Mãe e avó de Miguel contraíram Covid-19 e nem assim foram dispensadas do trabalho; família pede justiça

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Miguel morreu enquanto a mãe, Mirtes, passeava com o cachorro da empregadora (Arquivo pessoal/Mirtes Renata)

Por Débora Britto e Maria Carolina Santos, da Marco Zero Conteúdo

O caso Miguel Otávio Santana da Silva, criança de cinco anos que caiu do 9º andar do condomínio de luxo conhecido como Torres Gêmeas, no Centro do Recife, na terça-feira (2), expõe as entranhas da violência que não dá um dia de sossego a famílias negras e, especialmente, mulheres e jovens negros.

A família de Miguel convivia com a família da patroa Sarí Gaspar Côrte Real, esposa do prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker, mas a distância que os separa – inclusive no acesso à justiça ou à impunidade – foi construída ao longo de séculos de exploração e desprezo por vidas negras. 

Não só a mãe de Miguel, a trabalhadora doméstica Mirtes Renata Souza, mas também a avó, Marta Santana, trabalhavam para a mesma família. As duas se demitiram depois de assistirem ao vídeo do circuito interno do prédio que mostra quando a criança entrou no elevador e foi deixada sozinha pela patroa da mãe.

Foi a mãe de Mirtes, dona Marta, quem primeiro começou a trabalhar na casa do prefeito de Tamandaré, em 2014. Há quatro anos, Mirtes também foi trabalhar lá. No dia da morte de Miguel,  ele havia dito que estava com saudades da mãe e que queria passar o dia com ela. Mirtes então levou ele para o trabalho, apesar de não ser um costume. “Minha tia não teve folga, nem quando teve coronavírus. Então Miguel estava sentindo muita falta da mãe. Ele era uma criança muito feliz, muito esperto, amável, sincero”, lembrou Amanda Souza, sobrinha de Mirtes, em entrevista à Marco Zero. Miguel era filho único e os pais haviam se separado há pouco tempo.

Família quer justiça

“Se fosse eu, meu rosto estaria estampado, como já vi vários casos na televisão. Meu nome estaria estampado e meu rosto estaria em todas as mídias. Mas o dela não pode estar na mídia, não pode ser divulgado”, disse Mirtes, em entrevista divulgada na TV Globo nesta quinta-feira (4).

Até o sepultamento de Miguel, Mirtes não havia visto as imagens que mostram a criança sozinha no elevador. O prefeito de Tamandaré Sérgio Hacker e a esposa dele, Sarí Gaspar Côrte Real, chegaram a ir ao velório da criança, mas foram expulsos.

“Minha tia ficou sem reação quando os viu, porque ela não sabia ainda que tinha sido aquela mulher quem assassinou o meu primo. Mas eu fiquei indignada quando a vi. Eu pedi para ela se retirar do velório e comecei a gritar para ela ir embora, minha mãe também gritou com ela. Ela e o marido foram embora correndo. Minha tia depois viu as imagens do elevador e mandou uma mensagem para nossa família dizendo que quer justiça. Foi aí que decidimos protestar. Vinte mil reais (preço da fiança de Sarí, acusada de homicídio culposo) não pagam a vida do meu primo. Se a assassina não fosse rica, não estaria em liberdade”, afirma Amanda.

É preciso lembrar que o trabalho doméstico não é essencial neste momento de pandemia. Mas duas trabalhadoras domésticas não tiveram direito a ficar em casa, mesmo em plena pandemia do coronavírus. Pelo relato de Mirtes, inclusive, quando ela teve Covid-19 voltou para o Recife com os patrões e sua mãe ficou na casa de praia tomando conta das crianças – Miguel e os filhos dos empregadores.

A negligência de Sarí Côrte Real com a vida de Miguel, um menino cheio de vitalidade e alegria, é o que resultou na morte da criança. Fatalidade é algo que não se pode evitar. Movimentos negros e organizações denunciam que o que aconteceu não foi um acidente e cobram justiça.

Trabalho expôs família à Covid-19

Uma outra sobrinha de Mirtes, Karina Souza, contou à Marco Zero que a mãe de Miguel contraiu o coronavírus com o patrão e continuou trabalhando no apartamento onde aconteceu o crime. “Pelo que conversei com a minha tia, quando ela estava ainda em isolamento, ela disse que tinha ido lá para Tamandaré com a mãe e o filho porque os patrões e os filhos dos patrões estavam indo para fugir do foco, que seria o Recife. E lá ela contraiu o vírus, com o patrão dela”, diz.

Com o diagnóstico da Covid-19, os patrões decidiram voltar para o Recife, e trouxeram Mirtes. “Mesmo doente ela continuou trabalhando no apartamento: lavando, cozinhando, fazendo os serviços domésticos que tinha para fazer. Só que ela teve acesso aos medicamentos e exames. Miguel ficou em Tamandaré com a mãe dela (mãe de Mirtes) e os filhos da patroa. Inclusive o que se sabe é que Miguel também pegou o vírus, mas foi assintomático”, conta Karina.

A mãe de Mirtes teria contraído também o vírus com a família do patrão em Tamandaré, e teve apenas sintomas leves.

Para Luiza Batista, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Pernambuco, o sentimento de que a morte de Miguel pode ficar impune reforça uma série de injustiças que ainda existem nas relações trabalhistas da categoria.

“Nós lamentamos o ocorrido e nos somamos a todos os grupos que pedem por justiça por Miguel, mas a gente vê que estamos vivendo um momento de impunidade no mundo. Qual será a próximo passo? Qual será a punição? Claramente foi um homicídio doloso. E se fosse o contrário?”, questiona.

O fato de Mirtes continuar trabalhando mesmo infectada pelo coronavírus é prova da injustiça social e do racismo, segundo Luiza. “Essas pessoas (os patrões de Mirtes) infelizmente são as que mais desrespeitam os direitos das trabalhadoras que são conquistados, são as que mais desrespeitam a lei por causa da impunidade. A trabalhadora deveria estar em casa”. Miguel teve a vida encerrada no dia em que a PEC das Domésticas completou 5 anos, legislação que garantiu o reconhecimento mínimo dos direitos das trabalhadoras domésticas.

Para a presidenta do sindicato, até a MP 936, Medida Provisória que permitiu a suspensão de contratos e redução de salários em função da pandemia, seria uma opção melhor para as empregadas domésticas neste momento do que receber o salário integral mas ter que trabalhar. Logo no início da pandemia, a Fenatrad fez uma campanha nacional para que trabalhadoras domésticas ficassem em casa e tivessem o emprego garantido. Luiza alerta também para o fato de trabalhadoras domésticas não terem com quem deixar seus filhos com escolas e creches fechadas.

Crítica à caracterização de ‘homicídio culposo’

Sarí Gaspar Côrte Real foi presa na terça-feira (2), mas pagou fiança de R$ 20 mil e responderá em liberdade pelo crime de homicídio culposo (quando não há intenção de matar). O entendimento da Polícia Civil foi divulgado numa coletiva de imprensa na quarta (3), pelo Delegado Ramon Teixeira.

Na mesma coletiva, no entanto, a Polícia admite que há imagens que comprovam que Sarí deixou a criança de apenas cinco anos entrar no elevador sozinha, chegando a apertar um botão de andar superior ao que estavam.

Tanto a família como organizações de advogados pedem a responsabilização da patroa, que tinha a responsabilidade da criança naquele momento.

Para a coordenadora do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP), Edna jatobá, existe responsabilidade ampliada que precisa ser cobrada também do Estado. A organização criou uma junta de advogados e está organizando como cobrar judicialmente outras ações que deem suporte a trabalhadoras como Mirtes.

“Precisamos pensar qual é o papel do Estado na proteção [dessa criança]. O serviço do trabalho doméstico não é essencial. Essas mulheres não têm condição de deixarem seus filhos em casa, no contexto de pandemia, e por esse contexto nem poderiam deixar os filhos na casa de outra pessoa por conta do isolamento, de perigo de contágio, mas Mirtes teve que levar o menino para o trabalho, quando nem é essencial”, explica.

Para Edna, é urgente cobrar por justiça e proteção para mulheres que são trabalhadoras domésticas. “A gente está falando de uma mulher que matou um menino. A gente tem que ser antipunitivista quando a gente está fazendo discussão sistêmica da população negra que é maioria dentro do sistema prisional e a gente pede por desencarceramento. Não é o caso. A gente tem que fazer a discussão do punitivista dentro da discussão do antirracismo. Esse é um caso caricato de um racismo estrutural e a gente vai ficar protegendo a patroa? O nome é justiça”, defende Edna.

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