Proposta aceita e negócio fechado. O contato, até então feito por e-mail, era regado de profissionalismo e respeito. No dia do encontro, no entanto, toda igualdade transformou-se em dúvida: ‘Mulher? Negra? Empresária?’. Dandara Elias precisou mostrar seu currículo, com cursos, graduações e credenciais para que pudesse ser vista, de fato, como empreendedora que é. A mineira faz parte da população que busca no afroempreendedorismo o protagonismo dos negros no mundo dos negócios.
Um intercâmbio à África do Sul, há cinco anos, trouxe a Dandara uma nova perspectiva a respeito dos problemas raciais existentes no Brasil. O preconceito, antes naturalizado, se transfigurou em força materializada na criação do grupo empresarial ‘Todo Black É Power’. A mensagem carregada pelo nome do grupo é repassada pelas ações da empresa, que busca demonstrar que todo preto tem poder com todos os seus valores e crenças naturais.
“Todas as nossas ações culminam para nos ajudar a compreender a mensagem do ‘todo black é power’. Hoje nosso grupo empresarial, que engloba o salão de beleza, o único afro shop do país e uma escola de empreendedorismo, tem a missão de emancipar a população negra com base no empoderamento estético, cultural e econômico. Porque a gente entende que dinheiro é poder, então é necessário que os negros tenham poder nesse país. E se é o dinheiro que vai dar poder, a gente vai atrás dele”, afirma Dandara em entrevista ao BHAZ.
Sufocados também com o sentimento de não pertencimento em uma sociedade racista, José Lucas Ramalho, Warley Barros e Fernando Rodrigues, fizeram da indignação um propósito: construir o primeiro afro pub da capital mineira. O Back to Black – Afro Pub foi criado e ressalta a importância do afroempreendedorismo. Além disso, também enaltece e resgata em suas cores, cardápio e música a negritude e ancestralidade.
“A back é um lugar para que você venha e se sinta bem e se sinta aceito. Aqui você não vai receber os olhares que nós pessoas negras estamos acostumados a receber durante toda nossa vida em alguns espaços que dizem que você não os pertence”, garante José Lucas Ramalho, sócio-fundador do Back to Black.
Os três sócios ainda ressaltam a coragem exigida para a criação de um espaço que exalta a cultura afro, em meio ao racismo cotidiano. “Foi exigido coragem de nós mesmos, para abrir um espaço para exaltar as pessoas e para exaltar a cultura negra, porque poderíamos ter aberto um pub normal, mas quisemos abrir o afro pub, nós optamos por afrontar e mostrar o quão belo é a nossa cultura. A frase ‘back to black’ vem da referência de resgatar a negritude e o que a gente tem de melhor da nossa raiz”, afirma o sócio-fundador Fernando Rodrigues.
Quem o seu dinheiro empodera?
Surrealidade é o sentimento de Warley, José Lucas e Fernando diante do empreendedorismo negro. A explicação para tamanho choque está estampada em dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Uma pequisa realizada entre 2016 e 2018 mostra a desigualdade na distribuição de cargos gerenciais entre brancos e negros: somente 29,9% das posições eram desempenhadas por pessoas pretas ou pardas.
“É muito surreal ver esse empreendedorismo negro acontecendo, porque esse é um projeto de quase dois anos, e nós já passamos por outros lugares e a gente nem pensava em ser empreendedor. Eu sempre tive que ser o melhor em todas as minhas profissões, não bastava ser bom, eu tinha que ser o melhor. Então estar aqui e ver tudo acontecendo, empregando as pessoas e fazendo esse dinheiro rodar entre pessoas negras é uma satisfação muito grande. Gostinho que a gente está chegando lá, juntos”, diz Warley, um dos sócios-fundadores ao BHAZ.
O afroempreendedorismo apresenta uma nova visão para quem enxerga pessoas negras como marginalizadas e incapazes. Segundo o presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Gilberto Silva, o racismo estrutural e institucional se enfraquece com o crescimento de negros ocupando todos os setores, como os empresariais.
“Ele é importante sobretudo na questão de empoderamento das pessoas negras que são marginalizadas pela sociedade e sempre colocadas em subempregos. Então reafirmar a presença das pessoas negras em todos os setores empresariais da sociedade é importante para a busca dessa igualdade racial tão perdida no Brasil”, diz Gilberto em entrevista ao BHAZ.
Reafirmando a origem do afroempreendedorismo, Dandara, diretora do Todo Black É Power, destaca também a importância da circulação do dinheiro entre a comunidade negra. “Quando teve a abolição da escravatura, ficamos sem emprego, sem comida, sem nada. Então a gente só sobreviveu por ser extremamente empreendedor, e ser empreendedor é criar solução para um problema que está ali. Então nós somos frutos dessa resistência, desse empreendedorismo”, diz.
O sócio-fundador da Back to Black, Warley Barros, traz também em sua fala a importância de ocupar tal lugar. “Temos que compreender cada vez mais que nosso povo é muito forte, muito lutador e são essas as características de um empresário. Pra você ser empresario hoje no Brasil, você tem que ser ser guerreiro e isso é a primícia do movimento. Então está mais do que na hora de tomar os lugares que são pra gente mesmo”, afirma.
O Movimento Black Money caracteriza essa inserção e autonomia da comunidade negra no mercado empreendedor. Um de seus pilares traz o trabalho de disseminação da filosofia de descrença dos poderes e intenção do Estado no sentido de justiça e equiparação racial. Além disso, promove a promoção do associativismo entre empreendedores negros e comunidade negra a fim de fortalecer o afro consumismo.
“É necessário pensar em quem seu dinheiro empodera, então é necessário fazer com que o dinheiro circule mais entre pessoas negras. Um dólar circula um mês na comunidade chinesa, 1 dólar circula uma semana na comunidade judaica, e 1 dólar só circula um dia na comunidade negra. Então é muito importante que a gente aprenda a gerir nosso dinheiro e compre coisas que nos representem, não só no produto mas em toda estratégia que esta por trás”, finaliza Dandara.
Em busca de mais espaço
Embora parte da população negra tenha encontrado no afroempreendedorismo uma forma de enfrentar o racismo, a lacuna ainda é presente na vida da maioria da população negra. Ainda segundo dados do IBGE, em pesquisa realizada entre 2016 e 2018, a população preta ou parda representava 64,2% dos desocupados e 66,1% dos subutilizados. A desigualdade persistia mesmo quando considerado o recorte por nível de instrução.
Curadora do FAN (Festival de Artes Negras), Rosália Diogo considera o evento um movimento de luta que resiste ao completar 24 anos. Mas diz que ainda existe uma qualificação muito maior a ser alcançada. “Ainda existe um racismo institucional muito grande e encontramos ele em todos os locais que transitamos e essa é uma barreira que temos que ultrapassar através de qualificações de políticas públicas”, afirma ao BHAZ.
“Os desafios são cotidianos e poucos conseguiram ultrapassar o sistema estruturado em cima do racismo. Este racismo institucional faz com que você encontre a maioria de pessoas negras em cargos de subalternização.
A gente pode mais, a problemática está no preconceito que é limitador por exemplo na hora de fazer um investimento financeiro. A hierarquia de cargos ainda é muito grande e disfarçada pelo discurso de meritocracia. Como pode ser meritocracia se as condições não são iguais?”, diz Rosália.
No cenário de enfrentamento do racismo institucional, em BH, há a atuação efetiva da unidade de Políticas para a Igualdade Racial, ligada à Secretaria Municipal de Assistência Social, Segurança Alimentar e Cidadania. Segundo Makota Kisandembu, diretora da unidade, foi criado um programa amplo de capacitação de servidores públicos para direcioná-los a executarem um atendimento de qualidade e livre de preconceitos.
“Desde então existe um retorno da população sobre a melhora do atendimento. A ideia é finalizar o programa entregando pros servidores um material orientador com bastante conteúdo para que essa luta perpetue e se infiltre cada vez mais na sociedade”, diz Makota em entrevista ao BHAZ.