Edição: Roberth Costa e Sinara Peixoto | Reportagem: Amanda Serrano, Andreza Miranda, Isabella Guasti, João Lages, Larissa Reis, Lucas Negrisoli, Roberth Costa e Thiago Cândido

Holdings, “commodities”, distribuição de lucros, inflação. O jargão financeiro pode levar qualquer um, quase que automaticamente, a pensar nos principais polos de negócios do Brasil, como a Faria Lima, em São Paulo, sede de algumas das maiores multinacionais que operam no país. Distante dali, no entanto, milhares de brasileiros desmistificam, todos os dias, a ideia de que para empreender, ou gerir o dinheiro, é essencial formação. Não, ela não é dispensável. Mas, na contramão de olhares estigmatizados, pessoas de diferentes realidades provam que, “no corre”, “se virar nos 30” com as finanças é, antes de tudo, pavimentar o caminho para que os que virão e os que estiveram antes deles – muitas vezes, por necessidade, sim, mas também pelo desejo de levar aos seus, e aos lugares de onde vieram, novas possibilidades e narrativas. Larissa, Marcelo, Rafaela e Miltinho representam bem tal realidade: deram o primeiro passo, “na marra” contra ciclos de vulnerabilidade, rumo ao letramento financeiro. Eles semeiam o amanhã, todos os dias, junto aos dispostos a trilharem a mesma estrada.

O BHAZ ouviu especialistas ligados à educação financeira no Brasil para desvendar por quais caminhos passam o aprendizado da gestão de finanças e os impactos dela na vida das pessoas. Ricardo Teixeira da FGV (Fundação Getúlio Vargas), Antônio Dias Pereira da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Wendell Aurélio Rodrigues Ferreira, do Sebrae-MG (Serviço Brasileiro de apoio às Micro e Pequenas Empresas), e a orientadora e influenciadora Nath Finanças reforçam que aprender educação financeira é, também, fortalecer a dignidade humana.

“Minha mãe cresceu sem dinheiro nenhum e quando ela teve algum, ela teve que aprender a lidar. Então ela teve a consciência de falar ‘vem cá meu filho, senta aí que você vai ser melhor do que eu nesse negócio pelo menos’”, explica Marcelo Bernardes, 37.

A fala diz respeito à preocupação de dona Bernardete em passar a ele os aprendizados para lidar com dinheiro a partir do pouco que tinha. Hoje, é gestor do Sebo do Gueto, iniciativa em Belo Horizonte de venda e troca de livros, que surgiu a partir da necessidade da esposa Evellem Oliveira em ajudar com as contas de casa.

Larissa Silva, 22, por sua vez, entendeu cedo que precisava prestar atenção no dinheiro, mesmo sem renda. Após revirar o Excel, levou os conhecimentos para dentro de casa e criou planilhas financeiras para ela e a mãe: as duas passaram a se planejar e viram o bem-estar da família se fortalecer.

Os caminhos de aprendizado de Larissa e Marcelo são inversos e denotam a premissa defendida pelo professor Ricardo Teixeira, coordenador do MBA em Gestão Financeira da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Segundo ele, não existe modelo ideal a ser seguido para se ensinar e aprender a educação financeira. No entanto, reforça que educar financeiramente a população é um desafio coletivo. “A sociedade precisa se mobilizar, através de ações governamentais, que são, sem dúvida nenhuma, grandes impulsionadoras de mudanças. Além disso, através de instituições públicas, federações, associações, sindicatos patronais, entre outros”, diz.

Esta foi a trajetória dos personagens que ilustram esta reportagem. Não aprenderam a lidar com as finanças sozinhos, mas tiveram iniciativa e foram impulsionados por pessoas e projetos que focam o desenvolvimento empreendedor e o letramento financeiro. E o Brasil conta com diversas delas, já que o país tem uma “nação empreendedora” formada por mais de 17 milhões de pessoas nos aglomerados, bem longe do esteriótipo dos “faria limers”. Segundo o Data Favela, a grande maioria dos adultos (76%) moradores de favelas brasileiras já teve, quer ter ou já tem um negócio. Como diria o rapper belo-horizontino Djonga, nascido e criado na periferia de BH, “pra nós ter autonomia, não compre corrente, abra um negócio”.

Dois lados, mesma moeda

O número de endividados no Brasil cresceu em agosto deste ano após duas quedas consecutivas. Ao todo, 77,4% das famílias do país seguem com dívidas a vencer em cartões de crédito – o principal vilão do endividamento -, cheque especial, carnês de lojas e por aí vai. O levantamento é da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), que ressalta ainda que apenas o endividamento não é sinônimo de problemas financeiros, a não ser que esteja atrelado à inadimplência – o não cumprimento de um compromisso financeiro. E por falar em não pagar as contas em dia, o Brasil tem 71,45 milhões de brasileiros em tal situação, o equivalente a cerca de 43,78% da população, segundo o Mapa da Inadimplência realizado pelo Serasa em 2023. É possível mudar essa realidade?

Especialistas ouvidos pela reportagem do BHAZ explicam que a situação brasileira é heterogênea, com dois cenários distintos: famílias que possuem recursos e podem ensinar aos filhos como administrar o dinheiro de forma mais eficiente e famílias com renda insuficiente para cobrir as despesas mensais.

Gráficos mostram número de inadimplêntes e o tempo de atraso das contas com dados do SPC Brasil
(Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas/Divulgação)

“Como dar educação financeira a pessoas que vivem na escassez? É preciso educá-las no sentido de que, se não mantiverem um controle dos gastos, dificilmente conseguirão melhorar sua situação”, diz Ricardo Teixeira. “Essas famílias precisam ensinar ainda mais entre os filhos não só como administrar a escassez que hoje existe, mas como também construir uma possibilidade de mudar de vida no futuro. Então a educação financeira é muito importante por esse motivo, principalmente para grande maioria das famílias brasileiras que não tem renda suficiente para fazer frente às suas necessidades, algumas delas nem a necessidade básica”, explica.

“É difícil você ensinar alguém a ser comedido nas despesas quando as despesas já superam naturalmente os ganhos. Então não dá para a gente culpar A, B ou C ou culpar governo A ou governo B por não ter feito alguma coisa no passado e também por não estar eventualmente fazendo hoje”, analisa o especialista. “Então não adianta dizer ‘não gaste’ para quem já está gastando o mínimo do mínimo para sobreviver porque é o que tem em mãos”, afirma.

Empreendedorismo: transformando talentos em renda

Como, então, gerar renda diante de um cenário pouco favorável para se pensar no futuro? O empreendedorismo é apontado como uma das soluções para que famílias mais vulneráveis consigam mudar suas vidas. E a falta de conhecimentos técnicos não necesseriamente é um impeditivo, já que os conceitos de educação financeira são universais, aplicando-se a qualquer pessoa, independentemente de sua renda.

“Em qualquer condição, seja em situação de vulnerabilidade, com menor fluxo de dinheiro, menor ou maior riqueza, as técnicas, as ferramentas e a lógica do dinheiro é a mesma. Se você tem o objetivo de acumular riquezas, de formar um patrimônio, realizar os sonhos, o caminho é o mesmo. A diferença vai ser a quantidade de dinheiro que você vai poder poupar e também os objetivos que você vai estabelecer, tendo em vista a sua renda e suas condições”, diz Antônio Dias Pereira.

Foi de olho em conseguir juntar dinheiro para custear valores relacionados à faculdade que a trancista Rafaela Xavier deu o primeiro passo rumo ao empreendedorismo e ao letramento financeiro. “Eu venho de uma família que a gente sempre morou em região periférica. Nunca faltou nada, mas a gente não tinha condições de ter muitos luxos. E aí chegou nessa fase da idade que eu precisava gerar uma renda para ajudar em casa, para cobrir as despesas da universidade mesmo. E aí eu vi na possibilidade de trançar uma forma de fazer essa renda inicial”, conta a também historiadora, formada pela UFMG.

Mentora de trancistas, Rafa Xavier criou negócio para ter renda enquanto estudava
(Reprodução/@braidsrafa/Instagram)

Rafaela, então, procurou um curso de trancista e de modelos para treinar as tranças. Uma cadeira, um espelho e o sofá da casa da avó dela foram os suportes iniciais usados pela jovem. Tudo muito simples. “Eu não tinha nada para começar. Tudo que eu tinha era uma cadeira na sala da minha avó, um espelho, que era o espelho do banheiro que a cliente tinha que ficar levantando, e eu usava o sofá da sala da minha avó como um apoio para colocar as coisas e tudo mais”, recorda ela.

De 2018 para 2019, Rafa viveu o que chama de “virada de chave” ao identificar vivências comuns a mulheres negras enquanto as trançava e passou a estudar o assunto na universidade. Motivada pelo desejo de compartilhar as descobertas, levou os conhecimentos para a web. Hoje, conta com mais de 100 mil seguidores nas redes sociais. E esses números não são apenas números; eles representam uma comunidade formada por meninas e mulheres negras se interessando pelo universo das tranças e pela trajetória da empreendedora.

Casa Nagô, gerenciada por Rafa, tem equipe de trancistas e atende noivas negras
(Reprodução/@braidsrafa/Instagram)

“A gente começou a fazer algumas turminhas, eu lembro que a primeira turma tinha 12 alunas e eu achei que foi ‘uau, o máximo!’. Aí depois a outra teve tipo 18, depois 20…”. Na pandemia de Covid-19, ela passou a ministrar os cursos digitalmente e viu o número de alunas saltar de 200 para 2 mil. Nessa espiral de crescimento, aprender noções de gestão financeira e finanças pessoais foram fundamentais.

Segundo um estudo do Sebrae, divulgado em março de 2023, o número de mulheres empreendedoras não para de crescer no Brasil. O percentual de empreendedoras em relação ao total de negócios chegou a 34,4% em 2022, uma marca histórica: Rafaela faz parte das 10,3 milhões de mulheres donas de seus próprios negócios. A pesquisa ainda revela que Minas Gerais tem a maior proporção de donas de negócios empregadoras do país. Enquanto a média nacional é de 13%, no território mineiro 18% das empreendedoras contratam mão de obra.

“É uma coisa que eu sempre bato muito na tecla com as minhas alunas, porque essa formação não vem de forma intuitiva. É um estudo, a gente precisa se preparar se capacitar para a gente entender como gerenciar, como cuida de um financeiro, fazer gestão de clientes”, diz. “De lá para cá, eu não parei de estudar. Fui investindo em outras formações, de gestão de empresas, gestão de pessoas. Eu era muito nova no mercado, mas eu consegui me destacar muito rápido, porque eu tinha essa consciência de que olhar para essa parte administrativa era tão importante quanto eu ser uma excelente trancista”, pontua.

“Acho que é por isso que a gente conseguiu entregar um diferencial para esse nicho. Porque existiam muitos cursos de técnica de tranças, mas ninguém estava falando sobre gestão financeira com essas pessoas. Então eu cheguei preenchendo um pouquinho dessa lacuna”, diz a jovem que participou de um projeto de aceleração de negócios da Afrohub, voltada para pessoas negras.

Rafa gerencia a Casa Nagô, um salão com equipe de trancistas que também oferece serviços especializados para noivas negras. O negócio é a materialização do empoderamento financeiro de Rafaela, que segue compartilhando com suas semelhantes. “É importante que a gente entenda esse empoderamento financeiro como um processo político, de reafirmação de que essas mulheres também podem ser boas gestoras, que elas também podem ser proprietárias, que elas também podem construir a sua reserva e a sua estabilidade financeira”, diz.

‘Dividir para multiplicar’

Assim como Rafaela, Larissa Silva também divide os conhecimentos que adquiriu em educação financeira. Ela passou a organizar a vida financeira quando ainda não tinha renda. Dentro de casa, levou os aprendizados para a mãe. Moradora de Esmeraldas, município na região metropolitana de Belo Horizonte, a jovem criou uma planilha de Excel para auxiliá-la a controlar melhor a renda.

“Mesmo que na época eu ainda não tivesse meu próprio dinheiro, eu sabia que queria fazer uma planilha financeira para mim. Nisso de aprender a mexer no Excel, eu mesma fui mexendo aos poucos e montei uma de gastos. Tudo que ganhava e que queria comprar era detalhado lá. Desde essa época isso me ajuda bastante, nunca preciso me preocupar de no fim do mês não ter nada, pois já fiz esse planejamento”, disse a estudante. Ainda no segundo ano do ensino médio, ela foi contemplada por um programa da ONG Junior Achievement Minas Gerais que estimulava os participantes a criarem uma “miniempresa”.

Larissa estuda arquitetura na UFMG e entendeu a importância da educação financeira desde cedo
(Lucas Negrisoli/BHAZ)

“Eu aprendi a me organizar e isso reflete muito na vida financeira, tanto em aprender a consumir quanto a tomar decisões sobre investimentos. Durante o JA a gente teve que vender nosso produto e vender nossas ações, acaba que aprendemos a dar valor ao dinheiro na ‘marra’, porque na minha cabeça era muito fácil simplesmente fazer um produto e vender, mas não, tem precificação, tem lucro, custo da produção, muita coisa mesmo. E isso me fez aprender a dar valor ao meu próprio dinheiro, não colocar preço no trabalho alheio e saber principalmente a me organizar quanto aos gastos”, acrescentou ela, que se tornou estudante de arquitetura e urbanismo na UFMG – o que é motivo de orgulho para a jovem.

Agora, a universitária dá palestras pelo JA a crianças e adolescentes das periferias de Belo Horizonte e região. Ela conta que o objetivo é estimular que elas busquem conhecimento através de iniciativas gratuitas para que também possam ter suas vidas transformadas pelo conhecimento.

“O que o aluno aprende em sala de aula, ele vai aplicar dentro de casa, repassar para os familiares. Dessa forma, eles começam a ter uma organização financeira melhor, um projeto de vida e uma estrutura de qualidade para aquela família” explica o analista do Sebrae Wendell Aurélio Rodrigues Ferreira, gestor do programa Educação Empreendedora.

Já Nath Finanças, que foca seus conteúdos para o público de baixa renda, destaca o papel crescente da tecnologia na gestão das finanças pessoais. Como Larissa fez, ela encoraja as pessoas a utilizar aplicativos de controle financeiro, planilhas e outras ferramentas disponíveis nos celulares para melhorar o controle das finanças. “Hoje temos aí o celular, onde temos uma grande parte, não toda, mas grande parte da população tem acesso. Então, esses aplicativos de controle financeiro, ou o bloco de notas, planilhas, tudo isso você pode usar como ferramenta”, orienta ela.

Marcelo Bernardes, do Sebo do Gueto, compartilha do mesmo sentimento de que dividir os conhecimentos adquiridos é uma forma de retribuição aos seus e à comunidade, ou seja, dividir para multiplicar. O negócio de venda de livros começou com a esposa dele, Evellem, e extrapolou o impacto imaginado pelo casal.

“Surgiu da minha esposa a ideia, ela queria ajudar em casa com as contas. E em uma conversa com meu pai, ele falou sobre vender coisas pela internet e ela lembrou dos livros”, explica. “Ela começou a vender os livros dela ainda no quarto, criou um instagram e começou a vender. Aí eu falei com ela ‘vamos atrás de mais livros, porque a primeira conta foi paga’”, continua.

O negócio cresceu por meio do comércio online e se uniu a sebos de várias partes do Brasil. Assim nasceu a “Rede do Gueto”, comunidade de lojas especializadas em vender livros a preços acessíveis e democratizar o acesso à leitura na periferia. Hoje, as vendas ocorrem por meio de plataformas digitais e, com a expansão, Marcelo sentiu necessidade de estruturar melhor o negócio. Em 2022, ele conheceu o Corre Criativo, projeto da ONG Fa.vela que busca acelerar iniciativas com protagonismo periférico. Mais de 40 mil pessoas foram atendidas pela iniciativa desde 2021.

“A gente queria entender o que a gente fazia da Rede do Gueto e o Corre criativo foi uma oportunidade para a gente estudar a respeito disso. Conseguimos entender em qual mercado nós estávamos pisando, qual o público alvo estávamos atingindo”, relata. No projeto, ele aprendeu sobre tabelas de precificação, estratégias de venda e também a pensar nos custos de cada loja e da rede como um todo.

Sebo do Gueto virou rede colaborativa entre livrarias espelhadas pelo país
(Isabella Guasti/BHAZ)

A partir da orientação da ONG Fa.vela Marcelo também entendeu como a gestão financeira era importante para que o impacto social da Rede do Gueto continuasse crescendo. “Eu acho que a gente vive num mundo onde é muito difícil conseguir dividir a questão ideológica e a questão comercial e saber a hora de juntar as duas coisas e equilibrar. O Fa.vela me mostrou que as duas coisas caminham muito bem juntas sim – o empresarial e a ação social”.

Falar sobre educação financeira e impacto social, para Marcelo, se relaciona diretamente com o contexto da família dele. “A Rede do Gueto para mim é um retorno aos meus, porque mesmo que eu tenha tido esse acesso, não quer dizer que minha família teve. Então compartilhar essa instrumentalização com os outros tem um valor muito forte”, afirma. Segundo ele, a independência financeira mudou a vida de todos ao redor. “A gente sente que conseguiu pisar num chão muito maior, muito mais alto por ter conhecimento financeiro. Senão a gente gastaria tudo cegamente e não iria para canto nenhum”, finaliza.

’10 minutinhos com Miltinho’

Do pior aluno da turma a professor de reforço, escritor e empreendedor social. Milton Souza, 41, criou um metódo em que estimula crianças e adolescentes a usarem 10 minutos de suas rotinas em prol de uma transformação. A ideia surgiu quando, na faculdade de administração, se deu conta de que precisava “vencer” pensando no futuro da família. Antes, percebeu que a vida não era fácil quando foi morar sozinho aos 14 anos. “Não queria meu filho tivesse as mesmas dificuldades que eu, seja em educação básica ou financeira”, diz ele, que tem uma filha.

Este foi o ponto de partida para a dedicação de Miltinho, como é conhecido na comunidade Cabana do Pai Tomás, região Oeste de BH. “Eu peguei esse comportamento de estudar, no mínimo, 10 minutinhos por dia de maneira mais focada. Foi quando eu comecei a aprender o básico e descobri a técnica através da minha dor. E, foi através dessa minha dor, que eu comecei a ensinar outros alunos na cozinha da minha casa com um papel e uma caneta”, recorda.

Com o passar do tempo, Milton desenvolveu sua técnica e começou a repassá-la. “Eu ensino o aluno a ser empreendedor através da educação. Eu ensino a eles a técnica e, a partir dessa técnica, eles começam a ganhar dinheiro ensinando outras crianças. Então, enquanto eles ensinam, além de ganhar, eles estão melhorando seu próprio conhecimento e ganhando motivação para continuar aprendendo”, explica.

Milton Souza criou escola de reforço e ensina educação financeira aos alunos e à comunidade
(Lucas Negrisoli/BHAZ)

Além de alunos que se desenvolveram como empreendedores a partir do contato com o professor, a própria filha de Milton passou a se interessar pela educação de maneira geral, inclusive a financeira. “Hoje ela tem 10 anos e é monitora aqui de matemática, português e de inglês. Ela fechou mais de 20 provas e escreveu um livro, inclusive controla o que ela ganha sozinha”, diz orgulhoso.

Para o professor Antônio Dias Pereira, da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, a educação financeira é capaz de empoderar as pessoas. “A importância da educação financeira é no sentido de dotar as pessoas de conhecimentos sobre a área financeira, sobre a gestão do dinheiro no modo geral para que elas sejam pessoas conscientes e responsáveis. Isso vai gerar uma melhor relação com o dinheiro, com uma vida mais equilibrada, mais saudável e mais feliz”, diz.

Depois de dar o primeiro passo, Milton conta que o Sebrae Minas Gerais (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) o apoiou e ele se empoderou ainda mais para dar continuidade ao projeto. “Foi um ponto forte para eu conseguir empreender com mais qualidade, fazer uma boa divulgação. E aí eu comecei o marketing. Foi aí que eu vi melhorando e hoje estou fazendo palestras melhorando o meu conhecimento ajudando mais pessoas e trabalhando”, afirma.

Milton tem material de educação financeira e repassa conhecimentos
(Lucas Negrisoli/BHAZ)

Antes de empreender, Milton se viu com dificuldade de gerar renda – algo bastante comum para milhares de brasileiros. Segundo o IBGE, o Brasil tinha 12,4 milhões de pessoas na condição de extrema pobreza no último trimestre de 2022, com renda de até R$ 208 mensais por pessoa do núcleo familiar. “Então hoje eu ensino a educação financeira exatamente porque o meu projeto é aprender ensinando e eu tive muita dificuldade para ter uma renda. Então, hoje eu vejo a importância de você administrar o que ganha”, explica o empreendedor social.

Milton ainda reserva espaço para que outros empreendedores usem a estrutura da escola. Lá, eles deixam artesanatos expostos para os interessados em fazer negócio. É outra forma do professor retribuir à comunidade o conhecimento conquistado até agora. “Fica difícil de usar aquela boa fala da educação que é ‘sempre guardar um pouco [do dinheiro]’, mas como eles têm muita prioridade em usar praticamente tudo que ganham fica mais difícil fazer aquelas economias”, afirma.

Ainda segundo o professor, muitos pais e mães da comunidade não têm acesso à informação e não conseguem, por exemplo, “preencher uma ficha de curso”. “Eles não têm muito esse conhecimento, então a gente precisa dar mais orientações e fazer mais cursos de partida dentro do pouco tempo que eles têm para conseguir o que comer dentro de casa”, diz ao relatar outro desafio de famílias mais vulneráveis.

‘E os cursos?’

Do outro lado da cidade, o empreendedor social Kdu dos Anjos relata como, no projeto Lá da Favelinha, escuta a vontade das pessoas de, além de conseguirem renda, se colocarem no mercado e aprenderem novas funções e formas de trabalho. “E os curso?”, dizem moradores do Aglomerado da Serra, a maior favela de Minas Gerais, quando encontraram Kadu pelas vielas e ruas.

“O objetivo principal é não voltar para a fome e esse não voltar para a fome inclui também todos os parceiros que estão envolvidos e não só a fome física, mas fome de alimento crítico, político e ideológico, de ter cultura no prato todo dia”, comenta.

Kdu dos Anjos é empreendedor social e um dos nomes à frente do projeto La da Favelinha
(Reprodução/Instagram/@math_mhesh)

“Por aí pelas ruas, na quebrada, as pessoas perguntam de fato se vamos conseguir uma cesta básica, mas tem muita pessoa que fala assim: ‘e os cursos? Quero fazer um curso”, se lembra. Kdu explica que formar consciência de como ter renda é importante, também. “A possibilidade de gerar renda, pensando no sistema que vivemos, é também empoderamento, é transporte, saúde. Tudo isso é impossível sem renda. Então lidar com a renda é viver de uma forma mais humana”, diz.

“Muitas pessoas já enxergam que, se armando de conhecimento, também estão se armando de oportunidade. Sinto que todos os coletivos organizados hoje na periferia são focados muito na formação das pessoas, que estão buscando isso, buscando informação, e não apenas renda. Querem um caminho”, conclui.

Educação financeira nas escolas

O histórico da educação financeira no Brasil parece estar diretamente relacionado a eventos que impactaram a população ao longo dos anos. Nath Finanças menciona, entre eles, a abolição da escravatura e o período de ditadura, que deixaram marcas significativas na formação do cenário financeiro e na relação das pessoas com o dinheiro, sobretudo as mais vulneráveis.

“Então tem um parâmetro histórico. Primeiro: o Brasil, mesmo parecendo que é muito antigo, a gente tá engatinhando em muitas situações. Aí temos que entender que a maioria da população brasileira é uma população preta, onde não teve acesso à educação e saúde de qualidade. Educação financeira muito menos. Porque se ele for olhar o poder histórico lá na época de 1888, na abolição da escravatura, as pessoas pretas saíram sem nada. Saíram sem terra, saíram sem educação, saíram sem informação. É meio que assim ‘agora você se vira'”, pontua a jovem, que tornou-se integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável da Presidência da República.

Nathália Rodrigues, a Nath Finanças, destaca que a educação financeira deve começar desde a base, mas lamentavelmente, essa base muitas vezes é ausente nas escolas e em casa. Ela enfatiza que a falta de educação financeira leva as pessoas a cair em armadilhas financeiras, como o uso irresponsável de cartões de crédito com limites superiores a seus salários e a falta de conhecimento sobre tarifas bancárias e conta corrente gratuita. A educação financeira é essencial para questionar salários, entender a diferença salarial entre gêneros e compreender questões como juros rotativos em cartões de crédito.

Para a orientadora financeira, a educação relacionada à gestão de finanças não deve substituir outras matérias nas escolas, mas sim ocorrer de forma transversal. “Na minha opinião e de vários educadores, a educação financeira deveria ser como uma matéria transversal. Ou seja, para complementar e não para substituir”, diz ela. “Assim que a gente consegue caminhar para uma igualdade, de fato, na educação”, pondera.

Segundo Nath, escolas particulares – principalmente dos mais ricos, já desenvolvem a educação financeira há muitos anos. “O que a gente está falando é para uma camada de uma população que nunca teve acesso, uma camada pobre”, define.

A jovem considera que a educação financeira é parte da solução para questões de vulnerabilidade social e reforça a necessidade de políticas públicas eficazes para complementar o aprendizado de finanças. Ela destaca também a importância de se fornecer acesso a crédito para empreendedores de baixa renda e pessoas mais vulneráveis. “Então não tem como eu falar de educação financeira sem poder falar de políticas públicas, falar de acesso, de o governo sim colocar mão. O Estado é muito importante, não tem como eu falar ‘Ah, vamos deixar o estado de lado’. Não, o estado é o ponto principal. É importantíssimo para as pessoas conseguirem ter acesso a coisas, e esse acesso vai para camada mais vulnerável, que é a população pobre”, diz ela.

Outras iniciativas

Pesquisa realizada pelo Boa Vista Serviços, em 2019, mostra que 84% dos consumidores considera importante a educação financeira para crianças. O estudo indica que muitos pais passaram a ensinar os filhos a gestão do dinheiro por meio de mesadas. E estimular a educação financeira foi o principal motivo apontado.

Neste ano, o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) lançou em Minas Gerais o programa Educação Empreendedora, que busca capacitar professores do 1º ao 9º ano do Ensino Fundamental a ensinarem os alunos sobre diversos tópicos, incluindo educação financeira.

Ao BHAZ, o analista do Sebrae e gestor do programa, Wendell Aurélio Rodrigues Ferreira, disse que a iniciativa ainda está sendo implementada, mas que mais de mil professores do estado fizeram a capacitação. “Qualquer professor pode fazer o curso, que é gratuito na plataforma do Sebrae. São 40h de duração e ele traz um conteúdo muito bacana para o professor. Existe um material didático com atividades, vídeos, podcasts, jogos, para o estudante também”, explica ele, que adianta, ainda, que o Sebrae está desenvolvendo materiais voltados para o Ensino Médio.

“Nós estamos trabalhando com a base, que são os nossos jovens e nossas crianças. E é fundamental eles estarem sendo preparados para, possivelmente, quando entrarem no mercado de trabalho, já entenderem sobre ter um negócio próprio, como funciona uma empresa, ou mesmo ajudando dentro de casa na organização financeira”.

Programa Nacional de Educação Empreendedora do Sebrae completou 10 anos em 2023
(ASN/Divulgação)

Wendell explica que a maioria dos professores que participam do projeto são de escolas municipais, mas que docentes de colégios particulares também podem fazer a capacitação. Para ele, é importante, principalmente, que estudantes em vulnerabilidade tenham acesso a esse conhecimento.

O analista ainda diz que a implementação desse tipo de ensino nas escolas públicas como algo obrigatório é uma dificuldade por se tratar de um processo burocrático e que envolve várias instâncias. “A gente precisa de um envolvimento da Secretaria Estadual de Educação. É parte deles e do município colocar isso em todas as escolas, não adianta em uma ou duas. Quem sabe, talvez, até projetos de lei possam ser inseridos nos municípios para que as escolas obrigatoriamente tenham educação financeira”, analisou.

Educação financeira: todos ganham

Os impactos da educação financeira nas escolas brasileiras só poderão ser medidos ao longo do tempo. No entanto, um documento do Banco Mundial referente a um teste inicial de educação financeira realizado em escolas públicas de ensino médio no Brasil, entre 2010 e 2011, identificou resultados positivos em nível individual, apontando para potenciais benefícios no desenvolvimento do país caso o projeto seja ampliado:

Houve um acréscimo de 1% na taxa de economia dos jovens participantes do programa; Uma parcela 21% maior dos estudantes começou a criar listas de despesas mensais; Observou-se um aumento de 4% no número de alunos que passaram a negociar preços e condições de pagamento; Tópicos relacionados a orçamento, planejamento financeiro e preocupações com custos se tornaram mais comuns nas discussões familiares, graças às atividades educacionais que promoveram essas interações.

Conforme destacado no relatório da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) de 2005, a escola desempenha um papel central na abordagem do problema de baixa alfabetização financeira. Ele enfatiza que “a educação financeira deve começar na escola. As pessoas devem ser instruídas em assuntos financeiros o mais cedo possível em suas vidas”.

Em 2018, o Brasil apareceu na 4ª pior colocação no ranking de competência financeira de jovens entre os países analisados, a maioria parte do OCDE. O estudo com adolescentes de 15 anos faz parte do relatório trienal referente ao do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês).

A colocação reflete ainda mais a necessidade de a sociedade brasileira se mobilizar em busca de soluções relacionadas à educação financeira. Apesar disso, os personagens desta reportagem provam, na prática, que dar o primeiro passo rumo à educação financeira não só transformou a vida deles, mas de suas famílias e comunidades. Eles desafiaram e continuam desafiando os esterótipos enquanto semeiam um futuro mais sólido para aqueles ao seu redor.

As redes que se criam são capazes de empoderar e ajudam a quebrar ciclos de vulnerabilidade. Por meio da soma de forças, cada vez mais brasileiros e brasileiras podem conquistar o letramento financeiro. Larissa, Marcelo, Rafaela e Miltinho nos ensinam que a educação financeira no Brasil se faz todos os dias, coletivamente, nas comunidades, nas salas de aula e espaços de aprendizagem, nos pequenos negócios, em uma conta em que o resultado só pode ser um: todos ganham.

Projetos nas escolas de Minas Gerais e BH

Em Belo Horizonte, o projeto “Sonhos, Estratégias e Realizações: Educação Financeira, Cultura e Cidadania – SER” é realizado desde 2015 junto de estudantes de todas as faixas etárias e suas famílias, da Educação Infantil ao EJA (Educação Jovens e Adultos). As atividades/aulas são planejadas pelos professores a partir do conteúdo discutido na formação de maneira a adequá-lo à faixa etária e à realidade da comunidade.

Fortalecimento financeiro, consumo consciente e formas de aquisição de bens são alguns dos conteúdos trabalhados nos encontros formativos. Por meio das aulas, os participantes são estimulados com estratégias de planejamento para alcance dos sonhos, além dos conceitos de empreendedorismo, sustentabilidade e trocas de saberes entre estudantes e suas famílias visando objetivos de curto, médio e longo prazo.

Já na rede estadual de ensino, a temática Educação Financeira tem sido ofertada desde 2021. A Temática Contemporânea Transversal compõe o Itinerário Formativo do Novo Ensino Médio e é ministrada por professor habilitado da área de matemática. Em 2022 foram contempladas 2.537 turmas de 760 escolas, em 436 municípios. Em 2023, 5.608 turmas de 1.440 escolas estão sendo atendidas nesta modalidade.

Sobre a capacitação para professores, a Secretaria Estadual de Educação em parceria com o Instituto Anima, lançou em maio deste ano, o curso de Especialização Nanocertificada em Educação Financeira para os professores da rede que atuam no ensino médio. Foram ofertadas 500 vagas de pós-graduação da temática. As aulas iniciaram no mês de agosto, com duração prevista de 360 horas/aula, dividida em três módulos, no formato de Educação a Distância (EaD), com encontros síncronos e assíncronos por meio da Plataforma Ulife.

Em junho também foi realizada a Virada Docente, em Belo Horizonte. Um encontro presencial com parte dos professores matriculados na especialização, para a troca de experiência e levantamento de sugestões para formação.

A Secretaria ainda ressalta, ainda, que a formação para docentes tem como foco a preparação para que eles possam trabalhar a educação financeira de maneira transversal, atual e em consonância com outros componentes curriculares para ampliar a visão crítica dos estudantes e reforçar a atuação cidadã e social desses jovens.