniele.azevedo.129/Facebook)

Ao BHAZ, Daniele conta que, em nove anos de profissão, sempre trabalhou em UTIs e na pediatria – mas nem os anos de experiência resolvem os problemas que ela encara agora. “Nós já estamos acostumados a lidar com todas as doenças. Mas o que eu tenho sentido mais, é que antes falavam que as crianças acometidas com Covid eram aquelas com alguma comorbidade. Agora, essa nova cepa mudou isso”, conta.

‘É um jogo de azar’

A técnica em enfermagem relata ainda que a nova variante do vírus agravou ainda mais o clima no hospital onde trabalha. “O que a gente tem visto no nosso dia a dia é que hoje, literalmente, qualquer criança está exposta ao vírus. É um jogo de azar. A gente não sabe o que faz o vírus ser mais agressivo em um organismo e não ser no outro. Isso tem dificultado bastante”, relata.

Com a nova mutação do coronavírus, a preocupação, que antes girava em torno dos idosos, passou a atingir os pais e mães que trabalham fora de casa. Agora mais do que nunca, os desafios profissionais de Daniele se misturam com a vida pessoal. “Eu trago uma carga viral muito alta pra dentro da minha casa, mesmo tendo todos os EPIs (equipamentos de proteção individual), então eu fico com receio pela minha filha. E não tem previsão para vacinar crianças”, desabafa.

‘As mães negam, mas é a realidade’

Mesmo com o alerta da PBH (Prefeitura de Belo Horizonte) sobre o aumento dos casos em bebês e crianças, a técnica de enfermagem conta que vem observando uma negacionismo por parte dos pais. “Eu participo de alguns grupos que as mães negam, mas é a realidade, tem sim, eu sou mãe, minha filha tem só 7 anos e eu temo por ela porque eu tenho visto o que está acontecendo. Esse aumento é real”, reforça.

Ela lamenta o negacionismo por parte das pessoas, que apenas dificulta o trabalho nos hospitais. “A população negar o que está acontecendo, é ruim para as pessoas e para a sociedade como um todo porque a gente fica girando em um círculo, porque tem sempre alguém que fica quebrando aquilo, saindo de casa, se aglomerando”, explica.

“Para a gente que trabalha de frente, isso é um soco no estômago, fica parecendo que todo o trabalho que eu estou tendo e que a carga que vem nesse trabalho são em vão, porque tem gente que acha que a gente está brincando ali. Muito cansativo”, relata.

‘Balde de água fria’

E a exaustão, infelizmente, é traço cada vez mais comum dos profissionais da área. “Tem aumentado o número de profissionais pedindo para sair, tenho percebido, muitas colegas minhas pedindo. Isso é ruim porque o círculo de pessoas que trabalham e são pra trabalhar em CTI é muito pequeno em Belo Horizonte”, conta Daniele.

“A enfermagem sempre foi extremamente desvalorizada no Brasil. A equipe de saúde em si, normalmente toda. O médico costuma ter uma visibilidade maior, mas a enfermagem sempre ficou ali invisível, a gente sempre lidou muito com isso, mas agora o que a gente percebe é que a gente tá realmente sempre invisível. A gente trabalha, trabalha, trabalha e vem alguém e joga um balde de agua fria em nós”, lamenta.

As desistências, de acordo com a profissional, estão acontecendo não só em em função do alto nível de estresse, mas também pelo negacionismo e descaso da população. “Está parecendo que a gente está trabalhando à toa. Tem gente que não vê o que está acontecendo. Isso desanima demais a gente”, lamenta.

A técnica em enfermagem afirma que ela própria chegou a cogitar deixar o trabalho depois de tanta desvalorização e tantos desafios pessoais. O pai de Daniele está internado há dias devido à Covid-19 e, apesar da melhora do quadro, ainda está intubado em UTI. “Essa semana com meu pai internado, vendo outras pessoas negarem o que está acontecendo me fez ter vontade de desistir”, conta.

Hospital de campanha?

E para aqueles que ainda acreditam que a solução “é só abrir mais leito”, Daniele alerta que não é bem assim. A técnica de enfermagem explica que o problema tem mais relação com a falta de profissionais de saúde. “Não adianta abrir hospital de campanha se não tiver profissional e infelizmente não tem. Não é qualquer pessoa que forma que vai ter perfil e capacidade para trabalhar em CTI. Cada um tem perfil para uma área e não adianta abrir se não tiver profissionais capacitados para esse leito”, explica.

Além das centenas de profissionais da saúde que já perderam a vida combatendo a doença na linha de frente, o estresse e a desvalorização, potencializados pelo negacionismo, fazem aumentar as desistências e o cenário piora ainda mais. “Fazer com que a gente fique cansado e desista é pior, porque aí o que já é pouco fica menos ainda”, explica.

Um dos fatores que agravam a situação é a insistências da pessoas em se encontrar e promover festas, no meio de todo essa dedicação. “O pessoal faz churrasco. Meus vizinhos, por exemplo, fizeram um churrasco o final de semana inteiro, vem gente de fora, acham que é brincadeira. Eu tenho percebido que, às vezes, as pessoas que têm plano de saúde acham que vão estar resguardadas, a realidade não é essa”, alerta.

‘Se doar para o outro’

O cansaço vem de pessoas que já estavam acostumadas a lidar, até certo grau, com a desvalorização. “Apesar da piora no momento, a gente sempre foi desvalorizado, então quem escolhe essa profissão não escolhe esperando que vai ganhar um super salário ou que vão reconhecer o trabalho que você faz. Escolhe realmente porque quer se doar para o outro”, argumenta Daniele.

“Eu sempre amei cuidar dos outros. Não tive dúvidas quando escolhi enfermagem. Eu amo o que eu faço, eu sempre trabalhei na pediatria, eu não consigo me ver fora, assim como eu não me vejo trabalhando em outra área que não seja o CTI. Eu me identifico muito com cada um dos meus pacientes, me doo por eles, e a gente faz isso sem esperar nada em troca”, conta.

‘Se cuidem’

Daniele ainda aproveita para reforçar o pedido que escreveu na rede social: “O que eu digo para as pessoas é: se cuidem. Quando as pessoas se cuidam, elas cuidam de nós, e nós estamos fazendo de tudo para cuidar daqueles que estão doentes, então se cuidem”.

“Se cuidem pela família, por si, porque se a gente nesse momento não se manter unido em prol do mesmo objetivo, que é acabar com esse vírus, a gente não vai conseguir vencer. Para vencer, a gente precisa estar junto no mesmo propósito, e agora o que a gente sabe, é provado, que o que a gente precisa fazer agora é manter o distanciamento, cuidar pra poder não espalhar mais o vírus”, pontua a técnica em enfermagem.

“Então se cuidem, para que a gente também se sinta cuidado, para que eu me sinta tranquila de sair da minha casa, porque as pessoas estão fazendo a parte delas também”, finaliza.

Edição: Giovanna Fávero

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