É difícil encontrar alguém que caminha pelas ruas de Belo Horizonte e ainda não tenha visto o rosto de um menino palhaço pintado pelos muros da cidade. A imagem gera diferentes interpretações e deixa a dúvida: qual a história por trás dessa criança com expressão séria e traços de comediante? O artista mineiro Nilo Zack é o criador da figura. Morador do Taquaril, na Zona Leste de BH, ele começou a colorir as ruas sem imaginar que se tornaria uma referência no grafite da capital mineira. Contudo, ainda que haja diversas leituras sobre o seu trabalho, uma coisa é certa: o desenho não passa despercebido pelos olhos de quem vê.
Nilo César Sampaio de Lima tem 29 anos e há nove se dedica unicamente à arte visual. Antes disso, o grafite era apenas seu hobby enquanto fazer pizzas garantia a sua renda. Formado em cinema de animação e artes digitais pela UFMG, o artista também cursou cinema em Portugal. Hoje, fazer tatuagens em amigos tornou-se seu hobby e o grafite o carro-chefe da sua atuação no mercado artístico.
Por esse motivo, devido à exploração de mais de uma arte, Zack acredita que ser chamado de grafiteiro limita sua atuação. “Acho que ser rotulado como grafiteiro te taxa como se só fizesse grafite. A questão da arte visual é até mais ampla que as artes plásticas, porque as artes clássicas vão da escultura, gravura, pintura e, por exemplo, a tatuagem não entra, o cinema não entra, a animação não entra. Então hoje eu me considero artista visual por esses fatores“.
Assista à entrevista:
A pichação como porta de entrada
Zack começou a desenhar com quatro anos de idade porque o pai era pintor letrista. Encantado pelo trabalho do pai, que fazia tipografias complexas, aos 13 anos ele encontrou na pichação uma forma de se expressar da mesma maneira. “Só depois eu descobri que a pichação se enquadrava como vandalismo que então eu migrei da pichação para o grafite“.
O artista afirma que, apesar de ser mais bem visto, o grafite atua nos dois âmbitos, no legal e no ilegal, mas que infelizmente o que define se vai ser punido ou não é a questão estética. “A galera brinca comigo, mas é uma brincadeira bem séria, falando que eu sou beneficiado porque faço uma coisa que todo mundo gosta. Quem não gosta de uma criança? Quem não gosta daquele rosto inocente?”
Por esse emotivo, Zack conta que muitos grafiteiros que não têm a mesma linguagem visual em seus trabalhos enfrentam dificuldades para conseguir um espaço para pintar e que, às vezes, chegam a ser reprimidos quando estão pintando. Até mesmo na faculdade, ele conta que os professores costumam dizer que grafite não era arte. “Mas eu percebo que a maioria dos movimentos artísticos surgiram de rupturas“.
O artista também destaca que o fato do grafite ser considerado arte, e a pichação não, é uma das maiores discussões no meio. E, devido ao envolvimento com a pichação, quando adolescente, Zack teve inclusive problemas com a polícia. Juntando isso ao fato de ter perdido diversos amigos para o crime, o artista acredita que a arte foi a melhor coisa que aconteceu para ele.
“Não faço ideia se hoje eu estaria como alguns desses meus amigos de infância, se estaria morto, preso ou alguma coisa do tipo. Se não fosse o grafite, eu não sei que seria da minha vida“.
Referência para a comunidade
O grafite é um elemento de resistência e também de expansão cultural. Em ambientes que normalmente a arte não prevalece, por falta de acesso ou incentivo, o grafite abre um leque de possibilidades para a inserção ao mundo da arte. Zack conta que muitos que têm o primeiro contato com a pintura artística nas ruas acabam sendo instigados a buscá-la em outros ambientes, como em museus. “Além de ser uma arte gratuita eu acredito que o grafite pode atuar diretamente na formação pessoal“.
Nascido e criado no Taquaril, Zack não esconde seu amor pelo lugar que se tornou o seu grande ateliê a céu aberto. O menino palhaço se transformou hoje no cartão de visita do bairro. Quem caminha por lá pode visualizar uma arte a cada esquina. “Aqui é o meu foco“. Isso graças aos moradores que abraçaram a iniciativa. “Eu sinto que o pessoal compra muito essa ideia do grafite, às vezes não compra mais por questão de recurso“.
Segundo Zack, desde que começou a pintar os muros da comunidade, os moradores resolveram comprar a ideia e também buscaram formas de ajudá-lo, contribuindo com o que que estava ao alcance, como o café da manhã ou o almoço, e outros cedendo andaimes para facilitar as pinturas. “Gosto de falar que eu moro no Taquaril porque tudo o que eu construi, construi aqui“.
O artista vive hoje dos painéis que pinta em seu ateliê localizado na comunidade. Apesar de nos últimos anos ter reduzido sua atuação nas ruas por sentir uma grande desvalorização do governo em relação à arte comunitária, o artista vislumbra deixar um legado que vá além dos muros. Zack pretende começar um recrutamento de jovens da comunidade para capacitá-los e montar uma equipe que possa prosseguir com o seu trabalho.
A expansão do menino palhaço
O menino palhaço surgiu de forma espontânea. Zack conta que o primeiro garoto pintado representa seu sobrinho “emprestado” – filho do ex-namorado da sua irmã. Segundo o artista, em determinada época, o menino foi morar com sua família e a alegria da criança funcionou como um ímã para uni-los. A explicação é que, apesar de morar na mesma casa, a família vivia distante. “Todas as crianças que você ver com cara de palhaço, elas têm algum vínculo afetivo comigo ou com minha família”.
Nilo resolveu pintar os dois primeiros para aprimorar as técnicas de pintura a óleo que estava tentando reproduzir com o spray. “Aí as pessoas começaram a pedir pra fazer o palhaço em seus muros“. Posteriormente, Nilo começou a pesquisar sobre palhaços e descobriu que haviam dois tipos: O Augustus, palhaço dos pobres, e o Klaus, servidor da burguesia.
“O palhaço Augustus é o palhaço dos pobres, a maquiagem dele é pobre, então ele só tem o nariz vermelho, a boca vermelha e as vestes são bem pobres, ele normalmente é o palhaço que critica o governo. Enquanto o Klaus é todo pomposo, tem maquiagens bonitas e serve a burguesia, o Augustus tende a criticar o governo“.
Acabou que, após iniciar as pinturas, Nilo percebeu que a interpretação do menino palhaço tinha relação com a ideia do palhaço Augustus. “Eu não fiz isso pensado, mas quando eu percebi que o meu trabalho tinha esse diálogo com o palhaço Augustus eu comecei a incorporar. E, de tanto escutar a interpretação de outras pessoas, eu comecei a induzir interpretações“.
Entre as diversas leituras, já houve quem visualizasse um pierrot apaixonado, outros um índio e também aqueles que se sentiam mal ao ver a pintura por não gostarem de palhaços. “Mas o mais legal é que, por ser uma forma humana e ser um palhaço tão ambíguo, tem várias e várias interpretações”
Para Nilo Zack, a arte urbana é uma realidade imortal. “Acredito que o grafite na rua vai seguir para sempre”.