Homenagens espalhadas por BH entregam passado de violência e viram alvo de PL antirracista; veja lista

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Especialistas, movimentos sociais e, agora, projetos de lei questionam homenagens a figuras que simbolizam o racismo na história do país (FOTO ILUSTRATIVA: Amanda Dias/BHAZ)

O incêndio na estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, é apenas um dos muitos episódios do tipo que tomaram o mundo nos últimos anos. A revolta contra figuras que personificam violações de direitos de comunidades não-brancas reacendeu vários alertas e inspirou pautas na política institucional: atualmente, dois projetos tramitam na ALMG (Assembleia Legislativa de Minas Gerais) e na Câmara dos Deputados para proibir homenagens, em nível local e nacional, a figuras emblemáticas do passado colonial do Brasil.

Caso aprovados, os projetos, além de promoverem uma importante reparação com os povos historicamente vitimados por essas figuras, também vão ajudar a conscientizar o resto da população. Não é raro ouvir um endereço, passar por uma praça ou visitar um monumento a céu aberto em uma cidade histórica e não saber quem são as pessoas por trás dos nomes. A propostas buscam justamente identificá-los – e responsabilizar aqueles que tiveram participação direta no genocídio de populações indígenas e negras, por exemplo.

E Belo Horizonte não fica de fora do debate. Andando pelas ruas da capital, é possível identificar dezenas de nomes de políticos, artistas e religiosos em praças, viadutos e colégios. Outras personalidades, materializadas em pedra ou concreto, observam a expansão urbana da cidade há mais de 100 anos. Em um levantamento feito pelo BHAZ, foram identificadas várias figuras que nomeiam pontos bastante conhecidos da cidade e que, ainda que não tenham promovido genocídios, também não tiveram um passado tão heroico como se imagina (veja abaixo).

Avanço na luta antirracista

Em Minas Gerais, o debate a respeito das homenagens é impulsionado pelas deputadas estaduais Ana Paula Siqueira (Rede), Leninha (PT) e Andréia de Jesus (PSOL) – coautoras do PL (projeto de lei) 2.129/2020, que tramita em primeiro turno na ALMG. Se aprovada, a medida prevê a proibição de homenagens a pessoas que tenham contribuído com o período escravocrata brasileiro ou a pessoas participantes do chamado movimento eugenista brasileiro.

Ao BHAZ, o historiador Raul Lanari explica que essa corrente de pensamento defendia que as raças humanas teriam origens diferentes. “Na visão desses racialistas, a raça branca teria uma maior capacidade de civilização, ao contrário de outras raças, como os negros africanos, indígenas e asiáticos. Aqui no Brasil, essas teorias foram muito incorporadas por cientistas a partir da década de 1870”, conta.

Para deputadas e de dezenas de pesquisadores que estudam uma visão pós-colonialista da história, alguns desses nomes, responsáveis pelo sofrimento de milhares de pessoas negras e povos originários, estão longe de merecerem aplausos. Se o projeto for aprovado, ficarão proibidas em Minas as “homenagens por meio da utilização de expressão, figura, desenho ou qualquer outro sinal relacionados à escravidão ou a pessoas notoriamente participantes do movimento eugenista brasileiro por pessoas físicas e pessoas jurídicas de direito público ou privado”.

‘Não são heróis’

A proposta é tida por diversos especialistas como um avanço na luta antirracista, conforme pontua o advogado e presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB Minas (Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Minas Gerais), Gilberto Silva.

“O projeto tem uma importância no sentido de mostrar a realidade da sociedade e lembrar que essas pessoas não são nem heróis, nem heroínas. Na verdade, elas são pessoas que prejudicaram de forma gigantesca o processo de abolição da escravidão e também a percepção de pessoas pretas e pessoas escravizadas ao longo da história”, ressalta, em conversa com o BHAZ.

Vestígios da violência em BH

Em Belo Horizonte, as homenagens a esse tipo de figura histórica são raras, mas ainda aparecem em pontos famosos da capital, que já fazem parte do cotidiano dos belo-horizontinos. Um levantamento feito pelo BHAZ aponta que, dos 146 monumentos e esculturas catalogados pela Belotur (Empresa Municipal de Turismo), nenhum dos homenageados teve participação direta em movimentos genocidas. Os números, no entanto, não esgotam os problemas históricos.

Segundo Raul Lanari, alguns nomes bastante presentes no cotidiano belo-horizontino devem, sim, ser olhados com um olhar mais crítico. Com a ajuda do especialista, o BHAZ listou cinco personalidades históricas que nomeiam pontos bastante conhecidos de Belo Horizonte e que sustentam um passado, no mínimo, controverso. Confira:

1. Rodovia Fernão Dias: Território indígena

Rodovia Fernão Dias, que liga Minas ao Espírito Santo (Reprodução/Google Street View)

Se você mora em BH ou na região metropolitana, certamente já ficou preso no trânsito da rodovia Fernão Dias, também conhecida como BR-381, que liga Minas ao Espírito Santo, ou “rodovia da morte”. E o caminho que hoje tira a paciência de diversos motoristas, um dia pertenceu a povos indígenas, cujas terras foram desbravadas pelo bandeirante que dá nome à rodovia.

Raul Lanari explica que Fernão Dias Paes era integrante do bandeirantismo, movimento que aconteceu durante o período colonial brasileiro e que marcou a busca por ouro e aprisionamento de escravos e povos indígenas. Outro membro dessa expedição foi Borba Gato, filho de Fernão Dias, que esteve no centro de discussões no último mês desde que uma estátua que o homenageia foi incendiada por manifestantes na Zona Sul de São Paulo.

“Ele viveu durante quase todo o século XVII e foi um sertanista, integrou entradas e bandeiras que levaram ao aprisionamento de índios, época em que práticas como essas eram comuns. Por isso, as expedições de Fernão Dias não raro cometeram violências contra povos indígenas”, conta o historiador.

A BR-381 recebe o nome de Fernão Dias no trecho que une as regiões metropolitanas de Belo Horizonte e São Paulo. Na capital mineira, um monumento localizado na Praça Rio Branco, próximo à rodoviária, também homenageia o sertanista. De acordo com Raul Lanari, manifestações como essas são questionadas há anos pelos povos originários.

“O Fernão Dias, no papel desse bandeirante, acaba sendo questionado como monumento justamente por aqueles que sofreram as violências do bandeirantismo, especialmente os povos indígenas. Então essas populações, não raro, associam as lutas contra essas memórias traumáticas”, explica.

2. Av. Cristóvão Colombo (e o ‘fim do mundo’ na América)

Av. Cristóvão Colombo, localizada na Savassi (Amanda Dias/BHAZ)

Outra avenida bastante conhecida pelos belo-horizontinos é a Cristóvão Colombo, caminho certo para quem vai até a região da Savassi. Partindo da Avenida do Contorno, a via interliga dois pontos importantes da cidade: as praças da Liberdade e a Diogo de Vasconcelos.

Um dos personagens mais conhecidos da nossa história, o homenageado da vez é tido como o grande descobridor das américas. E enquanto a figura de Colombo, eternizada na Zona Centro-Sul de BH, é tratada como a imagem de um dos grandes heróis da nossa história, povos originários o têm como o homem que promoveu a destruição.

“Ele é uma figura muito reverenciada pelas histórias oficiais. Nós aprendemos na escola que Cristóvão Colombo foi o grande ícone que inaugurou a era moderna nas américas, mas esse é um enquadramento que vem de uma visão eurocêntrica. Quando a gente muda o quadro e inverte para uma visão vinda do continente americano, Cristóvão Colombo foi um conquistador que exerceu, por meio da violência, a desagregação da cultura desses povos”, explica Raul Lanari.

“Cristóvão Colombo representa o início do processo de colonização das américas. Então, os indígenas brasileiros assim como os povos indígenas de toda a América Latina têm ele como um símbolo abominável. Pensadores falam que a chegada de pessoas como Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral significaram o fim do mundo para esses povos”, acrescenta o historiador.

3. Elevado Castelo Branco

Atual Elevado Helena Greco, localizado no bairro Carlos Prates (Reprodução/Google Street View)

Personagem de um período histórico mais recente, o general Castelo Branco foi o primeiro presidente brasileiro na época da Ditadura Militar iniciada em 1964. Dados da organização internacional Human Rights Watch revelam que pelo menos 20 mil pessoas foram torturadas no Brasil durante esse período, que durou até 1985. Outras 434 pessoas foram mortas ou seguem desaparecidas, de acordo com números oficiais.

E embora o militar tenha sido um dos principais incentivadores dessa era tão obscura da nossa história, seu nome esteve mais de 40 anos atribuído a um conhecido viaduto em Belo Horizonte, localizado na avenida Bias Fortes, no bairro Carlos Prates.

“O general Humberto Castelo Branco foi um dos principais personagens da construção da doutrina de segurança nacional, que sustentou todas as práticas mais abjetas praticadas pelos militares ao longo do seu governo no Brasil. Então, ainda que ele tenha sido considerado por muito tempo um militar meio intelectual, moderado, ele não foi moderado. Ele contribuiu para a consolidação e instalação de uma ditadura militar no Brasil e elaborou uma doutrina militar que justificou a prática de torturas que vitimaram pessoas e famílias”, relembra o professor Lanari.

Reparação histórica

Após um longo período de debates, em 2014 um Projeto de Lei que pediu a troca do nome do viaduto para o da professora Helena Greco foi aprovado pela Câmara Municipal de Belo Horizonte. Desde 2012, o elevado estava sem nome após o decreto que o nominava, de 1971, ser revogado.

Além de educadora, Helena Greco foi uma das primeiras vereadoras de Belo Horizonte e uma das figuras mais importantes da resistência mineira contra a Ditadura Militar. Para Raul Lanari, essa substituição foi significativa para a história de Belo Horizonte.

“O que aconteceu foi uma ação de reenquadramento da memória que eu acho muito importante para a nossa sociedade. O nome do general Humberto Castelo Branco não foi substituído por um outro nome, digamos, ‘qualquer’, foi substituído pelo nome de uma integrante da resistência da ditadura militar e que, depois desse período, ainda esteve engajada na luta pelo direito à memória”, explica Raul.

4. Estádio Governador Magalhães Pinto (sim, o Mineirão)

Estádio Governador Magalhães Pinto, localizado na Pampulha (Amanda Dias/BHAZ)

Testemunha de vários momentos de glória de Cruzeiro e Atlético, e até mesmo do pior vexame já vivenciado pela Seleção Brasileira até hoje, o Mineirão também carrega o nome de uma figura importante do período ditatorial no Brasil. É isso mesmo: Magalhães Pinto, que nomeia o maior palco do futebol mineiro, também fez parte da articulação militar em 1964.

Com uma longa carreira na política, o ex-Governador de Minas também foi Secretário de Finanças do Governo de Minas Gerais, Ministro das Relações Exteriores, Deputado federal e Senador. Na visão de Lanari, acima de tudo, Magalhães Pinto foi um “personagem importante de um momento lamentável da nossa história”.

“Ele [Magalhães Pinto] foi um político da UDN (União Democrática Nacional) de Minas Gerais que participou das articulações que levaram ao golpe civil militar de 64. Então, a homenagem ao Magalhães Pinto não deixa de ser investida de certa controvérsia, porque ele foi alguém que participou da conspiração que levou ao golpe de 64. Essa é uma homenagem que eu, como historiador, criticaria”, pontua o professor.

5. Praça Duque de Caxias

Praça Duque de Caxias, localizada no bairro Santa Tereza (PBH/Divulgação)

Quem tem o costume de passear pelo bairro Santa Tereza, na região Leste de BH, com certeza já parou para contemplar a beleza da Praça Duque de Caxias. A Igreja de Santa Teresa e Santa Teresinha, que compõe a paisagem do local, chegou até a ser tombada no último dia 25 como patrimônio cultural do município de Belo Horizonte.

O nome do espaço público, no entanto, homenageia uma figura que esteve à frente de grandes massacres no período imperial. Luís Alves de Lima e Silva, que posteriormente viria a se tornar o Duque de Caxias, foi um monarquista e patrono do exército, apelidado pela história como “O Pacificador”. Para conquistar esse título, no entanto, o professor Raul conta que foram cometidos muitos atos de barbárie.

“Primeiramente, ele era um escravocrata. Ele era um determinista, no sentido de que ele acreditava que as raças inferiores deveriam desaparecer e serem dizimadas. E durante o período regencial, especialmente na balaiada, no Maranhão, ele participou do massacre à cidade de Caxias, que foi tomada pelos balaios que se insurgiam contra o governo central do Império. Foi por essa e outras ‘façanhas’ que ele acabou se tornando o Duque de Caxias”, explica o professor.

Lanari conta, ainda, que muitos dos feitos militares na época foram marcados por extrema brutalidade com relação às populações locais. “São inúmeros casos de estupro, de queima de residências, de mortes à revelia. O chamado ‘massacre de Porongos’, no Rio Grande do Sul, acabou na morte de mais de uma centena escravos negros aos quais havia sido prometida a liberdade caso eles se engajassem ao lado dos Farroupilhas”, conta.

Lutas se espalham pelo país

Assim como os listados acima, várias outras estátuas, praças, avenidas e monumentos se espalham pelo país carregando nomes que, ainda que banais para muitos, simbolizam dor e sofrimento para a maioria da população brasileira. Por isso, a tentativa de minar essas homenagens também alcançou nível federal e chegou à Câmara dos Deputados por meio do PL 5296/2020.

De autoria da deputada mineira Áurea Carolina (PSOL), em parceria com Talíria Petrone (PSOL/RJ) e Orlando Silva (PCdoB/SP), a proposição visa proibir “homenagens a proprietários de escravos, traficantes de escravos, pensadores que defenderam e legitimaram a escravidão em monumentos públicos, estátuas, totens, praças e bustos ou qualquer outro tipo de monumento”.

A ideia é seguir o exemplo de outros países e rever os quase 200 monumentos que homenageiam personalidades racistas da história do Brasil e, além disso, substitui-los por novos nomes que celebrem a pluralidade do povo brasileiro e representem todas as comunidades. Caso aprovado, o projeto prevê que esses nomes sejam selecionados de forma democrática, com respeito à paridade de gênero – ou seja, alternando homenagens a homens e mulheres.

Disputa de narrativas

De acordo com o doutor em Relações Internacionais e Pós-colonialismo, Rafael Bittencourt, esse olhar questionador sobre algumas das figuras que marcaram a história brasileira é recente. Ele foi intensificado a partir de referências de outros países e começam a propor um processo de “descolonização” das instituições educacionais.

“Na África do Sul e, posteriormente, no Reino Unido, aconteceu um movimento por volta de 2015 que pedia a derrubada das estátuas de Cecil Rhodes, figura do colonialismo britânico. Eu lembro que na época parecia uma coisa ainda muito distante do Brasil. Mas quando a gente tem esse movimento mais recente do Black Lives Matter conseguindo repercutir muito nos movimentos aqui no Brasil de vertentes antifascista, percebi que esse movimento começou a acontecer aqui também”, explica ao BHAZ.

Na visão do especialista, muitos dos nomes questionados atualmente se mantêm representados em um lugar de heroísmo em função do interesse de camadas sociais dominantes. “Se a gente olha para a política brasileira atual, fica muito claro que existem pessoas que defendem essas ideias. Não se trata simplesmente de desinformação, se trata de uma disputa de narrativas”, pontua.

“Por um lado, você tem pessoas que defendem uma visão hierárquica da humanidade, enquanto, por outro lado, você tem pessoas que questionam e que cobram que devemos valorizar narrativas que evidenciam a igualdade entre nós e não aquelas que reforçam como alguns estiveram acima dos outros na história”, explica Rafael.

Revisar não significa apagar

O objetivo do olhar crítico aos personagens aqui citados, conforme explica Raul Lanari, não é seu apagamento da história brasileira. Para ele, é preciso que se tornem conhecidas as violências que essas pessoas cometeram para que seja possível elaborar formas alternativas de olhar para esses traumas históricos.

“Não sei até que ponto essas avenidas vão desaparecer, mas é importante que ao lado de avenidas Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral, por exemplo, figurem também avenidas, praças e outros equipamentos públicos com nomes significativos para essas outras comunidades que formaram a cultura brasileira. Como, por exemplo, Luis Gama e José do Patrocínio, importantes nomes da resistência negra, ou mesmo Cacique Raoni e vários outros indígenas que marcaram nossa história”, enfatiza o professor.

Edição: Giovanna Fávero
Larissa Reis[email protected]

Graduada em jornalismo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e repórter do BHAZ desde 2021. Vencedora do 13° Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão, idealizado pelo Instituto Vladimir Herzog. Também participou de reportagem premiada pela CDL/BH em 2022.

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