Sob pressão: A saúde de quem cuida da saúde de BH

Edinaíra, Anderson, André e Maria nunca se viram, mas nasceram com a mesma vocação: zelar pela saúde alheia. Mesmo com especialidades distintas, compartilham também a fragilidade de um fator essencial para manter os outros saudáveis: a própria saúde. A lista é bem familiar do quarteto – assédio moral, agressões, condições precárias que levam a dores, depressão e, no extremo, até mesmo ao autoextermínio -, mas está longe de ser exclusividade deles. Em BH, apenas no ano passado, cerca de 600 médicos e 570 enfermeiros foram licenciados em decorrência de problemas de saúde.

Mesmo com o cenário alarmante, médicos, enfermeiros e outros profissionais da área ignoram a própria saúde para cuidar da dos outros e, assim, fazer valer os três princípios básicos do SUS (Sistema Único de Saúde) – universalização, equidade e integralidade (saiba mais sobre o conceito aqui). Também há aqueles que cumprem o chamado vocacional, mas que pensam em desistir por conta das dificuldades encontradas no dia a dia.

A ACS (Agente Comunitária de Saúde) Edinaíra Aparecida, de 43 anos, é um desses exemplos: percorre longas distâncias há 19 anos para garantir a saúde de famílias em diferentes cantos de Belo Horizonte. Ela foi diagnosticada com um quadro de bursite trocantérica em uma das pernas, mas não renuncia à sua vocação – e ao sorriso no rosto. “Vim ao mundo para fazer a diferença”, diz.

‘Vim ao mundo para fazer a diferença’: a frase ilustra bem a gana da agente comunitária de saúde Edinaíra (Amanda Dias/BHAZ)

Maria é a outra mulher do quarteto que abre esta reportagem e trata-se de um nome fictício para resguardá-la, mas com um histórico de agressão sofrida durante seu ofício, infelizmente, bem real. A enfermeira de uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento) da cidade foi atacada pela acompanhante de um paciente e cogitou largar a profissão. “Mas eu não tenho para onde correr, eu preciso trabalhar”, conta.

Com o objetivo de mostrar como está a saúde de quem cuida da saúde da capital mineira, o BHAZ reuniu entrevistas, relatos e dados a respeito dos profissionais da área. E, além do crescente adoecimento dos trabalhadores, chama atenção a defasagem de estatísticas sobre o assunto (leia mais abaixo).

Para se ter uma ideia, um dos levantamentos mais recentes, o Perfil da Enfermagem no Brasil, foi realizado em 2015. Feita pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), por iniciativa do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem), a pesquisa deixa explícito que trabalhadores da saúde estão adoecidos. É o que diz, também, Anderson Rodrigues, presidente do SEEMG (Sindicato dos Enfermeiros de Minas Gerais).

“A pesquisa tem se mostrado fidedigna a cada dia. Cerca de 66% dos trabalhadores da saúde se sentem desgastados. O trabalhador está adoecido, pois temos uma série de fatores que contribuem para isso: é a rotina desgastante de 12×36 [o profissional trabalha 12h seguidas e folga as 36h subsequentes], os trabalhos informais, a pressão do serviço, os baixos salários, e o sistema SUS, que vem sendo sucateado cada vez mais. Tudo isso arrebenta com o trabalhador”, desabafa o enfermeiro, que revela também já ter sofrido assédio moral.

Com 1,70m e 120 kg, Anderson relata ter sido intimidado no exercício da profissão. Ele diz que é comum enfermeiros e outros profissionais da saúde se tornarem alvos de diferentes formas de violência. E ainda aponta o gênero dos trabalhadores como fator determinante para que as agressões ocorram, já que 85% da categoria é formada por mulheres.

“Historicamente, o machismo existe no Brasil e não seria diferente na nossa profissão. O homem se sente mais ‘confortável’ para intimidar a mulher. Eu, que tenho 1,70m, e 120kg já fui intimidado. Não estou desmerecendo a figura feminina, de forma alguma, mas percebemos esse ‘conforto’ dos homens para intimidá-las”, diz.

“A intimidação começa na triagem, pois, na maioria das vezes, o paciente e o acompanhante desejam um rápido atendimento. Por isso, defendemos que seja instalada a porta de fuga nos consultórios. Essa porta poderia evitar uma agressão, algo que nem deveria acontecer, mas já que não é incomum, seria uma forma de evitar o pior. Tudo que acontece nos postos de saúde, UPAs e hospitais abalam o psicológico do trabalhador”, explica.

Os números apresentam que a discriminação por gênero é a maior registrada em Minas Gerais pela maioria dos enfermeiros. Mais da metade dos entrevistados disseram que já foram discriminados por gênero no trabalho:

Na pesquisa da Fiocruz, foram listadas também as violências enfrentadas por enfermeiros. E a psicológica é a que faz mais vítimas, tanto no Brasil, quanto em Minas Gerais: pelo menos 113 mil profissionais já passaram por situações em que foram alvos de violência psicológica no país, dos quais 10.551 no Estado mineiro. “Nos preocupa o enfermeiro ter de sair para o trabalho enfrentando uma depressão, desejo de suicídio. Você sai doente para cuidar de outro, isso nos deixa mais frustrados. Temos observado que uma boa quantidade de profissionais tomam medicação”, diz Anderson.

A violência física também é preocupante. Em 2017, Maria trabalhava na UPA Leste quando foi agredida pela acompanhante de um paciente e sentiu na pele a frustração de não receber apoio efetivo. Dois anos depois, a enfermeira ainda enfrenta desdobramentos da violência sofrida. Ela conta ter sido diagnosticada com estresse pós-traumático e depressão.

“Sou enfermeira efetiva desde 2013 e, durante o meu trabalho, uma acompanhante insatisfeita por falta de vaga me agrediu. Ela estava embriagada e me empurrou, me arranhou. Machuquei pernas e braços, foi uma situação em que fiquei superexposta”, relembra. “Fiquei de 23h às 5h na delegacia sem ter nenhum apoio”, aponta.

Presidente do Sindicato dos Enfermeiros de Minas defende instalação de portas de fuga para evitar agressões (Moisés Santos/BHAZ)

Depois da agressão e da falta de amparo, Maria ficou afastada por dois meses. “Tive um estresse pós-traumático decorrente dessa agressão. A prefeitura [de Belo Horizonte] não me deu amparo nenhum, fui para delegacia e ao hospital sozinha. Fiquei completamente vulnerável”, explica. “Eu não saía de casa, tenho duas crianças pequenas, ficava com medo a todo o momento. A mulher que me agrediu foi processada criminalmente, mas também sabia onde eu trabalhava, onde me encontrar, tive muito medo”, conta a profissional, que pensou em abandonar o emprego.

“Agora vai completar dois anos que tomo medicação e faço tratamento, tudo do meu bolso. Fiquei indignada, queria sair da profissão. Essa agressão me desestimulou. A gente já não tem a valorização necessária. As agressões verbais são incontáveis, é tão rotineiro que a gente vai naturalizando, mas uma agressão física tem um impacto maior: abre a visão para uma ferida extensa, a gente se dá conta que já vem sofrendo a violência que é psicológica há muito tempo, vai trabalhar doente e nada é feito”, desabafa. “Eu estou em um momento de aceitação, por não ter para onde correr, eu preciso trabalhar”, diz a enfermeira.

A PBH não conseguiu se manifestar sobre o caso específico porque a profissional pediu para ter o nome resguardado. Mas a administração municipal afirmou que a recomendação é que os servidores adoecidos procurem a perícia médica, pois a mesma determinará a causa da doença e as recomendações serão passadas visando a recuperação. O tratamento é gratuito e algumas das medicações são passadas sem custo ao servidor. “A nossa rede de serviço é universal, temos psicólogos, psiquiatras e os profissionais estão à disposição de todos. Não há necessidade de tirar recursos do próprio bolso”, disse Fabiano Pimenta, subsecretário de Promoção e Vigilância em Saúde.

Em casos de agressões e ameaças, a orientação do sindicato dos enfermeiros de Minas é de que os profissionais acionem a PM (Polícia Militar) e façam um Reds (Registro de Eventos de Defesa Social, o antigo B.O.) para registrar os crimes. O presidente do SEEMG, Anderson Rodrigues, relembra um episódio ocorrido com ele quando trabalhava em um Pronto-Socorro.

“Era época do surto da dengue e uma mulher havia chegado com muitas dores. O filho que a acompanhava queria que a mãe fosse rapidamente atendida. Falei que iria olhar o que poderia fazer. Foi aí que ele disse: ‘Se não resolver, vou quebrar tudo, a começar por você’. Chamei a PM, mas, antes, reavaliei a paciente e fiz o registro. Isso é o que estou lembrando, mas também já tive o carro riscado por usuários. As pessoas não entendem, que assim como elas, nós também somos reféns do sistema”, conta.

As ameaças e o risco de sofrer violências fazem também, segundo Rodrigues, com que os profissionais atuem com medo do que está por vir. Ainda assim, não pedem ajuda para evitar que sejam alvo, ainda, de preconceito. “O enfermeiro não conta o que vem sofrendo nem pro seu colega de trabalho, nem para o responsável pela gestão da unidade de saúde. Ele sente medo de ser afastado, demitido, taxado como louco. Sabemos que a pressão que vivemos, por estar mais próximos dos pacientes, nos torna mais humanos. Nós escutamos muitos os outros e não somos ouvidos”, diz.

Maria foi ao trabalho incontáveis vezes mesmo doente. E, infelizmente, esta é a realidade de milhares de trabalhadores no Brasil, inclusive da saúde. Para André Cristiano dos Santos, médico da Saúde da Família e diretor do Sinmed-MG (Sindicato dos Médicos de Minas Gerais), a situação é estarrecedora. “Esperaríamos que quem cuida da saúde se cuidasse melhor e tivesse uma melhor qualidade de vida do que a da população em geral. E, na realidade, o que a gente tem visto é exatamente o contrário”, diz o profissional lotado no Centro de Saúde Dom Bosco, na região Noroeste de BH.

O médico ressalta ter percebido um número maior de afastamentos por conta de doenças e diz que, em alguns casos, os trabalhadores não conseguem voltar às atividades normais. “Quando um colega adoece, muitas vezes, aquele que ficou pra trás tem que dar conta de executar o seu trabalho e o do colega que ficou doente. Isso aumenta a sobrecarga e vai criando um ciclo vicioso, no qual cada vez mais teremos doentes. Infelizmente isso acaba impactando no tratamento que é oferecido aos pacientes”, observa André, que já teve a própria saúde afetada.

Médico explica que já teve a saúde afetada, mas que profissionais tentam amenizar o próprio sofrimento
(Moisés Santos/BHAZ)

“Eu acho que a gente, às vezes, por conta do conhecimento que tem, tenta minimizar o próprio sofrimento, digamos assim. Eu, pessoalmente, tenho tido dificuldade no controle do peso, colesterol mais alto. Às vezes, começo a desenvolver quadros de maior ansiedade”, conta o servidor. “Como eu disse, a nossa carga horária é excessiva e a gente, muitas vezes, peca em realizar ações que nós mesmos orientamos que os nossos pacientes façam. Nos falta até tempo para realizar uma atividade física e alimentação adequada”, reflete ao falar da rotina exaustiva.

O desgaste resultante das atividades desempenhadas é sentido em 73% dos enfermeiros entrevistados pela Pesquisa Perfil da Enfermagem em Minas Gerais. Mais de 30 mil profissionais disseram que já sofreram desgastes na atividade profissional:

O diretor do Sinmed-MG ainda conta que os profissionais lidam de maneiras diferentes com o adoecimento provocado pelas condições e dinâmicas no trabalho. Alguns, inclusive, fazem uso de drogas por ter acesso a medicamentos e substâncias diversos.

“Trata-se de um tema muito sensível. A gente acaba tendo mais acesso a drogas lícitas, a medicamentos, e aí ocorre um abuso maior. O alcoolismo também acaba sendo muito presente. Acho que dentro do contexto de pressão, a profissão médica fica exposta. Isso traz uma fragilização muito grande e, infelizmente, os profissionais acabam indo por esse caminho”, revela, antes de apontar o suicídio e a depressão como outros dois grandes desafios no meio médico.

André explica que o suicídio é um dos fatores que fazem a expectativa de vida dos médicos cair, quando comparada à da população em geral. “O médico, pelos seus conhecimentos, acaba tendo mais acesso a meios que podem ser usados para cometimento de um suicídio. E a taxa de ‘êxito’, quando você compara a tentativa de suicídio do médico com a do restante da população, digamos que ele obtém mais ‘sucesso’ nisso do que o restante das pessoas. É um dos fatores, somados a várias outras doenças, para que a expectativa de vida caia”, diz.

Um estudo realizado pelo Conselho Regional de Medicina de São Paulo, com base em dados provenientes do SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade), da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, aponta que, entre os anos 2000 e 2009, médicos e médicas morreram mais cedo que a população em geral.

No levantamento, intitulado “Estudo da Mortalidade dos Médicos no Estado de São Paulo: tendências de uma década (2000-2009)” (leia na íntegra aqui), os dados mostram que os profissionais do sexo masculino morreram cerca de dois anos antes que os demais homens da sociedade, e as médicas, 10 anos mais cedo do que as mulheres em geral. Entre elas, a idade média de morte é de 59,2 anos, enquanto, entre eles, é de 69,1 anos.

Sobre depressão entre profissionais da categoria, o sindicalista e médico de Saúde da Família diz que os trabalhadores devem se cuidar todo o tempo. “Na medicina, se comparada a outras profissões, não cabe erro. O profissional é cobrado de uma eficiência o tempo inteiro. Mas não é um resultado matemático. Às vezes, a gente institui tratamento para casos semelhantes e obtém sucesso para um caso e não para o outro, o que pode representar uma complicação grande para o profissional”, destaca.

“A gente lida muito com o sofrimento humano e somos, também, humanos. O médico acaba se fragilizando muito e a gente percebe que algumas especialidades têm uma fragilidade maior do que outras”, continua. “Cuidar é muito complicado, muito difícil. Você tem que se cuidar o tempo todo e a cobrança é maior, a carga horária é mais alta. Às vezes trabalhamos 60, 80 horas semanais. É um conjunto que nos deixa mais expostos”, afirma.

Dados da Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão de Belo Horizonte apontam que, na capital mineira, em torno de 600 médicos se afastaram das funções em 2018. O número representa 3,03% de todo o efetivo de médicos. O gráfico também mostra o número de enfermeiros e ACS afastados por convalescença após cirurgia, luxação entorse e distensão das articulações, episódios de depressão, sinusite aguda e acompanhamento de familiar doente, entre outros:

Para minimizar os problemas, principalmente psicológicos, o médico aponta ser necessário enfrentar o que pode ser considerado um tabu. Ele diz que os profissionais precisam se abrir mais e não ter medo de buscar ajuda. “As instituições médicas têm ficado cada vez mais antenadas a essa situação [adoecimento dos médicos], que pode ficar catastrófica para a classe médica. Sindicatos e entidades médicas estão em articulação para buscar algo para o bem estar e bem viver do médico”, diz.

“Às vezes, a gente tem dificuldade de colocar nossa saúde na mão de outro. E eu acho que isso é importante. A gente tem que se reconhecer como ser humano, com todas as nossas fragilidades e não ter medo de buscar ajuda. Porque, às vezes, a gente tem essa vergonha. Começar a falar mais das coisas. Temos quebrado alguns paradigmas, a questão do suicídio, e, cada vez mais, temos visto a necessidade de falar sobre isso. A gente não pode esconder. Quando você esconde, você piora o problema porque ele não é enfrentado”, continua.

“Por parte do poder público, infelizmente, as iniciativas são muito modestas, acanhadas, e eu tenho visto pouco movimento no sentido de melhorar as condições de trabalho, de discutir efetivamente a sobrecarga de trabalho, a criação de outras equipes. E isso tudo bate na velha questão dos recursos financeiros. Isso é alegado pra não mudar o cenário em que a gente vive”, diz André. “O médico, o profissional da saúde – eu estou falando da minha classe, mas a gente acaba observando que os de enfermagem, os agentes comunitários também sofrem com esses problemas -, espero que a gente se reconheça mais como ser humano, com todas as nossas fragilidades e não que tenha medo de buscar ajuda”, pontua.

Informações divulgadas pelo Ministério da Saúde revelam que o médico é apontado como um dos principais profissionais atingidos pela Síndrome de Burnout – caracterizada pelo esgotamento físico e emocional, geralmente associado ao excesso de trabalho -, por ser uma profissão que atua com pressão e responsabilidade constante.

Apesar de inexistirem estudos atualizados sobre a realidade brasileira e de serem ainda mais escassos quando se referem a Minas e, especificamente, Belo Horizonte, estudos internacionais apontam uma tendência que, segundo o Conselho Federal de Medicina, deve se refletir no Brasil. De acordo com pesquisa realizada pela plataforma Medscape, com mais de 15 mil médicos com idades entre 28 a 70 anos, as taxas de burnout (também conhecido como Síndrome do Esgotamento Profissional, leia mais sobre o tema aqui), depressão e suicídio têm aumentado.

De acordo com a Medscape, 44% dos médicos entrevistados reportaram sofrer de burnout, 11% se definiram como “deprimidos” e 4% receberam o diagnóstico de depressão, sendo que as taxas foram maiores entre as médicas. A pesquisa mostrou também que o número de médicos que têm pensamentos suicidas aumentou no último ano. No total, 14% afirmaram pensar em suicídio e 1% declarou ter tentado se matar. Sobre a procura por ajuda para tratar o estresse profissional, apenas 13% revelaram buscar tratamento. Mais da metade dos médicos (64%) nunca procurou ajuda profissional e destacam, entre os motivos, o fato de “não achar que os sintomas são graves o suficiente” e “achar que pode resolver sozinho o problema”.

Durante um seminário sobre suicídio entre médicos, realizado em 2018, o Sindicato dos Médicos de Minas Gerais apresentou estudos, de várias abrangências territoriais, que apontam que médicos se suicidam 40% a mais que a população em geral e que depressão e dependência de substâncias, como álcool e outras drogas, são fatores que levam ao suicídio desses profissionais. Nos dados que enquadram a sociedade como um todo, o homem se mata 3 a 4 vezes mais que a mulher. Contrariando o quadro geral, as médicas se matam mais do que os médicos. Elas cometem autoextermínio 120% a mais que a população em geral.

Médicos e médicas cometem mais suicídio do que a população em geral (Amanda Dias/BHAZ)

As especialidades mais associadas ao suicídio são a anestesia e a psiquiatria, pelo acesso às drogas lícitas e o conhecimento do potencial letal das substâncias. Na população em geral são 10 a 20 tentativas para cada suicídio, entre os médicos essa proporção é muito menor, já que a taxa de efetividade é maior. Até os anos 1950, a mortalidade entre esses profissionais era maior do que a da população em geral por outras causas como cânceres e doenças cardiovasculares. Segundo o estudo, esse índice, hoje, é menor, pelo conhecimento dos sintomas e medidas preventivas, mas a mortalidade do médico continua maior do que a população em geral, devido ao alto número de suicídios.

Além das violências e falta de amparo listadas acima, todos os entrevistados apontaram a falta de melhores condições de trabalho – dos salários às estruturas físicas dos centros de saúde -, como outro fator capaz de comprometer a saúde dos profissionais da área. No Centro de Saúde Alcides Lins, no Concórdia, onde a agente comunitária de saúde Edinaíra trabalha, por exemplo, há apenas dois computadores para uma equipe composta por 23 agentes. Eles devem usar os equipamentos por apenas três horas por dia e se organizam por meio de escalas.

“Eu acho que deveríamos ter mais agentes, principalmente, em áreas muito grandes. A gente fica cansado, porque queremos fazer pelo paciente algo que o próprio sistema de saúde não faz. Às vezes, não temos o medicamento, aí você precisa ir lá conversar com a farmacêutica, faz, das tripas, o coração e, ainda assim, não consegue ajudar. A gente fica sem dormir direito, muito estressada. Somos cobrados, mas não temos condições adequadas de trabalho. São mais de dois anos sem uniforme, sem protetor solar. Somos 23 agentes comunitários no posto e temos dois computadores. Temos escala para usar, cada um, três horas por semana, é desgastante”, diz.

O BHAZ confirmou a informação de Edinaíra sobre os computadores com o subsecretário Fabiano Pimenta. “São dois computadores para esta finalidade [registro das atividades desempenhadas pelos ACSs]. O que acontece é que o gerente da unidade faz uma programação em função do número de agentes para que eles possam voltar à unidade e registrar a atividade. Nesses dias, eles retornam mais cedo. Não temos cinco, seis computadores disponíveis. A intenção do secretário [Jackson Pinto] é buscar recursos e uma das melhorias será o uso de tablet. Com o equipamento o ACS vai registrar online, na hora que faz a visita”, disse.

Estruturas precárias também são apontadas como fator de adoecimento por profissionais de saúde (Moisés Santos/BHAZ)

Sobre uniforme e protetor solar, a PBH afirma que os itens não estão em falta. “Temos estoque de protetor no almoxarifado. A questão do uniforme é que em alguns casos acaba saindo fora do padrão [pessoas que calçam acima de 40 e medidas que ultrapassam o extra-G], mas quando acontece nós fazemos a solicitação junto ao fornecedor para atender os pedidos”, disse Fernanda Girão, subsecretaria de Orçamento, Gestão e Finanças.

Já Maria e Anderson, enfermeiros em UPAs da capital, concordam que a estrutura física dos centros de saúde não é segura para os profissionais e equipes. “É um problema real, existem poucos enfermeiros, dois por UPA em plantão. Um fica recebendo os pacientes, que podem chegar de 400 a 600 em média, quando está cheio. Você não consegue estar em todos os lugares ao mesmo tempo, então vai entrando em situações conflitantes. É aí que entra a necessidade de uma Guarda Municipal efetiva, de uma estrutura que assegure a segurança”, pondera a profissional.

Enfermeira agredida em UPA da capital foi diagnosticada com depressão e estresse pós-traumático (Amanda Dias/BHAZ)

“Os espaços são transitáveis até demais, não têm câmeras, nem monitoramento. O ideal seria uma estruturação melhor das unidades, dar publicidade a esse problema, orientar e estimular o não embate entre pacientes e profissionais de saúde”, diz a enfermeira. “Ninguém faz enfermagem para prejudicar as pessoas. Somos marginalizados e taxados de preguiçosos, de quem não quer trabalhar, mas é necessário que tenhamos melhores condições”, reflete.

Os baixos salários fazem com que muitos enfermeiros busquem um segundo emprego para complementar a renda familiar. Logo, o cansaço acumula e a saúde mental se deteriora ainda mais. Se não bastasse o vencimento não ser suficiente para o profissional se manter, as escalas de plantão fazem com que ele deixe de lado o convívio social. “Tem gente que não tem vida social. Sai de um emprego, vai para o outro, passa as férias em casa. A escala de 12×36 é um dos maiores fatores que induz as pessoas a ter vários vínculos. Trabalhar dia sim, dia não é muito pesado, pois envolve feriados e finais de semana, e faz com que a pessoa perca um casamento na família, entre outros eventos”, alerta Anderson.

Anderson diz que sobrecarga de trabalho afeta convívio social de profissionais da saúde
(Moisés Santos/BHAZ)

Para o médico André Cristiano dos Santos, o excesso de demanda associado a um superdimensionamento da força de trabalho também é outro ponto a ser revisto. “Nós deveríamos ter muito mais profissionais trabalhando do que temos hoje. Na minha área, especificamente, aqui em BH, cada médico de família tem sob seu cuidado uma média em torno de 4 mil pessoas. A Sociedade Brasileira de Medicina de Família defende que o adequado seria até 2 mil pessoas, para que a gente conseguisse, além de dar o atendimento curativo, que é para a doença especificamente, que a gente conseguisse fazer ações preventivas, atender a população e evitar que essa população adoeça”, conta. “Nas UPAS, a média também ultrapassa muito a capacidade de atendimento. O profissional fica o tempo todo apagando incêndio”, diz.

“As estruturas físicas são ultrapassadas e, muitas vezes, adaptadas. Não foram criadas para aquele fim, existe uma deficiência de mobiliário, falta material, falta equipamento. Não são raras as vezes em que os próprios profissionais têm que comprar coisas para realizar o atendimento. Às vezes, não tem tem pilha para colocar no otoscópio”, explica.

O atendimento de até 2 mil pessoas por médico, segundo Fabiano Pimenta, é estabelecido por uma Diretriz Geral do Ministério da Saúde. “Essa recomendação é de 2015 e eu diria que não tem nenhuma conexão com a realidade local. Na próxima semana, vamos nos encontrar com o secretário do Ministério da Saúde para a Atenção a Saúde Primária, pois a diretriz está sendo revista e vamos discutir critérios de financiamento, para que possamos atingir o máximo possível da nossa realidade”, contou.

Edinaíra em visita a casa de paciente que recebe tratamento domiciliar (Moisés Santos/BHAZ)

Já com relação aos atendimentos nas UPAs, o subsecretário ressaltou que semanalmente é feito um levantamento para observar se houve crescimento das demandas nas unidades. “Trabalhamos com planos de contingência para enfrentarmos, por exemplo, períodos de epidemia, como a dengue. Quando a gente identifica aumento de atendimento em UPAs, como pessoas com febre, dores no corpo, temos critérios para a contratação temporária para os locais de demanda acrescida e isso vale para todos, médico, técnico de enfermagem, entre outros. Às vezes encontramos dificuldades na contratação de algumas especialidades, como pediatra, mas sempre fazemos chamamentos”.

Belo Horizonte tem 588 equipes do Saúde da Família e cada uma delas é composta por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e ACS. Os interessados em cadastrar o currículo podem fazer o cadastro no Banco de Currículos, por meio do portal da PBH.

Se as dificuldades e o risco de adoecimento são tão presentes na rotina de profissionais que atuam durante o dia, a situação é ainda mais complicada para quem precisa trabalhar de noite. É o que diz o estudo “Agravos a saúde do trabalhador da área da saúde, com ênfase nas alterações do ciclo sono-vigília, ligados ao trabalho noturno” (leia na íntegra aqui), desenvolvido ainda em 2009 pela médica obstetra e ginecologista Ana Claudia Barbosa Vieira.

Por meio de pesquisas, artigos e outros documentos, o estudo mostra agravos à saúde do trabalhador da saúde e apresenta a relação entre trabalho noturno e riscos de adoecimento, do corpo à mente. Ao BHAZ, a médica responsável explicou que o trabalho noturno tem correlação com problemas de saúde e que as áreas mais afetadas são a cardiovascular, a psicossocial e o sono, acometido por distúrbios. Além disso, também implica aumento no número de acidentes de trabalho.

“Esse tipo de trabalhador está submetido ao estresse e à falta de sono. É uma situação contraditória: você tem que cuidar dos outros, mas não cuida de si mesmo por conta das condições de trabalho”, diz Ana. “A pessoa descansa pouco e aí tem que voltar para algo que é de extrema responsabilidade. Os descansos, quando existem, são ali mesmo no meio da bagunça do hospital. A pessoa dorme mal e isso vai atrapalhando o sono, elevando o nível de estresse”, aponta a médica.

Ciclo sono-vigília pode desencadear problemas do sono em profissionais da saúde (Marcello Casal Jr./Agência Brasil)

Ainda segundo a obstetra e ginecologista, uma outra médica conhecida dela chegou a sofrer um acidente de trânsito depois de um plantão. “Ela foi para casa dirigindo depois de várias horas de trabalho, cochilou e sofreu um acidente. É apenas um exemplo, mas essa alteração do ciclo de sono-vigília provoca estresse, estafa e a pessoa vai cada vez mais adoecendo”, explica.

Ana também conta que o tratamento para pessoas acometidas por problemas relacionados ao sono é longo e demorado, além de ser individualizado para cada paciente. Ela ainda aponta o que acredita ser essencial para uma melhoria na saúde dos trabalhadores que atuam durante a noite.

“Precisamos de políticas públicas melhores, para rever os honorários, o excesso de carga de trabalho que a gente tem. As pessoas acham que, se você trabalha muito, ganha muito dinheiro. Mas, na verdade, nem sempre é assim e a qualidade de vida vai se perdendo. Precisamos também humanizar o olhar para o profissional da saúde”, explica.

Apesar dos desafios e dificuldades, eles persistem. Com quase duas décadas de profissão, no mesmo endereço, Edinaíra já viu um pouco de tudo. Ela atende hipertensos, gestantes, crianças e pessoas “restritas”, que têm dificuldade de locomoção ou não podem ir ao Centro de Saúde quando necessário. Para ir até as casas, a servidora tem poucas opções: pode usar duas passagens de ônibus por dia, ir com o carro do posto – disponível duas vezes por semana -, ou à pé, enfrentando longas distâncias e várias ladeiras. No primeiro atendimento do dia, a distância era de 1 km do posto até a casa da dona Martha, paciente que teve as duas pernas amputadas por conta de complicações relacionadas a diabetes.

“Nós fazemos acompanhamento preventivo e o tratamento dos usuários do Centro de Saúde. A demanda é muito grande, então fazemos o que a gente pode para ajudar o paciente. Muitas vezes, eu tenho que brigar por eles. O agente comunitário de saúde é medico, enfermeiro, psicólogo e amigo”, pontua.

Longas caminhadas fazem parte da rotina de Edinaíra (Amanda Dias/BHAZ)

Com tanta pressão envolvida, e percorrendo vários quilômetros todos os dias, Edinaíra conta que desenvolveu bursite trocantérica em uma das pernas e precisou passar por fisioterapia, por conta das dores. Apesar disso, diz que só se afastou do trabalho quando ficou grávida. “A gente trabalha com dor, temos uma responsabilidade e precisamos cumpri-la. Tem dias que é uma dor de cabeça, ou a dor da perna que volta a aparecer, e, como a maioria de nós somos mulheres, ainda tem a questão das cólicas, por exemplo”. E as dores físicas são apenas uma parte. É que os problemas do posto e dos pacientes atendidos acabam, mesmo que indiretamente, se tornando dos profissionais também.

“Existem famílias e casos que atendemos que são mais complicados, a gente lida com muita vulnerabilidade, seja da saúde mesmo ou da condição social. Eu fico pensando ‘o que mais posso fazer para ajudar essa pessoa?’ e aí a cabeça não consegue parar de pensar, a gente fica sobrecarregado e isso nos afeta mentalmente”, pondera a servidora. “Muitas vezes, a gente fica sem dormir, preocupado, sem saber se vai conseguir atender àquela demanda. A maioria das agentes comunitárias, muitas são mães, têm que fazer outro trabalho pra ter uma renda extra, muitas fazem faculdade, e precisamos trabalhar mesmo assim, com gripe, cólica, dores nas pernas, nos joelhos, debaixo de sol quente e chuva”, continua.

Sobre os deslocamentos feitos pelos 2,3 mil ACSs, o subsecretário Fabiano Pimenta explica que eles atuam na região onde moram, para que assim tenham vínculo com a população local. Com isso, o caminho até a casa do paciente, segundo ele, pode ser feito a pé.

Edinaíra trabalha há 19 anos como Agente Comunitária de Saúde (Moisés Santos/BHAZ)

“Os deslocamentos são dentro da área de trabalho, e, para evitar que eles retornem toda hora ao local de trabalho, os agentes batem ponto somente duas vezes, na entrada e saída. Mesmo assim, isso pode ser feito em qualquer unidade da PBH, como escola, por exemplo. Para grandes deslocamentos, os agentes têm o vale transporte e o carro à disposição. Desde que haja necessidade, não tem limitação de vale. Mas a maioria dá pra fazer deslocamento a pé. Na média, nenhum agente desloca mais de oito quarteirões”.

Ainda segundo Edinaíra, a profissão também oferece riscos. “O paciente está esperando na fila, o atendimento demora e aí brigam com a gente. Acham que somos culpados pela falta de medicamentos. Temos que estar preparadas. Aqui no Concórdia, por exemplo, tem muita área de tráfico. Já teve vez de estar trabalhando em um beco, e polícia mandar a gente sair, e ter que sair correndo. Independentemente disso, continuamos fazendo o nosso trabalho. Nosso desafio é o mesmo todos os dias: a grande demanda associada à falta de condições”, descreve.

Para lidar com o estresse e com as dores físicas, Edinaíra se decidiu por uma fórmula própria. Diz que não vai ao médico há muito tempo, mas que procura cuidar dela na medida do possível. “Em algum momento, a gente precisa se desligar, ter um lazer, ir a um show, tomar uma cerveja. Deixar a cabeça espairecer para voltar de novo ao batente”, conta.

Como complemento, a servidora ainda começou a participar de uma roda de conversa com a psicóloga do Centro de Saúde Alcides Lins, que se aposentou. Antes, Edinaíra e os demais funcionários tiravam um dia da semana para uma conversa em grupo, com o objetivo de falar dos problemas, de como se sentiam e, até mesmo, desabafar. “Era algo que nos ajudava muito, principalmente com a pressão do dia a dia e da rotina. A gente ainda se fala, mas não é a mesma coisa”.

Edinaíra Aparecida (Moisés Santos/BHAZ)

Perguntada sobre o motivo de não ter uma profissional no lugar da aposentada, a PBH respondeu que vai averiguar se a coordenação da unidade de saúde fez a demanda solicitando uma outra profissional. “Para entender o que acontece: quando temos aposentadoria, a unidade tem que demandar um pedido de substituição. Não consigo dar resposta, pois o pedido vem por meio de protocolo e preciso que seja identificado para ver se ele foi feito, pois o universo é muito grande”, contou Fernanda Girão.

Os dados localizados pela reportagem demonstram muito a respeito da saúde dos trabalhadores, mas a ausência de estatísticas com recortes e regionalização também é muito reveladora. Para o presidente do Sindicato dos Enfermeiros de Minas, Anderson Rodrigues, números mais precisos não existem por uma deficiência dos órgãos interessados. “Faltam dados por falha dos órgãos e às vezes por falta de condição financeira, visto que para entender o que acontece é preciso ir à fundo e isso gera gasto. Estamos estudando uma forma de criar um sistema de ouvidoria para termos pesquisas em Minas Gerais”, afirma.

A médica, professora e pós-doutora em saúde pública Elizabeth Costa Dias acredita que existem, sim, estudos que possam representar a realidade dos
profissionais da saúde como um todo, mas que precisam ser reunidos e sistematizados para que se tenha uma visão mais clara sobre o tema. “Precisamos quantificar e qualificar as informações, porque enquanto não conhecermos melhor a realidade, fica difícil propôr soluções para questões tão urgentes”, afirma Elizabeth.

Fiocruz é uma das instituições com pesquisa mais recente a respeito da saúde de servidores da saúde no Brasil (Divulgação/Peter Ilicciev)

A pesquisadora destaca, também, que vários fatores podem ter contribuído para que os dados sejam esparsos: “O problema relacionado à saúde desses profissionais é importante, mas demorou a chamar a atenção. Não aponto um motivo único para isso, mas questões culturais, dificuldade de dimensionamento e pouca mobilização podem ter contribuído para que os estudos demorassem a surgir”, destaca a médica.

Elizabeth é otimista quanto ao futuro das pesquisas sobre o tema. “O cenário está mudando. A sociedade começa a despertar para o problema. Se não houver um investimento real nas condições de trabalho que refletem na saúde, não tem como ganhar em qualidade. E isso reflete na população”, pondera.