Pelo direito de mentir

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Decreto proposto pelo governo federal para limitar controle das redes sociais sobre o conteúdo levanta debate mais amplo (Banco de imagens/Unsplash)

Há poucos dias, divulgou-se que a presidência da república estaria preparando a minuta de um decreto que limitaria os poderes das redes sociais de controlar o conteúdo que nelas fosse veiculado e de limitar seus poderes de banir as contas que violassem os seus termos de uso.

Do ponto de vista jurídico, essa discussão se insere em um contexto bem mais amplo: o particular pode limitar o exercício do direito fundamental de outra pessoa?

Alguns exemplos talvez ajudem a evidenciar a polêmica: um serviço pode ser oferecido apenas para pessoas de certo gênero? Seria possível cobrar-se um valor mais alto por um serviço em virtude do gênero da pessoa? É possível que uma escola não contrate um professor em virtude de sua religião?

Uma discriminação lícita?

Em um primeiro momento, essas práticas nos parecem ilícitas. Afinal, não parece tolerável que atos discriminatórios sejam admitidos em nossa sociedade.

No entanto, um olhar mais atento revela que essas práticas fazem parte de nosso cotidiano. E não despertam maior incômodo.

Uma seguradora cobra mais de homens do que de mulheres nos seguros de carro; existem casas de repouso e academias de ginástica que aceitam apenas mulheres; em um plano de saúde, os idosos pagam mais que os clientes mais jovens; a maçonaria, tradicionalmente, aceita apenas homens e são comuns os anúncios de locação de quartos que se dirigem especificamente ao público feminino.

Trump, o confeiteiro e a os limites da liberdade individual

A questão está longe de ser simples. Ao mesmo tempo em que se admite a liberdade do particular de estabelecer as suas próprias regras de conduta, coíbe-se, em outras situações, essa mesma possibilidade.

A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, recentemente, que um confeiteiro não pode ser compelido a preparar um bolo para a celebração de um casamento entre pessoas do mesmo sexo se a sua religião desaprova tais uniões. Quase na mesma época, o tribunal de Manhattan proibiu que Trump bloqueasse críticos em sua conta pessoal no Twitter. Em um caso, prestigiou-se a liberdade religiosa em detrimento da igualdade, admitindo-se que o comerciante estabeleça as regras aplicáveis a seu negócio; no outro, à liberdade individual se sobrepôs o acesso à informação, que não poderia ser tolhido por um ato privado – ainda que praticado pelo titular da conta na rede social.

Redes sociais e liberdade de expressão

Enquanto o parlamento e os tribunais vão, paulatinamente, definindo os limites dessas restrições, observamos que as redes sociais se tornaram o epicentro desse debate. Surge, então, a questão: o Twitter ou o Facebook poderiam cercear a liberdade de expressão de seus usuários?

Tradicionalmente, os termos de uso das redes sociais constituem as balizas do comportamento dos usuários, definindo os limites do que pode ou não ser postado.

Essa faculdade das redes sociais não costumava despertar maior polêmica. Mas isso mudou quando se revelou a influência que as redes sociais exercem e o seu potencial junto à opinião pública. Não foram poucos os estudiosos que atribuíram a eleição de Trump e de Bolsonaro a um uso intenso de algumas redes sociais, que lhes possibilitaram um engajamento sem precedentes – e que continuaram sendo largamente utilizadas mesmo após a sua vitória eleitoral.

Como já se podia esperar, teve início um movimento para pressionar as redes sociais para que limitassem o seu uso indevido, coibindo o discurso de ódio e as notícias falsas, por exemplo.

Ainda que timidamente, esse movimento começou a ganhar corpo: as contas do ex-presidente Trump no Facebook, Twitter e Instagram foram bloqueadas; o YouTube excluiu vídeos em que Bolsonaro defendia a cloroquina e vários membros de sua entourage sofreram sanções similares.

Um decreto para mentir em paz

Não espanta a tentativa do Palácio do Planalto de editar um decreto que limite o poder das redes sociais de restringir as ações de seus usuários, impedindo-as de excluir contas e censurar conteúdos.

Aos que atualmente controlam o executivo, não interessa dificultar o trabalho dos robôs, controlar fake news e bloquear contas indevidamente utilizadas: Eles conhecem o poder das redes sociais, aprenderam a utilizá-las antes de seus concorrentes e não estão dispostos a renunciar a um recurso que lhes assegura uma vantagem competitiva.

Por isso, em nome da liberdade – historicamente brandida para justificar qualquer atrocidade – pretendem ocupar as redes sociais. Em nome da liberdade, querem divulgar notícias falsas e criar contas igualmente falsas. Em nome da liberdade, querem que seja reconhecido o seu direito de mentir.

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior[email protected]

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em direito civil, professor universitário, Diretor Científico da ABDC – Academia Brasileira de Direito Civil e associado ao IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Foi presidente da Comissão de Direito Civil da OAB/MG. Apresentador do podcast “O direito ao Avesso”.

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