Repensar o espaço urbano e democratizar o acesso à arte são alguns dos pilares do Circuito Urbano de Arte, o Cura, que chega na sua reta final neste domingo (3), em Belo Horizonte. Desde a última quinta-feira (24), o público confere, na Praça Raul Soares, carinhosamente apelidada de ‘Raulzona’, uma programação variada, com exibições de filmes, sessões de slackline, apresentações de DJs e, até mesmo, uma instalação interativa. E não podemos esquecer, claro, do grande trunfo do festival: as pinturas nas empenas dos prédios altos da cidade, que colorem o cinza da paisagem urbana e impressionam os passantes.
Na sua 10ª edição, o Cura trouxe pela primeira vez uma programação exclusivamente composta por artistas mulheres, sendo que as empenas ficaram sob a responsabilidade das artistas visuais Dona Liça Pataxoop, Clara Valente e Bahati Simoens. Ao serem questionadas pelo BHAZ sobre o sentimento de estar produzindo obras artísticas em uma escala tão grande, a resposta foi unânime. Além do ‘frio na barriga’, todas afirmaram que estão honradas em compartilhar suas tradições e trajetórias com o público belo-horizontino.
A curadoria desta edição foi composta pelas artistas Flaviana Lasan, Janaína Macruz, Juliana Flores e Priscila Amoni. Mais detalhes do festival podem ser conferidos no site do evento.
‘Filha da Terra, irmã da natureza’
A educadora e liderança da aldeia indígena Muã Mimatxi, Dona Liça Pataxoop, escolheu o Hãm Kuna’ã xeka (O Grande Tempo das Águas) para colorir a fachada do Edifício Leblon, no entorno da praça. Segundo ela, a obra aborda o tempo de renovação, onde o povo Pataxoop faz um grande ritual para celebrar a vida e agradecer, com oferendas à mãe terra: sementes, frutas, o que dá alimento.
Para representar esse tempo, a artista usou a metodologia dos tehêys, que originalmente é um instrumento de pesca usado especialmente por mulheres e crianças. Símbolo dos Pataxoop, os tehêys são como redes, armadilhas tecidas com corda de tucum e cipó. Quando se ‘terreia’, a água abaixa e ficam os peixes, que servirão de alimento. O nome da técnica batizou o método de ensino praticado nas escolas das aldeias e é uma forma da artista guardar e preservar a história do seu povo.
“É o tehêy da pescaria e do conhecimento. A partir dele, mostro a minha cultura e forma de vida. O nosso carinho, respeito, modo de viver e, claro, da relação entre o povo Pataxoop e a natureza. A mãe Terra e o sagrado também estão ali e, por isso, fico muito alegre e fortalecida”, contou a artista ao BHAZ, que decidiu, com o povo da comunidade em que está inserida, o desenho exposto no Cura.
Pensando nisso, Dona Liça oferece à capital mineira uma pesca de conhecimento e a possibilidade de repensar um futuro mais sustentável. “Na pintura, será possível ver as plantas, animais, árvores, sementes, frutas. Tudo aquilo que traz alegria, saúde e é muito importante para o povo Pataxoop”, explicou. Para ela, a mensagem que fica é a necessidade de estimular a consciência de preservação e sustentabilidade.
“Sempre digo que sou filha da Terra e irmã da natureza. É onde eu busco minha força e minha cura. Por isso, esse trabalho mostra a importância de conservar a mãe Terra, as matas, os rios. Cuidar mais, né? Quero incentivar nossas crianças e jovens para que um dia eles possam tomar conta dela também”, finalizou.
Representatividade
Foi também baseada nas tradições que Bahati Simoens trouxe a obra ‘Você não pode chorar se estiver rindo’, parte da série ‘Papai nunca chegou com flores’, para cobrir a fachada do Edifício D’Ávila. Nascida em Munanira (Burandi, 1992) e filha de pai belga e mãe congolesa, a artista, neste trabalho, remete não apenas uma citação de Sonia Sanchez, mas também os ensinamentos de sua infância. “A minha mãe sempre me disse que eu deveria continuar sorrindo e ver o lado positivo das coisas”, explicou.
Bahati cresceu em Oostende, na costa da Bélgica e há três anos mora em Joanesburgo, na África do Sul. As férias em família, as memórias e histórias de sua mãe estão refletidas na sua obra, que apresenta figuras grandes e sem rostos, formas arredondadas, com braços, barrigas e coxas carnudas, cabeça bem pequena e corpos negros. Na 10ª edição do Cura, ela pintará uma senhora negra com um peixe na cabeça. “O peixe simboliza abundância e esperança”, disse ao BHAZ.
Em relação à imagem, ela se diz curiosa com o diálogo da sua obra, que reflete suas origens africana e europeia, com o contexto brasileiro. “Como uma mulher preta, nascida no continente africano e que hoje mora em Joanesburgo, enxergo que estar aqui já é uma forma de representatividade. Por isso, eu pinto mulheres pretas e trago comigo a diáspora, algo que também aconteceu no Brasil devido à escravidão. Então, espero que as mulheres que eu pinto possam ser uma forma de espelho para outras que vão se ver nas minhas obras”, explica.
Ao ser questionada sobre a importância de participar de uma edição que oferece protagonismo a mulheres, Bahati afirma estar “honrada”. “É uma atitude que traz muita força, já que, mesmo atualmente, muitas artistas mulheres não têm o reconhecimento que elas merecem, especialmente mulheres negras. É uma afirmação muito potente e necessária, dando destaque para artistas da cena”.
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— BHAZ (@portal_bhaz) November 1, 2024
‘Frio na barriga’ e orgulho
A artista Clara Valente, que vai fazer sua primeira empena nesta edição, também ressaltou a importância de trazer artistas mulheres para o foco do festival. “A maioria dos projetos artísticos são idealizados ou formados por uma grande quantidade de homens e poucas mulheres. Então, acho que tem lugar para todo mundo e, por isso, participar de um projeto como esse é muito legal. Somos três mulheres lindas, né?”, afirmou.
Formada em pintura e desenho pela Escola Guignard, a artista aplicará no desenho, desenvolvido para o Cura, uma pesquisa, feita por ela, em torno das nascentes e das encostas das serras e montanhas de Minas Gerais. “A partir desse estudo, tenho um trabalho artístico que mostra a flora desses lugares. Até porque as nossas nascentes estão acabando”, disse Clara ao BHAZ.
A artista, ainda, vai desenhar a maior fachada cega em área já pintada no Brasil, e contou que, apesar do ‘frio na barriga’, ela se sente muito orgulhosa. “Fazer um trabalho dessa magnitude é um desafio muito grande. Mas, pensar também que, como mulher artista e de BH, é uma alegria enorme, não só para mim, mas para os meus filhos e todo mundo da capital. Espero que todos gostem do meu trabalho, porque levar ele para o centro, que é lugar de comunhão na cidade, é muito gostoso”
Devido às chuvas em BH na semana passada, o cronograma para pintar a empena da artista foi adiado e, por isso, Clara começou a fazer as marcações do trabalho apenas nessa quarta-feira (30).
Programação segue até domingo
Apesar de estar na reta final, o Cura continua com a programação neste fim de semana. Além de sessões de slackline, o público vai poder contemplar a paisagem urbana e curtir uma boa música. Vale lembrar que o festival também conta com atrações infantis, como a instalação concebida pela arquiteta Bel Brant, ‘Brincacidade’, que propõe um espaço de brincadeira na ‘Raulzona’.
Confira o que vai rolar:
01/11, sexta-feira | 18h às 22h
DJs:
- Bruna Castro (18h às 20h)
- Fê Linz (20h às 22h)
02/11, sábado | 14h às 20h
- Slackline (Highline Urbano) e DJs:
- Carol Blois (14h às 17h)
- Camis (17h às 20h)
Encerramento – 03/11, domingo | 14h às 20h
- Slackline (Highline Urbano) e DJs:
- Sandri (14h às 17h)
- Kingdom (17h às 20h)
Então se liga!
Cura 2024
Local: Praça Raul Soares
Data: 24 de outubro e 3 de novembro