Guarda segue trabalhando nas ruas mais de um ano após matar comerciante

Caso briga gcm Antonio Ramos e familia
Antonio foi morto após uma briga de trânsito por um guarda municipal em fevereiro de 2019 (Arquivo Pessoal)

Por Caê Vasconcelos, da Ponte Jornalismo

Há 541 dias, a comerciante Mirele Pinheiro de Souza, 23 anos, precisou reinventar sua vida. Ela resume o dia 3 de fevereiro de 2019, em que tudo mudou, como “o pior dia” de sua vida.

Foi naquele começo de noite, às 19h, que seu marido Antonio Ramos Paiva Ferreira, 29 anos, foi morto com três tiros pelo guarda municipal Vagner Alves de Santana, na Praia Grande, litoral sul paulista. Agora, um ano e cinco meses depois, a Justiça paulista aceitou a denúncia contra o guarda mas negou o pedido de prisão preventiva (de caráter provisório tem duração de 180 dias podendo ser prorrogável e é usada durante a investigação ou antes da sentença). O GCM continua trabalhando nas ruas.

“Nem nos meus piores sonhos eu poderia imaginar que aquilo poderia acontecer comigo. Uma pessoa que está nas ruas para nos defender tirou a vida do meu marido”, lamenta Mirele.

Além de solto, segundo Mirele, “ele anda armado e zombando da situação. Quando ele é questionado se estava afastado, ele responde que não, que passou um tempo fora por ter cancelado um CPF. Ele cancelou o CPF de um trabalhador, de um pai de família”.

Mirele e Antonio tinha conquistado há pouco um dos sonhos do casal: ter o próprio negócio. Construíram e tocavam juntos um restaurante, que também era pizzaria. Eles trabalhavam de segunda-feira a sábado. Aos domingos descansavam.

Como de costume, naquele domingo de fevereiro, decidiram curtir o descanso na praia, passeio favorito do único filho, que na época tinha menos de dois anos de vida. Na volta para a casa, uma briga de trânsito mudou tudo.

Por volta das 18h30, o casal estava de bicicleta, Mirele levava o filho na cadeirinha e Antonio vinha logo atrás, quando um carro fez uma curva fechada na ciclovia e bateu na bicicleta no viaduto 5, na avenida Ministro Marcos Freire.

“Ele [o motorista] ia embora sem nem pedir desculpas ou perguntar se estávamos bem”, disse Mirele em entrevista à Ponte. “Meu marido ficou muito revoltado com essa situação, muito indignado porque o nosso filho estava na cadeirinha da bicicleta onde ele bateu, então o mínimo era o cara ter parado e perguntado se tinha machucado”.

Antonio, conta Mirele, pediu para o motorista parar o carro. Também foi o comerciante que deu sinal para que a viatura da Guarda Civil Municipal parasse para auxiliar no acidente. “Os guardas pararam a viatura em uma distância de uns 5 metros do local onde estávamos e desceu somente um GCM”.

Antonio Ramos Paiva
Antonio foi morto com três tiros pelo GCM Vagner (Arquivo Pessoal)

O guarda que desceu da viatura é Christian Nunes de Moraes, que na delegacia foi ouvido como testemunha. Vagner, autor dos disparos que tiraram a vida de Antonio, permaneceu na viatura.

“O GCM [Christian] veio até a gente e o meu marido perguntou se onde a gente estava não era ciclovia, o guarda disse que sim, então meu marido falou que estava certo, porque o cara do carro quis dizer que a gente estava errado. Esse guarda falou que sim, que meu marido estava certo”.

Mirele continua contando o que viu naquele começo de noite. “Foi nesse momento que o Vagner desceu da viatura, sem entender o que estava acontecendo, sem entender o motivo do questionamento do meu marido. Vagner, então, acenou para o motorista ir embora”.

Indignado, Antonio perguntou ao GCM Vagner se eles não iriam fazer nada com o motorista, já que ele quem havia batido na bicicleta. Foi nesse momento que a discussão entre o comerciante e o guarda começou. Como resposta, afirma Mirele, o guarda falou “Cala boca, seu bosta”, recebendo como resposta de Antonio: “Bosta é você”.

“O Vagner falou que o meu marido estava desacatando ele. Meu marido respondeu que ele quem desacatou primeiro. Eles começaram uma discussão verbal, não houve agressão física em nenhum momento”, relembra a esposa.

“O colega de trabalho do Vagner puxou ele para a viatura, mas quando eles estavam indo embora o guarda disse ‘esse cara é folgado… você sabe como eu sou’. Daí quando iam entrando na viatura, o Vagner voltou e colocou spray de pimenta na cara do meu marido e efetuou três disparos. Ele não teve chance de se defender e morreu ali na hora”.

Na Delegacia de Polícia de Praia Grande, três horas depois, o caso foi registrado como homicídio simples e legítima defesa pelo delegado Alex Mendonça do Nascimento. Como testemunhas do caso, o delegado ouviu apenas os GCMs Vagner e Christian, um estudante de 16 anos e o motorista que se envolveu no acidente. Mirele não foi ouvida.

Segundo a versão narrada na delegacia, os guardas afirmam que se depararam com uma discussão de um ciclista sem camiseta e bermuda (Antônio) e um motorista. Na descrição dos GCMs, a discussão começou porque Antonio acusava o motorista de “tê-lo fechado no viaduto”.

Os dois guardas teriam verificado que não havia lesões nem danos em ambos os homens e orientaram que os dois seguissem os seus caminhos. Ainda no registro, os GCMs alegaram que o motorista teria agradecido e ido embora, mas “o ciclista estava muito alterado” e “permaneceu no local transferindo sua indignação para os guardas municipais”.

Os guardas contaram que Antonio começou a xingá-los e ofendê-los, por isso decidiram voltar para a viatura. Em determinado momento, Antonio tentou agredir Vagner “tentando tirá-lo de dentro da viatura”. O guarda contou que “devido o porte físico do ciclista ser mais forte” usou spray de pimenta contra ele. Após isso, tentou voltar para a viatura, mas Antonio teria puxado a sua camisa e dado dois socos no guarda. Foi neste momento, na versão dos guardas, que Vagner efetuou os disparos.

Para o delegado Alex Mendonça do Nascimento, o caso deveria ser tratado como morte decorrente de intervenção policial: “Diante do temor pela vida causado pelo injusta agressão, que mesmo após terem efetuado ordens verbais que não foram atendidas e mesmo após terem desembarcado da viatura sem qualquer ofensa em ao indivíduo, como alternativa não lhes restou senão usar os meios necessários que tinham cada qual à sua disposição para repeli-la”.

A esposa contesta a versão dada pelos guardas. “Ele tinha todas as formas de conter o meu marido, poderia ter atirado na perna, algemá-lo, feito qualquer coisa”, relembra Mirele.

“Ele não atirou para se defender, meu marido estava somente de bermuda, sem camisa e portava apenas uma carteira no bolso. O que uma pessoa assim vai oferecer de perigo para dois guardas armados? Ele não oferecia nenhum risco”, aponta.

Para Mirele, o sentimento que fica é o de impotência. “É muita indignação saber que uma pessoa mata a outra na crueldade, que tirou a vida do meu marido porque ele quis. Ele atirou na intenção de matar”.

Em 6 de fevereiro de 2019, o delegado Sergio Lemos Nassur instaurou o inquérito policial para apurar o caso. Seis dias depois, em 19 de fevereiro, Nassur solicitou que Mirele fosse ouvida e indicasse testemunhas.

Mirele contou na delegacia que, ainda na madrugada de segunda-feira, em 4 de fevereiro de 2019, tentou prestar queixa, mas foi informada de que o caso já havia sido registrado, sendo orientada a ir para o IML (Instituto Médico-Legal) de Santos. Na tarde do mesmo dia, retornou insistindo para fazer um B.O., narrando a sua versão dos fatos, mas não foi ouvida pela segunda vez.

O depoimento da esposa foi colhido apenas em 6 de março de 2019. Mirele informou que, pouco antes dos disparos, atravessou a rua enquanto o marido foi buscar a bicicleta, que ficou encostada no viaduto. Foi quando ouviu dois disparos de arma de fogo. Enquanto ela virava, ouviu o terceiro tiro. Antonio caiu de costas no chão.

Uma mulher que passava por ali emprestou o celular para Mirele acionar a ambulância e ela não voltou para o local onde o marido caiu para proteger o filho de ver a cena. Antes de deixar o local para levar o filho para casa e voltar, ouviu das pessoas: “ele já está morto”.

Apesar da demora de chamar Mirele e as outras testemunhas, aponta o advogado Rui Elizeu de Matos Pereira, que auxilia a família de Antonio, rapidamente a Polícia Civil anexou ao inquérito um boletim de ocorrência registrado por Mirele contra Antonio, em setembro de 2018, em que Mirele relata que foi agredida com dois tapas e um puxão de cabelo pelo marido após uma discussão no restaurante onde tocavam juntos.

“Essa questão desse registro é totalmente impertinente ao fato ocorrido. Em vez de eles procurarem a verdade, procurando testemunhas, pegando as imagens das câmeras de segurança, eles procuraram defender o GCM. Os caras se preocuparam em salvar a pele do assassino”, aponta Rui.

As testemunhas, todas protegidas no inquérito policial, começaram a ser ouvidas na delegacia em 8 de fevereiro de 2019. A primeira testemunha confirmou a versão dos GCMs, que Antonio estava alterado e ofendia o guarda, que estava calmo. A testemunha afirmou que o senhor que discutia com os guardas aparentava ter 50 ou 60 anos e era branco, mas Antonio tinha 29 anos e era negro.

As demais testemunhas, também protegidas, não confirmaram a versão dos GCMs. Uma delas, ouvida em 12 de abril de 2019, afirmou que Antonio xingou os guardas e estava alterado, mas disse que depois do spray de pimenta os guardas voltaram para dentro da viatura e saíram manobrando o carro, enquanto Antonio ficou limpando os olhos.

A testemunha alegou que “não dava para ouvir o que o guarda dizia”, mas que Antonio teria batido com a mão no para-lama da viatura, o que fez o guarda Vagner descer do veículo. A testemunha afirmou que estava olhando o celular esperando o motorista por aplicativo quando ouviu os disparos.

Outra testemunha, ouvida no mesmo dia, afirmou que mora perto do local, viu até o momento do spray de pimenta e só saiu de casa depois dos disparos. Segundo as pessoas que ali estavam, afirmou a testemunha, “o GCM havia atirado no rapaz na covardia”. A testemunha também apontou que não ouviu qualquer pessoa dizer que houve luta corporal ou que o rapaz morto teria tentando agredir o guarda.

A quarta testemunha, ouvida em 4 de setembro de 2019, disse que estava em um bar a cerca de 70 metros do local e viu a discussão. Tanto Vagner quanto Antonio, contou, estavam nervosos enquanto discutiam, mas não dava para ouvir o que diziam, apesar de “parecer” que estavam se xingando. Depois do gás de pimenta, narrou a testemunha, o outro guarda levou Vagner para viatura. Segundos depois, Antonio que esfregava os olhos por conta do spray de pimenta, pegou a bicicleta para ir embora, mas teria falado algo para o GCM que ele não gostou.

Na sequência, continuou a testemunha, o guarda desceu da viatura e foi na direção de Antonio, que também largou a bicicleta e foi na direção dele, mas “o GCM já desceu puxando a arma e atirando contra o rapaz”. A testemunha também afirmou que não houve briga e que Antonio não encostou no GCM.

Em 9 abril de 2020, a defesa da família de Antonio pediu que a denúncia fosse oferecida contra Vagner, afirmando que ele “está trabalhando normalmente, armado e uniformizado, como se nada tivesse acontecido”. O promotor Fabio Perez Fernandez, do Ministério Público de São Paulo, em 27 de abril, ofereceu a denúncia contra Vagner que foi acatada pelo juiz Antonio Carlos C. P. Martins, do Tribunal de Justiça de São Paulo, comarca de Praia Grande.

Três meses depois, em 22 de julho, a defesa pediu a prisão preventiva de Vagner, afirmando que duas testemunhas estão com medo de sofrer represálias no depoimento na Justiça. Tanto o MP quanto o TJ-SP informaram que não viam motivos para a prisão, já que “o réu é servidor público do Município de Praia Grande, possui residência fixa e não há notícia de tentativa de fuga do distrito da culpa”.

“Eles querem o que? Que alguém morra? Se fosse ao contrário, o cara já estaria preso. É um crime de repulsa social, um crime que mexeu com a Praia Grande. O cara continua solto e trabalhando normalmente”, lamentou Rui, advogado da família.

Outro lado

A reportagem questionou a Guarda Civil Metropolitana e a Prefeitura de Praia Grande sobre a morte de Antonio e solicitou entrevista com o GCM Vagner.

Em nota, a Prefeitura de Praia Grande informou “que o caso ainda está sendo apurado pela Corregedoria da corporação, órgão autônomo e independente”.

“A Corregedoria esclarece que não havia tomado conhecimento de supostas ameaças e que está à disposição para ouvir as supostas vítimas e incluir suas versões no relatório que deverá ser finalizado e entregue às autoridades que apuram o caso também em âmbito criminal”.

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