NASCI PARA SER MULHER

Yuran Khan/Bhaz

Desde pequena, Luiza nunca gostou muito de brincar de boneca. Pryscilla sempre adorou crianças, mas só as dos outros. “Não quero isso pra mim”, diz a moça. Isabela entende que “moldar um ser humano” é uma enorme responsabilidade. Vanessa evita o assunto. Prefere não comentar com a família para não ouvir mais do mesmo: “você ainda vai mudar de ideia”, eles dizem. Ser mãe, para tantas, é o clímax – e a afirmação – da condição feminina. Mas não para elas.

Se você faz parte desse público, possivelmente sente que a maternidade é uma das tantas funções socialmente atribuídas à mulher e, durante toda a vida, é como uma sombra que sempre a acompanha – nem que seja para evitá-lá. Com a maturidade e os relacionamentos, a pressão só se intensifica e os questionamentos de “quando vem um neném ai” surgem a todo momento.

Esta é a segunda reportagem da série Elas (R)Existem. Por meio de três materiais multimídias, o BHAZ pretende ampliar discussões e projetar vozes que estão fora da normatividade e nos apresentam particularidades e desafios sob a ótica da condição feminina. Veja as outras aqui e aqui.

Mas o tão falado instinto materno não bate à porta e – graças à revolução sexual e aos novos papéis sociais – viagens, independência  e a própria liberdade tornam-se prioridades e se sobrepõem à “vontade” de dar à luz. Segundo dados do IBGE, o número de casais sem filhos no Brasil aumentou de 23% (2005) para 32% (2015), enquanto as famílias com filhos diminuíram 8%.

Mesmo com as estatísticas que provam as mudanças sociais, mulheres como Isabela Freitas, de 20 anos; Luiza de Simone, 21; Vanessa Veiga, 26; e Pryscilla Resende, 37, lidam com olhares desconfiados quando confirmam a decisão. Mas não se engane! As imposições – ainda no século 21 – são muitas e perpassam desde a pressão social até família e religião.

Não nasci para ser mãe

As razões por trás da escolha de não ser mãe variam, mas não se enxergar no papel é um dos motivos comuns. “Sempre adorei crianças, inclusive tenho uma sobrinha de 4 anos com quem me dou muito bem. Mas eu não me vejo como mãe, não consigo”, afirma Pryscilla Resende, que segue sem filhos depois de uma união de 16 anos.

Pryscilla, 37, e sua sobrinha Alice, 4
Pryscilla, 37, e sua sobrinha Alice, 4

“Quando eu era pequena, queria ser pediatra, mas ainda assim nunca tive vontade de ter uma criança”, completa. Luiza compartilha do mesmo sentimento. “Eu vejo pessoas da minha família com filhos, vejo o sufoco que elas passam e penso ‘não quero isso pra mim’. Não tenho essa necessidade e, de verdade, nunca quis. Quando eu era pequena nem gostava de brincar de boneca”, afirma a moça.

Isabela também não se enxerga no papel. “Muita gente fala de instinto materno mas eu não sei o que é isso. É você ver um bebê, acha bonito e pensar ‘ah, eu também quero um?’ nunca senti isso dentro de mim”, confessa.

Luiza de Simone

‘Minha mãe sempre quis ter neto, mas eu nunca quis ter filho’

“O ponto mais delicado da minha decisão é a minha mãe”, revela Vanessa, que divide a vida com seu marido há 4. “Eu até evito tocar nesse assunto com ela e, quando ele vem à tona, falo que agora não é o momento… Tenho outras prioridades”, afirma a moça que veio de uma família católica e sente a pressão de todos os lados.

Luiza sofre o mesmo dilema. “Minha mãe sempre quis ter neto, mas eu nunca quis ter filho”, solta. Ela conta que, no fundo, ainda há esperanças por parte da mãe, a qual acredita que essa ideia é só uma fase.

Quando a pressão não vem da própria mãe, é de outra parente próxima. É o caso de Isabela. “Minha mãe já percebeu que eu não levo jeito com criança e hoje já aceita que eu não quero ser mãe. O problema mesmo é minha vó… Ela acha que daqui uns 10 anos vou mudar de ideia”.

 ‘São várias origens de pressão’

Segundo a Pesquisadora Raquel Zanatta, tem crescido o número de mulheres sem filhos, principalmente as de maior grau de escolaridade. “A maternidade não é mais ‘obrigatória’. A falta de filhos tem sido uma tendência e envolve questões que competem ao dia-a-dia, como carreira e a própria autonomia da mulher. Hoje, ninguém casa por funcionalidade e sim por querer, o que também reflete no controle de ter e quando ter filhos”, afirma.

Ainda assim, por que a pressão para engravidar é grande? Luiza acredita que existe uma ideia arcaica de que mulheres nasceram para ter filhos. A jovem confessa perceber um preconceito quando assume a decisão de não ser mãe e revela: “Já me senti reprimida”.

Carol Rossetti
Ilustração Carol Rosseti

Para Vanessa, a pressão vem de várias origens. Casada na Igreja e de orientação católica, à vezes ela sente viver um dilema. “Casei na igreja católica, sou religiosa e minha família também, então existe uma pressão voltada para a maternidade”.

“Vários amigos falam ‘aposto que vocês vão ser pais’, mas a gente não quer. Às vezes você não se dá conta de que está desejando algo que é indesejável para a outra pessoa”, conta a moça que compartilha com o marido a vontade de não ter filhos.

Embora decidida, Vanessa confessa que as pressões dão margens para a dúvida. “Nem eu nem meu marido queremos filhos e isso é bem claro para nós, mas essas imposições mexem comigo. Essa pressão faz com que, às vezes, eu não tenha tanta certeza”.

O instinto biológico e a perspectiva falocêntrica

Doutor em Psicologia Social pela USP (Universidade de São Paulo), Claúdio Paixão afirma que o instinto materno é algo essencialmente cultural e não uma predisposição natural feminina. “Ser mãe é uma possibilidade, não um imperativo biológico. A sociedade atribui à mulher o papel natural da maternidade, no entanto, esses ‘instintos’ reprodutivos são vivenciados por conta de comando culturais”, categoriza.

Essa cultura que leva a crer em uma predisposição natural de ser mãe é, segundo o estudioso, vinda de uma perspectiva falocêntrica da criação feminina. “A mulher é catequizada durante toda a vida para exercer a função materna, tanto em relação às crianças quanto em relação aos homens.  Há uma criação com viés masculino que leva a mulher a desenvolver esse instinto de cuidado e uma falsa necessidade que é preciso ser mãe para se sentir completa”, pondera Paixão.

Cláudio Paixão

Cedo para pensar em ser mãe X A corrida contra o relógio

“A recusa em ter filhos não é apenas um tabu, mas uma atitude suspeita”, sugere o best-seller Sem Filhos – 40 Razões para Você não Ter, da psicanalista suíça Corinnne Mai. A abdicação da maternidade, de fato, gera olhares desconfiados e a idade é, quase sempre, um fator considerado no imaginário alheio. “Eu sempre escuto que sou nova demais, que ainda não sei o que quero. ‘Daqui há uns 10 anos você vai querer ser mãe’ é o que eu mais ouço”, dispara Isabela.

Ela, já com 20 anos, sabe que não quer a maternidade para si. No entanto, a sua decisão é sempre desacreditada. Isabela conta ainda que o fato de ser jovem é até visto como um impedimento por ginecologistas no momento de receitar métodos anticoncepcionais. “Conheço casos de médicos que não receitaram anticoncepcional ou negaram o DIU [Dispositivo Intra-Uterino] em garotas mais jovens”, comenta.

Do outro lado, porém, mulheres acima dos 30 enfrentam a pressão do relógio biológico. Ainda segundo o psicólogo Cláudio Paixão, a imposição da maternidade com o avanço da idade é também advindo da cultural e afeta as escolhas individuais. “A mulher tem que seguir um ciclo de casar e ter filhos e, quando vai envelhecendo, a pressão intensifica. É uma sensação de que ‘o prazo está vencendo’ e isso, muitas vezes, acaba levando a uma procura da maternidade sem desejá-la de fato. Porém, ser mãe quando não se quer pode ser uma experiência desastrosa”, afirma o doutor.

Tirinha (Sarah Andersen)
5 anos: “Eu não gosto de bebê” “Quieta, querida”                       15 anos: “Eu só não quero ter filhos” “Você vai mudar de ideia” “Você é muito jovem e ingênua”                                               25 anos: “Ainda não quero filhos” “Crianças são um pequeno milagre”                                                                                 45 anos: “Seu relógio biológico está batendo” “Que pena!”          85 anos: “Você não se sente miserável e sozinha e triste e cheia de arrependimento?” “Não, cala a boca” (Sarah Andersen)

‘Procuro pessoas que também não queiram ter filhos’

Pryscilla compartilhou durante 16 anos com o ex-marido a vontade de não deixar descendentes. “A gente preferia viver a vida juntos, fazer nossas coisas sem a interferência de uma criança”, conta. Hoje, solteira, ela espera dividir o mesmo sentimento nos futuros relacionamentos. “Eu procuro quem não queira ter filhos, acho que assim pode dar mais certo. Eu realmente não quero, então não tenho como me relacionar com alguém que tenha esse desejo”.

Isabela nunca se relacionou, mas no alto dos seus 20 anos acredita que precisa ter essa questão em pauta. “Se as pessoas quiserem coisas diferentes, fica complicado. Acho que isso pode acabar um relacionamento”, explica.

Para ilustrar, ela traz um exemplo atual: um casal de uma famosa série. “Em Grey’s Anatomy, tem a Yang e o Owen que são um casal. Ela não quer ser mãe, mas ele morre de vontade de ser pai. Chega em um ponto que eles precisam se separar por conta disso. Na vida real é como na série: uma questão bem complicada. Tenho que levar isso em consideração no futuro”, completa a jovem.

‘Vivam sem pressão’

A população brasileira é composta por 51,4% de mulheres, segundo dados do IBGE, e, em um universo tão grande, Isabela, Luiza, Vanessa e Pryscilla não são exemplos restritos. Diversas outras mulheres compartilham do mesmo desejo e vão na contramão do que é imposto – ainda que de forma velada – a todo momento. Prova disso é o movimento chamado “childfree” (livres de criança, em tradução livre), que mobiliza e reúne dezenas de mulheres que não desejam ser mães.

“Sempre existiram mulheres que não querem ser mães, é um mito dizer que não. No entanto, as mulheres hoje podem ter mais controle sobre o seu corpo e sobre sua decisão reprodutiva”, comenta a pesquisadora Raquel Zanatta. “Tem mulheres que sempre quiseram ter filhos, já outras que são completas sem eles”, finaliza.

De acordo com Pryscilla, não tem mais porque existir tabus em nenhum dos sentidos. Para ela, a sociedade apenas aprendeu a seguir um “modos operandi” e perpetua isso ao longo do tempo. Mas, para as tantas mulheres, ela deixa um recado: “Vivam sem pressão. Cada um faz o que quer da sua vida e ninguém tem que ter filhos apenas para seguir uma ‘tradição’. A gente só precisa fazer o que nós faz feliz”.

Letícia Almeida

Letícia Almeida é redatora no Portal Bhaz