Guarda de BH cede a própria casa, vence jornada de trabalho e ensina taekwondo (e valores) a 120 jovens

Amanda Dias/BHAZ

“Eu era um cara brigão, não sabia me comportar em algumas situações. No taekwondo, temos os cinco princípios, ou cinco espíritos: a cortesia, a integridade, perseverança, autocontrole e espírito indomável. Era tudo o que eu não tinha”. O forte – e inspirador – relato é de um dos 120 alunos de um projeto social criado e sustentado por um guarda municipal de BH, que cedeu a própria residência para montar a sede da iniciativa.

Fundado em 2005, o Projeto Itamar leva aulas de taekwondo e, ainda mais importante, valores a dezenas de crianças e adolescentes do Aglomerado da Serra. O criador, Itamar José da Silva, é faixa preta da arte marcial e se desdobra entre os turnos do trabalho, protegendo a capital mineira, e as lições aos alunos. “Através do taekwondo, quero transformar as crianças da favela em adultos de bem, e isso dinheiro nenhum paga”.


O BHAZ conversou com Itamar em uma laje, na parte de cima da casa. A vista impressiona, tanto pela beleza, quanto pelo contraste. De um lado as residências de alto padrão e, do outro, a favela. No local, será mais uma parte do projeto, que não tem nenhuma ajuda, nem do poder público ou do privado (para ajudar, clique aqui). Tudo é mantido com o dinheiro do guarda municipal e de sua mulher, Laudilene Fernanda Benevides.

Além do Aglomerado da Serra, Itamar também dá aulas no Alto Vera Cruz e no Granja de Freitas, em locais emprestados. “Comecei a dar aulas em uma praça do Aglomerado da Serra, e minha ideia sempre foi implantar o taekwondo na favela. Sabemos que é um esporte caro, e maioria das pessoas daqui não poderiam praticá-lo”, explica Itamar.

Itamar e Laudilene com a família (Amanda Dias/BHAZ)

Casa vira sede do projeto

“Eu era divorciado e morava com a minha filha, mas ela casou e foi morar em São Paulo. Aí fiquei sozinho em casa. Nesse meio tempo eu conheci a Fernanda, e fomos morar juntos na casa dela. Com isso, em 2016, saí da minha casa e decidi criar a sede do projeto lá, derrubei as paredes internas e mexi na estrutura”, continua o guarda municipal.

Antes e depois da fachada do Projeto Itamar (Arquivo pessoal + Amanda Dias/BHAZ)

Além de ceder a própria residência, o guarda banca outros gastos, ao lado da esposa Laudilene, contando apenas com a boa vontade de terceiros. “Temos ajuda de alguns voluntários do projeto, amigos. Nós não cobramos nada, mas às vezes os pais doam alguma quantia. Pedimos uma contribuição voluntária, para quem puder ajudar. Assim a gente vai levando”, explica a mulher.

As atividades ocorrem duas vezes por semana, e no fim de semana. “As aulas são dadas de acordo com a escala de trabalho do Itamar. Aí tem semana que as aulas são terça e quinta, outras são segunda e quarta. Nos sábados são fora da sede, nos outros dois locais que temos emprestados. Ele [Itamar] sai às 7h e só chega em casa de novo às 16h”, conta Laudilene.

Além do taekwondo, o projeto ainda oferece acesso gratuito a internet e computadores para qualquer pessoa e tem uma biblioteca ao ar livre, em um muro. “As pessoas podem ir, pegar qualquer livro e levar para casa. Não temos um controle do que entra ou sai, acreditamos na honestidade de todos. Até hoje tem dado muito certo”, explica Itamar.

Itamar treina com alunos do projeto (Amanda Dias/BHAZ)

Esporte transforma

Itamar afirma que a base do taekwondo é a disciplina. “Quando a criança começa a praticar a modalidade, ela melhora na escola com os professores, em casa com os pais e nos relacionamentos de uma forma geral. Não é só ganhar medalhas, ser campeão, isso é só uma desculpa. Por ser um esporte de disciplina, a criança começa a entender o valor do respeito com os mais velhos, professores”.

Os alunos do projeto já possuem centenas de medalhas e troféus. “Temos campeões da Copa América, Mineiro, Nacional. Mas tudo isso não deixa de ser uma desculpa para conduzir os meninos para ser tornarem cidadãos de bem. Através do taekwondo, quero transformar as crianças da favela em adultos de bem, e isso dinheiro nenhum paga”, completa Itamar.

A equipe do Projeto Itamar foi campeã mineira de 2018 (Arquivo pessoal)

O jovem Filipe Rodrigues Teixeira, de 19 anos, conheceu o projeto através de um amigo. Ele é campeão da Copa da América 2018, bronze no Campeonato Brasileiro 2018 e Campeão Mineirão 2019. “É meu quarto ano aqui. Vim como se fosse uma brincadeira, mas estou aqui até hoje”, comenta o atleta.

“Eu era um cara brigão, não sabia me comportar em algumas situações. No taekwondo, temos os cinco princípios, ou cinco espíritos. São eles: a cortesia, a integridade, perseverança, autocontrole e espírito indomável. Era tudo o que eu não tinha, e isso mudou a minha vida para melhor, graças a Deus”, completa Filipe.

Andreza Neves da Silva tem 16 anos e também conheceu o projeto por uma amiga. A adolescente é Campeã da Copa América 2019 e Campeã Mineira 2018. “Um dos meus motivadores foi o Filipe, vendo os treinamentos dele, me inspirei. Entrei junto com ele, mas ele estava em um nível mais avançado, então me inspirava muito nele”, comenta.

“O Itamar e a Laudilene são as pessoas que mais me inspiram, que mais me ajudaram quando precisei. O projeto ajudou a ter uma boa convivência com a minha família, melhorou meu comportamento na escola também, já que eu era uma pessoa muito agressiva. Comecei a tirar boas notas, mudei mesmo, me conhecendo de verdade”, completa Andreza.

Doações

Tudo é custeado pelo próprio Itamar e doações de pais de alunos, além de outras pessoas. Com isso, para conseguir dinheiro para a reforma da casa, despesas com contas e viagens para competições, o casal decidiu criar uma vaquinha online, e qualquer valor é bem-vindo.

O sonho é ampliar o local, para atender ainda mais alunos. “Ampliaremos também o número de computadores. Temos a intenção de abrir outras oficinas como defesa pessoal para mulheres, violão, balé, jiu-jitsu, muay thai, danças e reforço escolar”, explica Laudilene. As doações podem ser feitas por aqui.

Vitor Fernandes[email protected]

Sub-editor, no BHAZ desde fevereiro de 2017. Jornalista graduado pela PUC Minas, com experiência em redações de veículos de comunicação. Trabalhou na gestão de redes do interior da Rede Minas e na parte esportiva do Portal UOL. Com reportagens vencedoras nos prêmios CDL (2018, 2019, 2020 e 2022), Sindibel (2019), Sebrae (2021) e Claudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados (2021).